sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Ficção de Polpa - Volume 1

Ficção de polpa – Volume 1, Samir Machado de Machado, organizador. 132 páginas. Editora Fósforo. Porto Alegre: Editora Fósforo, 2007.

Este lançamento foi a maior surpresa no mercado editorial brasileiro em 2007, com relação aos autores nacionais. Menos pelo conteúdo e mais pela proposta. A começar é, fundamentalmente, um livro que procura resgatar um espírito pulp para a literatura nacional que, como lembra o organizador, nunca existiu da maneira como nos Estados Unidos aqui no Brasil. E a proposta vai fundo no que se propõe, pois a própria edição é em formato das revistas pulps americanas, a não ser pelo tamanho, que era maior. A ilustração de capa de Gisele Oliveira, com uma linda loura acorrentada prestes a ser atacada por um maníaco, era a norma destas revistas. Abrindo as páginas, vemos que os textos estão divididos em duas colunas, como também ocorria nas revistas, há ilustrações internas para alguns contos e por aí vai. Se não por qualquer outro motivo, a iniciativa já seria elogiosa, pela criatividade e competência em recriar uma típica pulp magazine. Mas vamos ao principal, o conteúdo.
O organizador situa a proposta e os temas a serem apresentados na antologia e já observa que “a maior parte dos textos pendeu para o lado do horror, mesmo que dentro de um contexto fantástico ou de ficção científica”.  Esta informação ajuda também a situar melhor a qual gênero as 16 histórias pertencem, pois pela capa os três gêneros eram igualmente anunciados.
O primeiro conto pertence ao organizador e chama-se “O homem que criava fábulas”. É a história de um sujeito que vai passar um fim de semana numa fazenda de uma amiga de sua falecida vó. Lá ele conhece animais produzidos por manipulação genética, inspirados na fantasia e mitologia universal, como o unicórnio e o pégaso. Mas as coisas começam a dar errado um dos animais ataca o marido da amiga da avó. A prosa é fluente e o texto mantém o interesse, sendo mais efetivo por isso do que tema, mais uma variação sobre os monstros do Doutor Moreau de H.G. Wells.
O segundo conto é “Carne”, de Guiherme Smee. Um sujeito acorda com fome e dor de cabeça. Logo percebe que não conhece o lugar onde está. Além disso, tudo ao seu redor está desarrumado e destruído. A forme e o mal estar só aumentam e ele precisa de carne. Aos poucos e de maneira convincente percebe-se que o autor subverte o ponto de vista das histórias de mortos-vivos. O mundo foi devastado e a história é contada de um ângulo diverso do convencional. Muito bom, intenso e ousado.
O próximo é “Lingüista”, de Rodrigo Rosp. História de gosto duvidoso sobre um casal que tem um sexo intenso, especialmente com o uso da língua. A sensação de desconforto não é pelas cenas de sexo, mas do que passa a ocorrer quando ele resolve deixá-la por sentir-se submisso nas relações sexuais. Basta dizer que ela estudava e, literalmente, colecionava línguas mortas.
Um conto na linha absurdista é “Cosmologia ou de como uma simples coceita pode mudar a vida de alguém”, de Marcelo Juchem. Um sujeito tem uma coceira na orelha, vai coçando, mas ela só aumenta. Desesperado, nota que algo grande e inexplicável vai saindo do seu ouvido.
Mais um conto que trabalha com uma situação estranha e inusitada é “Os estranhos”, de Gustavo Faraon. Um menino é o último a aguardar a chegada da mãe na saída da escola. Como ela demora, resolve ir ao banheiro e se depara com pessoas estranhas – vestidos como médicos – que fazem exames nele e em outras crianças. Os aprovados são liberados e os reprovados ficam retidos dentro da escola. Quando percebe já é dia e ele tem de ir para a sala de aula, como se nada tivesse acontecido. Ele ouve sons estranhos de uma construção na escola, mas sabe que são daqueles que ficaram presos. É um conto com uma atmosfera angustiante, que trabalha na questão da imaginação de uma criança, não ficando claro se tudo aconteceu mesmo ou não.
Já “Dias de fome, noite de cão”, de Sérgio Napp é uma história aparentemente convencional na figura de um sujeito que vem à cidade grande em busca de emprego, não encontra e vive faminto pelas ruas. A certa altura entra em uma casa aparentemente desabitada e encontra o horror absoluto na forma de um enorme cão preto.
Rafael Spinelli assina “O homem dos ratos”. Um sujeito não consegue se desfazer de nada. Acumula tudo e isso vira um problema grave para sua mulher, em meio a lixo e bugigangas pela casa toda. Embora soe como loucura, vez por outra são noticiados casos semelhantes. Mas talvez não com o desfecho deste conto.
O próximo é uma eficaz cena de terror psicológico. “Tempestade em Coney Island”, de Rafael Kasper narra uma fortíssima tempestade e os efeitos que provoca em uma mulher enquanto o marido sai para comprar cerveja. Tão bem narrado que fica no limite entre o suspense e o horror quase sobrenatural.
Na seqüência temos “Ventre”, de Roberta Lorini. Um filho mal cuidado por seus pais, mata a mãe, retirando-lhe o útero. E assim prossegue tornando-se um psicopata. Ao mesmo tempo, o texto é intercalado por um delegado solitário e bem-sucedido, disposto a não só prender, mas matar o criminoso. Uma história curta e bem narrada, em que mesmo o final surpresa encaixa-se bem dentro do contexto.
“Fungui”, de Luciana Thomé segue a tendência, com uma situação bizarra acontecendo e invertendo o próprio sentido do terror. Cogumelos nascem por toda casa, deixando uma mulher primeiro sedenta e depois tomada de puro desespero.
