quinta-feira, 15 de junho de 2023

Spectros

Spectros, série de tv em sete episódios. Roteiro e direção Douglas Petrie. São Paulo: Moonshot Pictures, 2020. 


A grande contribuição dos serviços de televisionamento por streaming foi a abertura de espaços mais generosos à produção local independente, antes só acessível a produtoras calçadas por grandes corporações econômicas, como as redes de tv aberta, por exemplo. 
Desde que o canal Netflix exibiu, em 2016, a primeira temporada da série de ficção científica 3%, mais e mais produções nacionais têm chegado ao público, muitas vezes com relativo sucesso. Foi nessa mesma plataforma que estreou, em 2020, a série de horror sobrenatural Spectros, criação do roteirista e diretor Douglas Petrie, produzida pela Moonshot Pictures. 
Conta a história de duas estudantes adolescentes que se envolvem com um marginal justamente na noite em que ele pretende roubar o templo de uma bruxa no bairro paulistano da Liberdade. As coisas complicam quando um homem em chamas surge e derruba uma velha boneca japonesa, objeto que parece ter o poder de reduzir as fortes dores de cabeça que há tempos torturam uma das garotas. Na fuga, num automóvel roubado, o grupo atropela e mata o tocha humana e todos acabam presos pela polícia. Mas há muitos segredos obscuros por trás daquela singela boneca e praticamente tudo o que circula pela Liberdade naquela noite concorre para complicar ainda mais a chances dos jovens chegarem vivos ao próximo nascer do Sol. 
Fantasmas, mortos-vivos, maldições ancestrais e necromantes psicopatas são ingredientes que alteram a percepção do delicado ambiente da Liberdade, bairro tão conhecido e querido dos paulistanos.
A série de sete episódios tem um elenco baseado em atores jovens, como Danilo Mesquita (Pardal), Claudia Okuno (Mila), Mariana Sena (Carla), Enzo Barone (Zeca) e Drop Dashi/Pedro Carvalho (Zeca), além de atores veteranos como Carlos Takeshi (Celso), Miwa Yanagizawa (Zenóbia), Norival Rizzo (o pipoqueiro Mário) e Daniel Rocha (o detetive Ricardo). 
A narrativa é movimentada, com muita correria e variação cenográfica, que vai de prédios abandonados e comunidades carentes, até construções históricas e cemitérios antigos. Mas exagera na amplitude geográfica do bairro, sugerindo uma extensão territorial muito acima da real: para aproveitar a cenografia da Rua da Glória, o grupo de jovens circula por ela continuamente de automóvel, num bairro que se atravessa a pé em meia hora, se muito. Talvez quem não conheça a Liberdade não perceba, mas isso prejudica a narrativa, alongando uma história que ficaria bem melhor em três ou quatro episódios.
Deixando tais detalhes de lado, Spectros engrossa a tendência da produção fantástica nacional inspirada em mitologia e folclore, que está fortemente presente na literatura de ficção e agora também na teledramaturgia, que já conta com outras séries nos canais de streaming como Cidade invisível (2021, Netflix), Desalma (2020, HBO Max), A todo vapor (2020, Amazon Prime) e Vale dos esquecidos (2022, HBO Max). Não deixa de ser interessante, afinal, tais iniciativas vinculam-se mais fortemente à cultura nacional e exploram aspectos raramente tratados por obras estrangeiras do segmento, mas é preciso muito cuidado para não se apropriar de culturas alheias e até em tratar crenças ainda vivas como se folclore fossem. Spectros, contudo, escapa bem desse risco, na medida que incorpora um elenco variado com predomínio de atores japoneses. 
Como produção, Spectros entretém e traz para o debate uma série de temas significativos, como a tortura, a intolerância e o racismo, bem como a diversidade étnica e cultural do povo brasileiro. Os efeitos visuais são muito bons e todos os atores funcionam bem em seus papéis. Vale a pena assistir, desde que se tenha em mente que não se trata de um seriado americano: o ritmo é bem mais lento, mas o prazer de reconhecer os espaços e a realidade ali representados garante uma boa diversão.

Cesar Silva

quarta-feira, 7 de junho de 2023

No Limiar de Novos Mundos

 



No Limiar de Novos Mundos (The Shores of Another Sea), Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Vera Duarte. 164 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1971. Lançado originalmente no mesmo ano.

 

Chad Oliver (1928-1993) notabilizou-se como um escritor de FC que abordou, como poucos, o tema do contato entre humanos e extraterrestres, tomando como base sua formação e atuação como professor de Antropologia, no qual fez longa carreira na Universidade do Texas. No Limiar de Novos Mundos não é diferente, é apenas mais sutil e com um nível de complexidade interessante, que ajuda a não tornar o romance só mais um neste subgênero dos mais explorados no campo.

