As Cidades Indizíveis, Fábio Fernandes & Nelson
de Oliveira, orgs. 179 páginas. Capa de M. D. Amado. Rio de Janeiro: Llyr
Editorial, 2011
Nos últimos anos têm-se
verificado um aumento exponencial no número de antologias lançadas no mercado
brasileiro de ficção científica e fantasia. A maioria delas composta por
autores nacionais e de nomes pouco conhecidos mesmo dentro do fandom, na
maioria novatos em início de carreira. Em 2011, uma das antologias que gerou
mais expectativa foi As Cidades Indizíveis. Embora tenha reunido apenas
autores nacionais, eles não são neófitos no ofício da escrita, ainda que assim
possamos considerar parte deles em relação à fc&f.
O livro apresenta nove histórias
sobre a cidade enquanto espaço de representação dos dilemas e esperanças da
civilização humana. De fato, a cidade é um dos espaços clássicos de ação do
drama humano, e no caso particular da fc&f,
tem uma tradição muito sólida e antiga, que remonta a séculos antes desses
gêneros terem a conformação que modernamente adquiriram. Em especial no campo
da ficção científica, a cidade tem representado um espaço privilegiado dos
dramas humanos, seja na forma de utopias, distopias, cenários futuristas de
mundos alternativos ou hipertecnológicos. Das várias cidades clássicas, podemos
citar a dicotomia ideológica entre Anarres e Urrás, de Os Despossuídos
(1974), de Ursula K. Le Guin; ou as utopias tecnicista e humanista de Diaspar e
Lys, de A Cidade e as Estrelas (1953), de Arthur C. Clarke (1917-2008).
Isso sem falar nas hipertecnológicas, como a do filme Metrópolis (1927),
ou do êxodo da vida urbana, como exposta no romance fix-up Cidade
(1952), de Clifford D. Simak (1904-1988), entre muitos outros exemplos.
Contudo, a proposta dos
organizadores Fernandes e Oliveira vão contra essa corrente mais exteriorizada
da cidade enquanto palco de ação e transformação. Eles concebem a própria
cidade como protagonista, chegando mesmo ao ponto de atribuir-lhe certa
consciência, como se ela fosse um organismo vivo e como tal pudesse sentir e
influir sobre seus habitantes humanos. Como eles reconhecem, a ideia não é, em
si, nova. Os organizadores expõem a dívida criativa para com, entre outras,
Macondo, de Gabriel García Márquez, a Buenos Aires de Cortázar (1914-1984), as
cidades orientais visitadas por Marco Polo e repensadas por Calvino, ou ainda a
cyberpunk Sprawl, de William Gibson.
Ao se ler a antologia, percebe-se
que a proposta temática está bem amarrada, pois todas as histórias comungam
dessa premissa. Algumas para expô-la de forma mais inteligível, como na movimentada
noveleta “Harmonia”, de Roberto de Sousa Causo, que imagina um espaço urbano
indígena numa dimensão paralela mais idílica e em contraposição à degradação
dos valores humanos da cidade de São Paulo; outras, para construir uma reflexão
mais política ou multicultural, como no criativo texto de abertura,
“Galimatar”, de Fábio Fernandes, em que, num futuro não muito distante, a
grande metrópole do mundo situa-se no Norte da África, e uma linguagem
ritualizada através da gastronomia serve de guia para uma maior interação entre
pessoas de culturas diferentes.
A estas duas histórias acima
citadas que são, a meu ver, as melhores do livro, podemos somar ainda a de Ana
Cristina Rodrigues, “O Longo Caminho de Volta”, conto interessante, mas que não
se define entre uma proposta mais literária ou de aventura de fantasia. Em
contraponto, há outro conjunto mais homogêneo e, diria, tematicamente mais
ousado, que busca justamente explorar esta noção de cidades sencientes. Textos
como “Céu do Nunca”, de Guilherme Kujawski; “O Dia em que Vesúvia Descobriu o
Amor”, de Octavio Aragão; “Primeiro de Abril: Corpus Christi”, de Luiz Bras;
“Mnemomáquina”, de Ronaldo Bressane, e a história radical e delirante que fecha
o livro, “Cidade Vampira (Entidade Urbana)” de Fausto Fawcett. Há uma clara
intenção pós-moderna de desconstruir uma narrativa mais convencional — e até
mesmo da compreensão mais cartesiana que a acompanharia —, levando a uma
reconstrução em bases mais fragmentadas, desconexas, sem necessário vinculo com
o nexo racional. O problema é que esta é uma tarefa intelectual difícil e o
risco de falha é grande, se o autor não souber concatenar bem a proposta
criativa com o estilo narrativo. E é o que ocorre nos casos de Aragão e
Kujawaski, este último com um texto quase ininteligível. Assim também se dá com
o tom opressivo e o resultado mal-sucedido de Luís Henrique Pellanda no conto
“O Coletivo”, em que é difícil terminar a leitura.
Se há uma proposta temática e uma
característica literária que permeia a maioria dos autores, talvez seja
justamente no desenvolvimento da prosa que o livro tenha se tornado quase um
fardo. De um certo ponto em diante, creio que a partir do fim da leitura do
complexo e instigante texto de Luiz Bras —
o que melhor se sai nesta proposta mais radical —, há como que uma certa
repetição entre o estilo de prosa e os enredos, todos parecendo semelhantes e,
no fim das contas, com pouca clareza, tornando a leitura um desafio nem sempre
estimulante, porque torna-se também cansativo.
Em suma, As Cidades Indizíveis
realmente deixa de comunicar-se de forma mais aberta, tornando-se um livro de
histórias herméticas e, por consequência, às vezes confusas ou pretensiosas.
Mas reconheço que um livro como este tem um propósito e se dirige,
preferencialmente, a um tipo de leitor com características mais subjetivas ou
literariamente menos convencionais. Como minha análise parte de uma linha de
visão mais voltada a um tipo de enredo e estilo narrativo mais claro e de
dramas mais exteriorizados, daí o meu desconforto com o resultado final do
livro. Seja como for, em termos de acréscimo ao tema da cidade dentro da fc&f, o resultado geral é
insatisfatório.
– Marcello Simão
Branco