terça-feira, 5 de abril de 2022

Uma Breve História do Somnium

 

Marcello Simão Branco[1]

 

Capa do número 58, dezembro de 1992.


Quando o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) foi criado, em dezembro de 1985, uma de suas principais molas mestras foi uma publicação que divulgasse as atividades da entidade, dos sócios e a própria ficção científica.

Assim, rapidamente, cerca de um mês depois, em janeiro de 1986 foi lançado o Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica. Nesta edição não havia um logotipo para a publicação e o editorial do fundador do clube, R.C. Nascimento (1943-2013), anunciava dois concursos: 1) para a escolha do nome definitivo do boletim e 2) para a criação de um logotipo oficial para o clube.

Assim, até o número seis, a publicação não teve um nome definido, até que o número sete estampava no alto da capa: Somnium. Belo nome que se refere ao conto de mesmo nome do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), responsável também pelas leis fundamentais da mecânica celeste, que recebem, justamente o seu nome. O conto é importante para o desenvolvimento histórico da ficção científica, ao imaginar, por meio de sonhos, a chegada humana à Lua.

A sugestão do nome foi do sócio carioca José dos Santos Fernandes e venceu com quatro votos, entre os 20 sócios que votaram. Isso porque houve uma dispersão entre os nomes votados: FC Boletim 3 votos; Jornal dos Aficcionados, Andarilhos do Amanhã e Terceiro Planeta, todos com dois e Orbit News, Panfletária, FC em Notícias e Science Fiction Explorer com um, além de uma abstenção.[2] Observando os nomes, ao meu ver, é até de espantar que “Somnium” tenha vencido de forma tão apertada, pois é, de longe, o nome mais bonito e representativo do que é ser um fã do gênero.

Embora seja um fanzine, em termos técnicos, digamos assim, o Somnium é um clubzine. Ou seja, uma revista de clube. Na prática apenas diferencia um fanzine que é produzido por uma associação de fãs, de outro que é fruto da iniciativa de um ou mais sócios de maneira independente. A maioria doa fanzines editados teve esta característica mundo afora, e também no Brasil. Neste sentido, o Somnium pode ser identificado, em termos históricos, como o quarto clubzine da história da ficção científica brasileira (FCB). O primeiro foi o O Cobra, da Associação Brasileira de Ficção Científica (ABFC), de meados dos anos 1960, de São Paulo; o segundo o Boletim Antares, do Clube de Ficção Científica Antares, do início dos anos 1980, de Porto Alegre (RS) e o terceiro, praticamente junto com o gaúcho, o Star News, da Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), também de São Paulo, que existiu por cerca de dez anos. Mas nenhum deles teve a relevância e longevidade do Somnium, que extrapolou sua condição de clubzine para se tornar uma publicação de referência para toda a FCB.

Mas antes disto se tornar realidade, em suas primeiras edições, o Somnium tinha o perfil mais interno de uma publicação corporativa, ao divulgar basicamente os comunicados da diretoria, lançamentos de livros, cartas dos sócios e os novos membros que adentravam à associação a cada edição. Mas, não demorou muito para que passasse a publicar em suas páginas material inédito produzido pelos sócios, principalmente artigos e contos. Pois foi quando este conteúdo passou a fazer parte do principal das páginas do Somnium, é que ele começou a adquirir sua identidade e importância, primeiramente para a valorização do CLFC e seus sócios, e depois para o gênero como um todo no país.

