sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Piscina Livre, André Carneiro

Piscina Livre, André Carneiro. 136 páginas. Editora Moderna, São Paulo, 1980. 

André Carneiro, o mais importante autor da ficção científica brasileira, festejado por seus contos publicados em várias línguas e muitas vezes premiados, tem também neste romance utópico um ótimo momento.
Publicado em 1980, pouco antes da organização do movimento que ficou conhecido como Segunda Onda da ficção científica brasileira, Piscina Livre apresenta características marcantes da proposta literária da primeira onda, a geração GRD, na qual Carneiro se insere. A começar pela apresentação formal do texto que, numa ousadia modernista, não observa os convencionais recuos dos parágrafos. Não se trata de um erro editorial, uma vez que tanto o autor quanto a editora tinham muita experiência na publicação de livros. A apresentação é proposital, mas surpreende os leitores acostumados aos textos da Segunda Onda, que tiveram uma postura conservadora em relação à forma e ao estilo, com pouca ou nenhuma experimentação nesse aspecto.
Também na prosa, Piscina Livre tem um toque de elegância e ousadia técnica pouco comuns da ficção científica brasileira, características que fizeram valer os elogios que o autor recebeu e ainda recebe de editores, leitores e teóricos. E, como se não bastasse, ainda carrega um punhado de boas ideias.
O mundo de Piscina Livre é habitado por pessoas felizes e frívolas, que vivem em cidades confortáveis, ilhas de urbanidade cercadas por natureza selvagem. A Piscina Livre é uma casa de prostituição, onde as mulheres encontram exemplares masculinos geneticamente desenvolvidos para esse fim. São os andrs, homens artificiais que não têm direitos de cidadão. O termo "piscina livre" advém do fato que sua vitrine é um enorme aquário no qual andrs nus exibem-se para a clientela num erótico balé subaquático. Em nenhum momento o romance sugere que existam andrs fêmeas e, com efeito, o discurso feminista de Carneiro, também visto em muitas outras de suas obras, aqui condena explicitamente a prostituição feminina.
A sociedade não vê a Piscina Livre como uma atividade moralmente condenável, ao contrário. Trata-se de um lugar elegante e bem frequentado, no qual as mais destacadas mulheres da sociedade encontram complementos para sua completa satisfação sexual, inclusive um gorila muito requisitado. De fato, essa comunidade futura trocou as religiões pelo sexo, que é praticado livremente por homens e mulheres de todas as idades, até crianças. O  prazer erótico é a linha guia da sociedade, ensinado nas escolas por especialistas, com uma infinidade de práticas variantes. Não há ciúme ou vergonha e todos desfrutam de liberdade sexual absoluta.
Os andrs, contudo, não são felizes. Anseiam pela liberdade e buscam por ela fugindo para a selva, principalmente quando, depois de algum acidente, apresentam "defeitos" ou aleijumes. Estes acabam servindo como caça desportiva para homens que se divertem matando-os com rifles elétricos.
Nesse cenário, encontramos um casal jovem que, no princípio da narrativa, chamam-se Blanche e Kratz. Esses nomes não duram muito além das páginas iniciais, pois os cidadãos usam braceletes identificadores que lhes mudam o nome todos os dias. O que poderia tornar-se uma confusão é tratado de forma segura pelo autor e, em nenhum momento, o leitor perde a identidade dos personagens.
Apesar de ter uma vida confortável, Blanche não está plenamente feliz, embora não saiba disso. Em uma visita à Piscina Livre, ela desfruta do andrs Several (ao contrário dos cidadãos livres, os andrs nunca mudam de nome). Na Piscina Livre, a seleção dos andrs é aleatória, mas Blanche –­ que a essa altura já não se chama mais assim – desenvolve uma fixação por ele. Kratz não se importa que Blanche tenha relações com outros homens, sejam eles andrs ou cidadãos, mas fica abalado quando desconfia que ela entabula diálogos lógicos com Several, uma vez que considera os andrs mentalmente inferiores.
Conforme Blanche estreita seu relacionamento com Several, Kratz fica cada vez mais abalado emocionalmente, e isso vai levá-lo a adotar medidas drásticas na tentativa de recuperar o seu amor. Sendo conselheiro da cidade, Kratz dispõe de algum poder, e o que se segue é nada menos que um holocausto.
Interessante notar o final anticlimático da trama, depois do torvelinho de situações de crime e tragédia.
O moralismo que caracteriza o genoma da ficção científica internacional mais bem sucedida não encontra eco em Piscina Livre que, na mais pura tradição tupiniquim, termina literalmente em pizza, sem culpa ou punição. Desse modo, o autor deixa a conclusão aberta ao leitor: trata-se de uma alegoria à impunidade que assola o país; de uma parábola para o perdão cristão; de uma proposta para redenção espiritual através do sexo ou outras infinitas abordagens que se tenha possa perceber.
Nota-se uma forte influência do romance Admirável mundo novo, com o sexo livre tomando o lugar do soma – a droga de controle social do romance de Aldus Huxley. Em alguns momentos, a narrativa assume um tom escandalosamente erótico, que a diferencia absolutamente da corrente principal da ficção científica.
Também se pode observar a conjunção temática entre Piscina Livre e os contos "Diário da nave perdida" (Diário da nave perdida, Edart, 1963), "Um casamento perfeito" (O homem que adivinhava, Edart, 1966), "Nave circular" (Isaac Asimov Magazine nº 18, Record, 1991) e "Meu nome é Go" (A máquina de Hyerônimus, UFSCar, 1997), proximidade tão estreita que arrisco dizer fazerem parte de um mesmo universo ficcional, embora a sexualidade e o feminismo sejam assinaturas estilísticas da ficção de André Carneiro.
Piscina Livre define um modelo pouco explorado de ficção científica, que exige do autor uma ampla capacidade abstrativa e estilística, além de uma maturidade moral e filosófica capaz de lidar com o tema do sexo sem cair no escracho, no machismo ou na grosseria. Autores com essa capacidade geralmente preferem não escrever ficção científica, enquanto que os autores de ficção científica de alguma qualidade não ousam tocar nesses assuntos, por uma questão de protocolo do gênero.  Ainda bem que tivemos a ventura de ter André Carneiro na ficção científica brasileira.
— Cesar Silva

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