sábado, 31 de janeiro de 2015

A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls

A Amazônia misteriosa, Gastão Cruls. Publicado originalmente em 1925. Edição utilizada: Edição Saraiva, Coleção Saraiva nº 115, 1957. 240 páginas. Apresentação de Adonias Filho. Capa: Nico Rosso.

A Amazônia misteriosa é um desses raros encontros entre a qualidade narrativa e o conhecimento científico detalhado sobre determinado assunto, no caso, as terras, gentes e costumes dos povos brasileiros.
Este romance, do escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), foi instalado nas profundezas da selva amazônica, um dos mais interessantes cenários da fc&f brasileira, que serviu de tabuleiro para diversos outros romances. Contudo, nenhum deles supera o de Cruls em pujança e detalhamento, tão farto que o autor julgou apropriado acrescentar-lhe um glossário, ou "Elucidário", para explicar os nomes e termos usados ao longo da história.
O primeiro capítulo do romance são as páginas finais de um diário de viagem, cujo autor chamado durante toda a história apenas como "Seu Doutor", narra os últimos progressos de uma expedição científica à floresta amazônica. O autor não se contém em apresentar o lugar como um verdadeiro paraíso, repleto de vida, beleza e perigos. Com ele viaja um pequeno grupo de homens, especializados nos perigos de uma incursão desse tipo.
A partir do segundo capítulo, o formato de diário é abandonado e assume uma narrativa mais dinâmica, em primeira pessoa. Durante uma das expedições em busca de alimento, o narrador, acompanhado dos mateiros Piauí e Pacatuba, perdem-se do grupo principal e, depois de errar na mata por alguns dias, são capturados por índios que os levam numa longa caminhada pela mata. A certa altura, Piauí é acometido de uma febre e, em delírio, acaba desaparecendo na mata, para não ser mais visto. Os dois sobreviventes são levados para uma outra tribo, que o narrador vai logo identificar como sendo a aldeia das lendárias amazonas.
Para surpresa do Seu Doutor, vivem com elas alguns estrangeiros: um pesquisador alemão chamado Jacob Hartmann, que ali desenvolve algum tipo de pesquisa secreta, a jovem francesa Rosina esposa de Hartmann, e uns poucos homens de pouca relevância na trama. A índia Malila é encarregada de cuidar dos recém chegados e acaba por desenvolver por eles uma afetividade importante. Também será significativa a figura de Rosina, que se ressente da condição de exilada na selva e do casamento infeliz com o frio cientista, e com a qual Seu Doutor vai desenvolver um relacionamento perigoso.
A princípio, porém, a vida dos dois homens na aldeia da amazonas não é desagradável. Alimentados, bem tratados e na esperança de retornar a civilização, eles passam a explorar a aldeia, conhecendo seus costumes e suas histórias. Num ritual, o narrador toma uma bebida narcótica e faz uma viagem ao tempo dos incas, às antigas metrópoles de Cuzco e Quito, no auge dessa civilização. É, sem dúvida, o trecho de maior maravilhamento do romance.
Curioso sobre os segredos da pesquisa de Hartmann, Seu Doutor espiona o laboratório improvisado numa área reservada da aldeia e fica horrorizado com o que descobre: crianças deformadas, mantidas em jaulas como animais. Ao confrontar o alemão, este lhe explica que é um importante geneticista que chegou ao limite de suas pesquisas sobre afasia, um mal que causa a perda das habilidades de linguagem falada e escrita. Entre os silvícolas, pode dar prosseguimento aos experimentos em seres humanos, especialmente entre as amazonas que desprezam os filhos homens. Também aproveitou para realizar experiências relacionadas ao crescimento, conseguindo dessa forma homens minúsculos e gigantes, bem como o cruzamento entre espécies. Inescrupuloso, Hartmann decide manter os homens presos por mais tempo e acha muito útil até, pois poderá usar o Seu Doutor como cobaia nos estudos mais conclusivos, o que vai levá-lo a tomar atitudes práticas para preservar sua própria integridade e salvar seu companheiro Pacatuba, bem como a apaixonada Rosina, de um destino incerto nas mãos do alemão.
Filho de um importante médico e cientista, Gastão Cruls foi revelado na Revista do Brasil, editada por Monteiro Lobato. Se primeiro livro foi a coletânea Coivara, e também são de sua autoria os romances Elza e Helena, A Criação e o Criador, Vertigem, e outros. A Amazônia misteriosa foi sua incursão na ficção científica e é geralmente associada pelos críticos à obra de Edgar Alan Poe. Entretanto, parece mais claramente inserida na tradição do romance científico de Júlio Verne.
Cruls não tentou escamotear outras influências e citou, textualmente, os romances A ilha do Doutor Moreau, de H. G. Wells, e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, no que fez muio bem. Pois em pleno 1925, compôs de forma primorosa ambas as propostas do nascente gênero da ficção científica, unindo o relato científico de Verne à fantasia de Wells, e aproveitando ainda as ideias modernistas que estavam em ebulição na literatura brasileira.
O significado de A Amazônia misteriosa para a ficção científica brasileira é incomparável, pois o romance aglutina de forma primorosa um leque de propostas que ainda hoje estão em debate, num romance sofisticado cujas qualidades narrativas estão vários pontos acima da média. Se traduzido hoje no mercado estrangeiro, o romance certamente atrairia a atenção, não só pelo seu caráter exótico e pela sua qualidade literária, mas porque os estrangeiros estão ávidos por este tipo de história, que boa parte dos autores nacionais de fc&f ainda insistem em desprezar.
Cesar Silva

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