Desde os primórdios, uma característica editorial se impôs: a de publicar somente colaborações inéditas e se de estrangeiros, com a devida autorização. Desta forma, o Somnium começou a adotar uma linha editorial de aspecto profissional e de busca pelo ineditismo e qualidade em suas páginas. Pode-se dizer que esta decisão influenciou a maioria dos fanzines que surgiram depois, inclusive o meu próprio, o Megalon.[3]

Desta forma, incentivou-se o envio de colaboração para as páginas do Somnium, principalmente artigos e contos, mas também resenhas e ilustrações. A iniciativa deu certo, pois em pouco tempo, a publicação era menos um clubzine do que um fanzine na prática. Ou seja, a divulgação institucional diminuiu em prol de uma vívida e volumosa quantidade de material produzido pelos sócios. Nascimento, que no início acumulava as funções de presidente e editor do Somnium, também inovou ao criar colunas e seções fixas dentro do fanzine. Por um lado, uma decisão pragmática, já que garantia a cada edição um espaço definido, sem correr o risco de faltar material devido ao não envio dos sócios, e de outro, definir espaços de crítica e reflexão em cada seção ou coluna definida. Esta característica também se espraiou por outros fanzines, cada um com seu perfil e linha editorial específica.

Assim, ao longo da primeira década, colunas importantes surgiram, como a de resenhas de Gilberto Schoereder – credenciado por seu importante estudo Ficção Científica (Francisco Alves Editora, 1986) –, outra de crítica aos contos publicados no próprio Somnium, ocupada na maior parte do tempo por Fábio Fernandes, que também se ocupou de outra coluna com análise dos livros traduzidos no Brasil; outra sobre livros, “Colecionando”, de Caio Luiz Cardoso Sampaio, a respeito das coleções publicadas no Brasil e em Portugal, uma fonte de informação preciosa e útil ainda hoje; uma com a análise sobre um escritor, o “Autor do Mês”, revezada entre alguns sócios, mas escrita principalmente por Kleverson Bicalho Neves; e a mais esperada de todas, “As Crônicas do André”, com comentários, causos e anedotas do mais celebrado escritor brasileiro de FC André Carneiro (1922-2014), que estreou em abril de 1987. Outras vieram posteriormente, mas pode-se dizer que estas estabeleceram a estrutura editorial que alicerçou o fanzine.

Também ajudou na rápida consolidação destas características editoriais a regularidade, pois em pelo menos os quatro primeiros anos, o Somnium foi mensal. Até onde sei este foi o único fanzine brasileiro de FC, com tal abrangência de assuntos e seções, a estabelecer esta marca. Não falhava: sempre na terceira semana de cada mês chegava em casa pelo correio o envelope pardo com o Somnium! Imagine o que era isso na segunda metade dos anos 1980, quando o intercâmbio com as notícias sobre o gênero quase não existia fora do ambiente restrito do fandom, e não havia a internet. Eu pessoalmente vibrava quando o Somnium chegava em casa, ávido para ler as novidades e os artigos, contos, ilustrações e os textos dos colunistas. E a chegada na terceira semana do mês não era casual, pois acontecia uma semana antes do último sábado do mês, quando ocorria a reunião mensal do clube. Assim, parte da reunião era dedicada, justamente, a repercutir o conteúdo publicado.


Capa do número 65, dezembro de 1996.


O Somnium e outros fanzines eram muito procurados por colaboradores nos primeiros dez anos da Segunda Onda da FCB, pois eram raros os espaços de publicação profissional, especialmente em editoras. Assim, uma nova geração de jovens escritores e críticos se exercitou regularmente nas páginas do Somnium, nomes que se tornariam destaques e a maioria com carreiras posteriores como, por exemplo, Ataíde Tartari, Braulio Tavares, Carlos Orsi Martinho, Cesar Silva, Fábio Fernandes, Finísia Fideli, Gilberto Schoereder, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, José Carlos Neves, José dos Santos Fernandes, Lúcio Manfredi, Martha Argel, Miguel Carqueija, Roberto de Sousa Causo, Roberto Schima, Sylvio Gonçalves e outros.

Tal profusão de talentos em suas páginas deu frutos rapidamente, pois já em 1987, na primeira edição do Prêmio Nova de Ficção Científica, criado por Roberto de Sousa Causo, o Somnium venceu na categoria “Melhor Fanzine”. Tal feito se repetiria mais três vezes: em 1989 – empatado com o Megalon –, 1991 e 1994 – aqui não como fanzine, mas como “Melhor Publicação Semi-Profissional”. O Nova existiu até 1996, por dez edições, portanto, e talvez a irregularidade verificada a partir do início dos anos 1990 tenha prejudicado a chance de vencer por mais vezes, mas também porque a concorrência com outros fanzines da época era forte, principalmente com o Megalon, que também por sempre se manter regular, de certa forma ocupou a ausência do Somnium, e levou o prêmio por sete vezes.

