quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Senhores do Sonho

 Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors), Chad Oliver. Tradução: Erasmo Catauli Giacometti. 150 páginas. Rio de Janeiro: Edições GRD, coleção Ficção Científica GRD, n. 17, 1964. Lançamento original de 1960.

 


É sempre um momento especial ler um livro da clássica coleção de FC de Gumercindo Rocha Dorea (1924-1921), a mais importante da história do gênero no Brasil. Em seus 20 números publicou, de forma pioneira, autores clássicos e contemporâneos, além de brasileiros que se tornariam nomes de peso em nossa FC. Gumercindo era um editor especialmente sensível para publicar obras de autores não badalados ou conhecidos, mas, de inegável qualidade. Como no caso desde Os Senhores do Sonho, a primeira obra de Chad Oliver (1928-1993) publicada no país e, provavelmente, seu livro mais interessante.

Oliver apaixonou-se pela FC na adolescência e, anos depois, quando formado em Antropologia, uniu as duas preferências, com o conhecimento acadêmico como base para uma literatura altamente especulativa, mas igualmente verossímil. O autor foi um dos que mais adiante levou o tema da diversidade e da alteridade dentro da FC. Tirou o homem ocidental – em particular – de sua posição central para confrontá-lo com seus limites, preconceitos e esperanças.

No interior da FC o tema do contato entre humanos e alienígenas talvez seja o mais pródigo, e abordado das mais diferentes maneiras. O mais comum e popular talvez seja o da invasão violenta dos alienígenas ao nosso planeta – e vice-versa. Mas em Os Senhores do Sonho não há propriamente um cenário de invasão. É mais sutil e complexo, pois trata do contato entre duas civilizações muito diferentes. A humanidade descobre uma espécie humanoide, aparentemente inteligente, vivendo no nono planeta da estrela Sirius, situada a 8,6 anos-luz da Terra. É fácil visualizá-la, pois é a mais brilhante do céu noturno. Após o achado da missão de reconhecimento, as Nações Unidas – em segredo – procura por Monte Stewart, um prestigioso professor de Antropologia da Universidade do Colorado (EUA). Ele é convidado a liderar uma equipe de especialistas para contactar os habitantes de Sirius IX.

Depois dos preparativos e quase dois anos de viagem – sim, existe o recurso da velocidade acima da luz –, eles aterrissam no planeta. Dos nativos só se sabe previamente o que se viu das imagens captadas pelos cópteros – uma espécie de drone – e algumas fotografias. Desta forma, Monte e seus auxiliares têm de criar protocolos quase inéditos para estabelecer comunicação. Nesse aspecto, talvez o autor pudesse explorar mais os procedimentos tradicionais dos trabalhos de campo da etnografia. Pois, apesar de se estar a fazer contato com seres de outro mundo, pelo fato de serem humanoides, algum tipo de semelhança por comparação poderia ser tentado.

Monte sai a campo com alguns membros de sua equipe, mas estranham a aparente indiferença dos Merdosi – o nome deles, como vieram a saber depois. Mas o mais intrigante é a ausência de qualquer instrumentação. Eles vivem em harmonia, por assim, dizer, com a floresta. São humanoides, andam eretos, com os pés apresentando um dedo grande sobressaindo dos demais. Com braços muito longos, de modo que as mãos quase tocam o chão quando estão em pé. Não possuem pelos no corpo, e tem um rosto cumprido e fino, com grandes mandíbulas e olhos. Além disso, se movem com grande velocidade, quando preciso, pulando os cipós de árvore em árvore.

Mesmo confusos sobre o comportamento dos Merdosi, Monte Stewart e seu linguista Charlie Jenike conseguem, aos poucos, se comunicar com eles ao aprenderem rudimentos de sua linguagem. Mas algo dá muito errado, alterando os acontecimentos. Após visitarem uma aldeia e notarem que lá só havia idosos, mulheres e crianças, descobrem chocados que o acampamento foi atacado e os demais membros da expedição, inclusive suas esposas, barbaramente mortos. Não pelos Merdosi, mas pelos merdosinis, uma espécie de cão que acompanha os nativos todo o tempo, como animais de guarda e estimação.

É que os nativos utilizam os animais para sua proteção e obtenção de alimento. Mas por que houve o massacre? Como os nativos controlam exatamente os merdosini? O que fazer a partir de agora? A possibilidade de voltar à Terra quase se realiza. Mas Monte e Charlie solicitam ao Almirante York, comandante da espaçonave Gandhi, uma semana para que façam uma última tentativa. Pois, apesar da tragédia, querem descobrir o que aconteceu e por quê.

Os Merdosi desenvolveram uma outra forma de cultura e sociabilidade. Sem tecnologia alguma, justamente um dos aspectos mais importantes e característicos de todas as culturas humanas da Terra. Um povo que não utiliza instrumentos e ferramentas para transformar sua realidade. Contudo, tem o recurso de outro artifício. Mais complexo e subjetivo: o uso da mente. Seus poderes cerebrais os conectam entre si, dominam as demais espécies, e vivem em íntima comunhão com as forças da natureza. Não chegam a se comunicar por telepatia – pois se utilizam de uma linguagem verbal –, nem movimentam objetos com a mente (telecinese), mas projetam seus pensamentos e emoções sobre si próprios e, principalmente, sobre as outras espécies do planeta. Assim, eles obtêm o que desejam, manipulando a vontade dos animais. Além disso, e principalmente, sonham de forma intensa, quase misturando vigília e sono num mesmo estado de compreensão da realidade. Com tudo isso, os dois cientistas se dão conta de que estão diante de uma descoberta surpreendente e extraordinária. E que talvez seja muito arriscado apresentá-la à humanidade, com seus valores e objetivos tão diferentes e potencialmente desestabilizadores.

É um romance bonito de FC, com muito respeito sobre a equivalência de modos e relações entre povos diversos, alargando a compreensão sobre as várias dimensões possíveis de expressão da humanidade – no caso, para além da experiência terrestre. Contudo, a condução e o desfecho passam uma sensação meio naive. Pois Chad Oliver, embora seja um pioneiro de qualidade em temas de ciências humanas e sociais na FC (a corrente soft do gênero), ainda escreveu uma prosa e tipo de enredo em parte relacionado às peculiaridades da Golden Age. No qual as motivações dos personagens ainda não estão amadurecidas em sua densidade psicológica, além da apresentação de uma prosa mais direta e convencional que, se não desagrada, não se coaduna com a maior complexidade de estilo dos autores da New Wave, que levaram mais longe os temas sociais e os perfis dos personagens no gênero. O autor poderia estar situado numa espécie de transição entre um movimento e outro, o que não impede, como já dito, que se aprecie a leitura de um dos livros mais interessantes no subtema do contato com seres extraterrestres.

                                                                                      —Marcello Simão Branco

 

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