Alessandro Garcia é o próximo autor com o seu “Vãos”, o texto mais longo do volume. Contada em tons intimistas, os sentimentos do protagonista dão o tom, ao relatar seus problemas pessoais, como um mau casamento, a morte mal explicada de um funcionário de sua fazenda, um filho mimado e de comportamento misterioso. É um suspense psicológico que se anuncia como sobrenatural, mas fica no plano realista, pois não há nenhum elemento fantástico. O que mantém o interesse é a prosa habilidosa e as intenções subjetivas dos personagens, deixando ‘vãos’ de expectativas para o leitor.
A seguir temos “A meia-noite do fim do mundo”, de Fernando Mantelli.  Digo que o melhor está no título. A história não passa de um pastiche pouco inspirado e previsível de H.P. Lovecraft. Talvez funcionasse em um fanzine, não deveria ser publicado nesta antologia.
Já “Cabeça-de-arroz”, de Annie Piagetti Müller, explora mais uma história bizarra. Agora é a vez de Nilce, uma mulher viciada em arroz (!). O conto tem o mérito de ser o primeiro do livro a não ser narrado em primeira pessoa até aqui, pois o recurso estava repetitivo e cansativo. Contudo, a narrativa é previsível quanto ao desfecho, aliás na mesma toada de outros contos.
Assim como também “Fígado”, de Silvio Pilau. Uma outra premissa absurda, quando um fígado bate à porta de um alcoólatra dizendo que vai matá-lo por maltratá-lo por tantos anos. Talvez o personagem estivesse tendo deliriuns tremens ou algo do tipo, mas o conto não faz questão de sutilezas em sua proposta moralista sobre o vício da bebida.
“O desvio”, de Antônio Xerxeneski é como “Carne”, um conto que brinca com os clichês, procurando subvertê-los. Um viajante solitário em uma estrada deserta dá carona a uma garota, vestida no estilo gótico. Tudo vai bem, até que um anuncia ao outro que é o diabo. Paira uma certa dúvida durante a leitura, mas o fato é que um estava assustando o outro. Porém, um desvio os espera numa próxima curva que nunca aparece para, provavelmente, definir o destino de ambos. Ótimo conto.
Mas o melhor trabalho ficou para o final. Refiro-me a “Quando eles chegaram”, de Rafael Bán Jacobsen. O argumento é simples e dos mais retratados: Uma invasão extraterrestre em nosso planeta. De início pacíficos, misturam-se aos humanos na condução do poder e dos negócios e por fim revelam suas reais intenções de nos transformarem um fonte de sua alimentação. Até aí também sem novidades, há ecos de O fim da infância, de Arthur C. Clarke e da minissérie televisiva V, a batalha final. Mas a força da narrativa impacta e choca por sua frieza e indiferença com que a matança é realizada e a total impotência com que os humanos são dominados, submetidos e eliminados. Muito efetivo também é o uso da primeira pessoa, com o protagonista contando a tragédia de seu ponto de vista.
Ficção de polpa ainda reserva uma seção chamada de “Faixa bônus”, que dá ainda mais charme à sua proposta pulp, apresentando um conto de H.P. Lovecraft, “O cão de caça”, o primeiro a mencionar o Necronomicon e um making-off interessante mostrando o processo de criação da ilustração da capa.
Vale mencionar também que esta é uma antologia regional e, mais que isso, gaúcha. Quase todos os autores lá nasceram ou moram lá há muito tempo. São em sua maioria relativamente jovens, entre os 20 e 30 anos e atuam no campo literário ao lado de ocupações profissonais na área de comunicação e ciências exatas. Estes fatos certamente significam algo para a comunidade brasileira de ficção científica, pois mostra que existe grupos de autores atuando por fora de suas fronteiras, talvez como efeito da internet e da própria decadência do fandom em integrar os novos interessados, principalmente de uns dez anos para cá.
É curioso que este livro tenha aparecido justamente em meio a uma polêmica sobre as virtudes de uma ficção pulp, como defendida por Ana Cristina Rodrigues e Alexandre Lancaster, em artigo publicado no fanzine Scarium n.19, de junho de 2007.[1] Que este tipo de história tem seus encantos é indiscutível, mas não a concepção pulp dos autores do artigo que entendem que sua simples expressão prescindiria de uma busca por qualidade literária, desqualificando mesmo propostas pretéritas e atuais que procuram conciliar uma boa história com um bom texto. Ora, este Ficção de polpa, acaba por ser uma resposta involuntária, pois afirmando uma proposta pulp, procurou primar por um vocabulário e estilos relativamente elaborados, mostrando que é não só possível como desejável contar boas histórias através da busca por uma boa literatura. É certo que o resultado do livro é um pouco desigual, mas percebe-se o esforço dos autores em produzir pulps com algo mais do que simples pulps, à maneira do que faziam os americanos nos anos 20 e 30 do século passado e que, a dupla de autores do referido artigo, quer parecer ressussitar.
Samir Machado de Machado já divulgou os autores e os contos de uma segunda edição do livro, prevista para publicação em 2008. Se o resultado geral desta antologia é de razoável para bom, com muitos contos semelhantes quanto à temática e um pendor por vezes exagerado para o escatológico e o sensacional, o saldo é positivo pela iniciativa em si, abrindo uma boa expectativa de que no mínimo, o mesmo nível possa ser mantido na próxima edição.

 Marcello Simão Branco






[1] O artigo é “Ficção científica popular”.

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