Mas em termos de ficção o Somnium foi o maior vencedor. Foram oito, das dez edições. Entre os principais trabalhos, alguns se tornaram clássicos como, por exemplo: “Pela Valorização da Vida”, (1987) e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” (1988), ambos de Ivan Carlos Regina, “Sympathy for the Devil”, de Braulio Tavares (1989), “Tocar os Anjos”, de Roberto de Sousa Causo (1991) – que também venceu o Prêmio Tapìrài 1992 –, e “O Vampiro de Nova Holanda”, de Gerson Lodi-Ribeiro (1996). A publicação levou ainda um Prêmio Argos em 2000 com o conto “Sete Vezes Besta, Sete Vezes Homem”, de Ivan Carlos Regina.

E ainda que não tenha vencido um prêmio – porque no ano em questão não havia a categoria para artigo – vale lembrar do “Movimento Supernova: Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, escrito por Ivan Carlos Regina, publicado no número 30, em junho de 1988. Quase que instantaneamente se tornou a peça mais polêmica e influente da FCB, além da principal marca distintiva da Segunda Onda: a busca por uma ficção científica com características brasileiras, em termos de identidade e qualidade.

Além disso, para se ter uma noção de seu impacto no fandom, entre fins dos anos 1980 e início dos 1990, o Somnium tinha tal evidência, que chegou a ser parodiado, com outro fanzine chamado Zomnium, publicado por sócios do Rio de Janeiro. Assim, a publicação passou por fases diferentes, sendo esta primeira, de longe, a mais importante. Isso porque, como já indicado, a partir do momento que começou a ter dificuldades em manter-se regular, começou a perder relevância para outros fanzines. Contribuiu para isso também, um certo renascimento do espaço editorial para os autores, com a publicação da revista Isaac Asimov Magazine (IAM) – versão brasileira de sua homônima norte-americana – entre 1990 e 1993. Pois houve uma colaboração próxima e intensa de vários dos mais destacados sócios do clube com a publicação, com contos, artigos e traduções de histórias. Mas após o fim súbito e traumático da IAM, o fandom se desarticulou, pois voltou a ter menos espaço e com uma crise na sua principal associação e seu fanzine. Mesmo assim, o Somnium teve bons momentos nas mãos de outros editores, pois nunca abdicou de sua principal marca: a qualidade do conteúdo e a relevância de seus colaboradores.

Estes editores do que podemos chamar de uma segunda fase, pós-IAM foram: Carlos André Mores, Christiano de Melo Nunes, Luís Marcos da Fonseca, Marcello Simão Branco – editei três números: 63, 64 e 65, em 1996 –, Alfredo Keppler, Cesar Silva e Matias Perazoli, e ainda um período com vários editores em conjunto: Alfredo Keppler, Ataíde Tartari, Matias Perazoli, Roberto de Sousa Causo. Todos eles ainda proporcionaram números importantes, pelo menos até meados dos anos 2000, quando finalmente entrou no que poderíamos chamar de uma terceira fase, a digital, que se estende até os dias de hoje.[4]

Pois foi justamente após a histórica centésima edição, editada por Alfredo Kepler, que ocorreu a mudança para o formato digital, com a edição seguinte (101), editada por Ana Cristina Rodrigues, em 2008. Assim, o Somnium foi impresso até o número 100 (1986-2007) e tem sido digital, de 2008 em diante. Nesta nova fase, três características têm se destacado: a irregularidade, o grande número de páginas e um tema principal para cada edição. O número 103, por exemplo, homenageou Ray Bradbury (1920-2012) e o 110 Issac Asimov (1920-1992). Já o de 113, homenageou o escritor brasileiro Max Mallman (1968-2016), e o 114 foi dedicado ao criador do CLFC e o mais importante editor da história da publicação: R.C. Nascimento. Nesta fase do século XXI, houve também mais editores em menos edições, com nomes como Daniel Borba, Ricardo Guilherme dos Santos, Ricardo Herdy e Marcelo Biguetti, o mais recente. Uma característica de relevo que tem se mantido é o espaço aberto para os autores brasileiros – sócios ou não – publicarem e divulgarem seus trabalhos, principalmente os surgidos dos anos 2000 em diante.

