Apócrifos do Futuro,
Romy Schinzare. Capa: Matéria-Prima Editorial. 154 páginas. São Paulo: Patuá
Editora, 2022.
Este livro é uma
coletânea com quinze contos, que transita de forma livre e ousada entre a
ficção científica, o fantástico e o horror. Sempre com um viés mais literário.
Ou seja, escritos com um apuro e uma sofisticação acima da média. De fato, a
autora, antes de mais nada, escreve muito bem. E, independentemente do enredo,
há um prazer estético na leitura das histórias.
Mas em termos temáticos
também não estamos no terreno do lugar comum, pois as histórias se insinuam de
uma maneira para se modificar depois, de forma quase sempre sutil. Basta uma
frase ou uma mudança de parágrafo para que os contos, via de regra, adentrem
num novo ambiente ou numa reviravolta, sem que com isso perca em fluidez ou
inteligibilidade.
E há bastante variedade
temática e de gênero, com contos de FC mais identificáveis, como, por exemplo,
“A Rainha”, “Aquária”, “Buraco de Minhoca II”, “Habitantes dos Abismos”, “Híbridos”,
“Robôs de Marte II”; outros mais ambíguos entre diferentes gêneros, como
“Terremoto”, “Zayn”, “Cubo do Destino”, “Diana” e “Shelby”, e aqueles mais
próximos ao horror, como “Carmilla”, “O Chamado”, “Quando a Música Tocar” e “Valparaíso”.
“Terremoto” é o primeiro
conto. É um relato interessante sobre uma tragédia que surpreende o cotidiano
em pleno metrô da cidade de São Paulo. Somos colocados numa situação que
impacta porque poderia ser conosco. Eu, por exemplo, uso com frequência o metrô
e, particularmente, a linha dois verde, entre Vila Madalena e Vila Prudente.
Mas a narrativa é perturbadora principalmente por inserir os efeitos do
desastre para além da vida.
Outro conto singular é “A
Rainha”, que se debruça sobre as possíveis consequências da crise climática.
Toda a geopolítica e o sistema econômico entram em colapso e são substituídos
pelo comando e ação de robôs e inteligências artificiais. Mas o fulcro do
conflito social se manteve em dois níveis: 1) a luta de classes entre uma nova
elite e o povo, sempre explorado e 2) a luta também entre a humanidade e as
máquinas. Renderia mesmo um romance, pois ficou parecendo uma espécie de ótimo
resumo para algo mais ambicioso. Quem sabe?
“Aquária” e uma história
intrigante sobre paranoia e invasão alienígena. Após mergulhar numa piscina,
subitamente, Amana se vê diante de seres alienígenas. Eles querem usá-la para
convencer seu pai, um renomado cientista, de que deve libertar os alienígenas
que foram raptados de seu planeta e trazidos à Terra. Caso contrário, a
humanidade poderá ser extinta. Mas, depois de retornar ao seu ambiente conhecido,
claro, ninguém acredita nela, nem seu pai, que se mostra desalentado com os
repetidos surtos da filha. O final deixa a sensação de que Amana pode ter
razão. Mas o mérito está, justamente, na dúvida.
Outra particularidade da
coletânea é o protagonismo feminino na maioria das histórias. “Zayn” – uma
fábula sobre uma garota que aprisiona um inseto, para depois servir de alimento
a ele –, “Carmilla” – como o próprio nome indica, a história de uma vampira –,
“Diana”, sobre uma atriz que tem sua imagem usada para a produção de filmes,
tornando-se ela mesma, descartável. Mas este protagonismo, como já indicado no
comentário sobre “A Rainha”, não se limita aos títulos femininos. Se faz
presente em outras histórias também. Ou seja, Apócrifos do Futuro é uma
obra que aborda temas especulativos principalmente a partir da perspectiva
feminina, o que confere mais um aspecto diferenciado em gêneros literários
ainda fortemente marcados pelo ponto de vista masculino.
Mais um aspecto que confere
atualidade ao livro é a presença dos temas da crise climática da inteligência
artificial em várias histórias. Talvez estes sejam os dois tópicos de mudanças
mais significativas para a humanidade neste século, e Romy Schinzare os
trabalha de forma sensível e inteligente, ao mostrar o perigo real de um
colapso ambiental e a eventual perda de controle da humanidade sobre as
máquinas. No fundo, não são temas novos dentro da FC, mas que se são
especialmente relevantes pois se tornaram parte da realidade contemporânea.
Nesse sentido, o conto “Híbridos” é especialmente inspirado, pois assume uma
curiosa e inusitada vingança dos deuses da natureza diante da predação
ambiental, particularmente das praias.
Duas histórias de horror
ampliam o leque temático da obra. Em “O Chamado”, um grafiteiro após terminar
um trabalho, se apronta para se divertir na noite de sábado em São Paulo. Mas
ele não vai num barzinho ou numa balada. Mas no cemitério da Quarta Parada, na
zona leste da cidade. Traz apenas sua caixa de som e depois de dançar ao som de
algumas músicas sobre alguns túmulos, se vê imerso num cenário estranho e
irreal, com a presença de vários mortos dançando com ele. Apavorado, tenta se
evadir do local, mas pela manhã, um funcionário do cemitério não deixa de
perceber algo estranho – embora já tenha ocorrido antes – no túmulo de um certo
grafiteiro. É um conto de horror excepcional.
“Valparaíso” fecha o
livro também de forma contundente. É uma história permeada por mistério e mudanças
em torno de uma vingança que atravessa gerações e vidas passadas. Tão
importante quanto o sobrenatural é a ambientação numa cidadezinha do interior
paulista, com uma comunidade rural isolada que cultua seus ancestrais por meio
de rituais misteriosos. No fundo, uma história de amor mal sucedido que
encontra um desfecho perturbador para vingar a morte de uma jovem.
Como o leitor já deve ter
percebido, Apócrifos do Futuro é uma coletânea com muitas qualidades. Se
coloca em destaque no contexto da FC&F brasileira atual, numa autora que
tem se tornado presente em antologias mais recentes como, por exemplo, em Outros
Brasis da Ficção Científica (2021), mas que já tem algumas obras
anteriores: as coletâneas Mandrágora (2017) e Contos Reversos
(2018). Com sólida carreira como professora e educadora na rede pública da
cidade de São Paulo, a autora se coloca como uma contista de prosa fina e
madura e, mais relevante, com voz e soluções próprias, que fogem do
convencional e por isso merece ser acompanhada.
—Marcello Simão Branco