Numa reserva na selva do Quenia, babuínos são capturados e enviados para os EUA. Royce Crawford a lidera junto a um disciplinado grupo de funcionários nativos, e convive com sua esposa e duas filhas pequenas. Tudo segue uma rotina aparentemente previsível, embora não sem a excitação do convívio com a natureza selvagem, até que Royce se espanta ao avistar uma estranha luz no céu. Mas isso seria apenas o prenúncio do que viria a seguir, quando alguns babuínos capturados somem das jaulas. Ao procurar respostas para estes mistérios, Royce e os demais irão se deparar com eventos ainda mais perturbadores, tais como novos comportamentos por parte dos babuínos – mais violentos e solitários (eles são primatas que vivem e agem coletivamente) –, que, eventualmente, os levará à conectá-los com a estranha luz que, vez por outra, se insinua como um farol na escuridão da selva.

Como disse antes, é uma história sutil, pois Royce descobrirá que a mudança de atitude dos babuínos se relaciona com uma manipulação do qual foram vítimas por parte de seres extraterrestres. A tal luz é, na verdade, a nave que aterrissou. Mas por todo o romance não se sabe quem são eles, porque vieram, o que querem e nem como eles são. A certeza do protagonista virá da forma mais dramática, quando uma de suas filhas é raptada pelos babuínos modificados e levada até o interior da nave. Tal mistério é intrigante e desafia a imaginação do leitor, e difere bastante dos outros dois romances de Oliver publicados no Brasil, que tratam do mesmo tema.

Primeiro em Vultos Sobre o Sol (Shadows in the Sun;1954), o romance de estreia do autor, o contato se dá por meio da descoberta da presença de alienígenas numa cidadezinha do interior dos EUA. Eles assumem a forma humana e criam colônias de ocupação planeta afora, até serem descobertos por um jovem antropólogo – mais detalhes aqui. Já em Os Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors; 1960), somos nós da Terra que descobrimos um mundo com vida inteligente e para lá partirmos para estabelecermos contato – ler a resenha aqui.

Pois a sutiliza de No Limiar de Novos Mundos se dá não apenas pelo fato dos aliens não se mostrarem, mas pela própria história ocorrer numa parte do mundo ainda não plenamente civilizada, a selva africana. É como se o próprio cenário fosse um lugar alienígena, pois não plenamente dominado e civilizado pelo branco ocidental. Como deixa escapar o próprio Royce, ele estaria vivendo a última geração de uma região prestes a desaparecer. Além disso, e principalmente, está embutida uma ironia, pois o ocidental, que domina os nativos e faz experiências científicas com os babuínos, passa a ser ele mesmo objeto de experiências por visitantes extraterrestres. No fundo, é uma reflexão instigante sobre o imperialismo e nosso comportamento predador e abusivo com outras espécies, com seus diferentes níveis de senciência e consciência de si próprias, no caso os primatas, não por acaso os mais próximos do ser humano.

Em certa passagem do livro, Royce faz uma reflexão interessante sobre os motivos para se aventurar pelo espaço e travar contato com seres de outros mundos. Na verdade, expressa o raciocínio de Chad Oliver e pode servir de base para um pensamento racional sobre o assunto:

 

Suponhamos que um dia o homem pouse num planeta distante. Por que teria ele de ir, que impulso o levaria a viajar através da escuridão e de anos-luz? Poderia ele explicar e mesmo tentar? Se estivesse preparado para explorar aquele mundo apavorante, se aprisionasse alguns espécimes, que faria se fosse atacado por seres monstruosos, aos quais não podia entender? Pararia, os deixaria em paz? (página 140).

 

Outro aspecto de interesse do livro é sua abordagem, digamos, culturalista, na caracterização dos personagens quenianos e do funcionamento de uma reserva. Tudo é muito realista, longe dos estereótipos relacionados com os povos que ali vivem. O autor também apresenta uma abordagem narrativa que soa quase que nostálgica, entre um mundo de vida mais simples e despojado com a natureza, e o outro que invade e o modifica gradativa, mas inexoravelmente com os valores e modos mais refinados da civilização. Para Oliver é como se o ser humano tivesse perdido algo de sua essência ao romper de forma tão drástica com sua ancestralidade. Como se percebe, é uma história rica, pois pode ser interpretada através de várias camadas.

Contudo, o que não deixou de me causar incômodo foi a maneira como a premissa de que a alteração do comportamento dos babuínos fosse causada pela interferência de seres de fora da Terra. É que ela é mal desenvolvida, pois nem é considerada a hipótese de que os eventos pudessem ter sido provocados por algum projeto militar e científico secreto de um governo do nosso planeta. Ainda mais no contexto polarizado da Guerra Fria, quando, sabe-se, várias experiências exóticas e eticamente questionáveis foram realizadas por alguns países.

Mas tal aspecto não chega a comprometer a força da história e a riqueza de suas discussões, só possíveis porque escritas por um dos maiores especialistas na FC nos assuntos relacionados com os contatos e diferenças entre culturas. Pois se a paranoia ganhou o primeiro plano em Vultos Sobre o Sol e o reconhecimento da alteridade tem relevância em Os Senhores do Sonho, neste No Limiar de Novos Mundos, o que sobressaiu foi a relativização crítica e irônica das muitas formas de imposição cultural , que, no fim das contas, como que se desmancha no ar, em meio a possíveis situações desestabilizadoras e incontroláveis, que só mostram a insignificância humana no contexto do universo.

Marcello Simão Branco