Em suma, o Somnium é uma instituição histórica da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, sendo o mais antigo fanzine brasileiro de FC publicado de forma ininterrupta, de 1986 até os dias de hoje, mesmo ressalvando a irregularidade que passou a fazer parte de sua trajetória, de meados dos anos 1990 em diante. Mas o mais significativo é a sua resiliência, ao manter viva uma linha de continuidade entre a Segunda e a Terceira Onda da FCB, e ilustrando neste aspecto, não só suas mudanças de forma e conteúdo, mas também de geração, com novos colaboradores e talentos que tem se firmado nestes anos recentes.

 

Referências:

Borba, Daniel, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 102, 2012.

Branco, Marcello Simão. “Nova: Uma História de Polêmicas e Realizações”, Prêmio Nova de Ficção Científica: Os Primeiros Dez Anos, Marcello Simão Branco, org. Biblioteca Essencial da Ficção Científica Brasileira, volume 3, 1998.

Branco, Marcello Simão. “Uma História dos Prêmios Brasileiros de Ficção Científica”, Silva Cesar; Branco, Marcello Simão, eds., Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2008. Tarja Editorial, 2009.

Branco, Marcello Simão. “30 Anos do Clube de Leitores de Ficção Científica”. In: Almanaque da Arte Fantástica Brasileira, 2015.

Herdy, Ricardo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 113, 2017.

Keppler, Alfredo. Somnium: Índice Remissivo: Números 1 ao 78, Clube de Leitores de Ficção Científica, 2000.

Keppler, Alfredo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 100, 2007.

Nascimento, R.C. Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica, números 0 a 6, Clube de Leitores de Ficção Cientitica, janeiro a maio, 1986.

Rodrigues, Ana Cristina, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 101, 2008.

Santos, Ricardo Guilherme, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 110, 2014.

Silva, Cesar. “Somnium 114”. In: Mensagens do Hiperespaço, 2018.

 



[1]  Sócio número 83, entrou no CLFC em maio de 1987.

[2] Mais nomes foram sugeridos, mas sem votação. São eles: Albedum, Aldebaranis, Bofísica, Crepúsculo Estelar, Enfírio, Escalar Infinitus, Galaxian, Linha Base, Luzestrela, Pressão Braquial, Science Fiction Journal, Selenews, Sonda Planetária, Star´s Explorer e Vento Solar. Um total de 24 sugestões, num quadro associativo de 34 sócios.

[3] Criado em setembro de 1988 por mim e Renato Rosatti, e editado apenas por mim a partir de 1991, teve 71 edições regulares até maio de 2004, e mais uma edição extra (72), em dezembro de 2017. É o mais premiado fanzine da história da FCB, com 7 prêmios Nova, três prêmios Argos e um prêmio Tapìrài.

[4] Na segunda metade dos anos 1990, para suprir a irregularidade crônica do Somnium, que gerava muitas críticas e cobranças por parte dos sócios, foi criado o Informativo Mensal CLFC. Um segundo clubzine, de caráter mais noticioso, sobre as atividades do clube e dos sócios, além de lançamentos de livros e eventos. Eventualmente, também publicou contos. Manteve-se regular por cerca de cinco anos, sob a edição de nomes como Adriana Simon, Ataíde Tartari, Daniela Bittencourt, Fábio Barreto, Humberto Fimiani, Matias Perazoli e R.C. Nascimento, mas no início dos anos 2000 foi descontinuado.

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