quarta-feira, 22 de março de 2023

Cidade dos deitados, Heloísa Prieto

Cidade dos deitados, Heloísa Prieto. Ilustrações de Elizabeth Tognato. 64 páginas. São Paulo: Cosac Naify, 2008.


Mesmo para um leitor especialista, muitas vezes certos títulos escapam, seja porque foram publicados em tiragens muito reduzidas, porque tiveram distribuição irregular ou regional, ou porque acabaram sendo colocados nas estantes erradas das livrarias, misturados a títulos que nada tem a ver com eles. Também pode ser porque a editora não promoveu o volume adequadamente ou porque circulou em um nicho não muito permeável a outros públicos. Fato é que sempre acabamos por encontrar, as vezes sem querer, um título interessante que passou despercebido quando de sua publicação. Este é o caso de Cidade dos deitados, da escritora paulistana Heloisa Prieto, publicado em 2008 pela editora Cosac Naify na coleção Ópera Urbana. 
Muitas coisas tornam este um volume especial. A começar pela capa dura, o papel encorpado e brilhante do miolo e as páginas pretas com todo o texto em branco. Mas o que se destaca, além do texto delicioso, são as ilustrações de Elizabeth Tognato, que dão um show visual que torna a leitura quase como a de uma história em quadrinhos. 
A inspiração são os cemitérios da capital paulista, que conseguimos reconhecer seja pelas vívidas descrições da narrativa, seja pelas ilustrações, que não têm um estilo único: cada página é uma surpresa, passando por montagens, bicos de pena, crayons, grafites, fotografias, lápis de cor, arte igital e muito mais.
O texto é uma novela-poema de horror que se lê em não mais que meia hora. Narra o passeio de uma transeunte (provavelmente a própria autora) por alamendas de um cemitério durante uma estranha noite insone, recheada de aparições e habitantes noturnos, até as primeiras luzes da manhã. 
Leitores de Neil Gaiman vão perceber a mesma satisfação melancólica de O livro do cemitério, e os fãs de Stephen King recordarão do mesmo clima onírico de "Andando na bala" (publicado na coletânea Tudo é eventual). Mas o texto de Prieto escapa da armadilha do pastiche na medida em que se apega a sua própria história pessoal – o texto faz referência a perda de uma parente querida –, aos espaços físicos paulistanos e ao imaginário brasileiro sobre os cemitérios e o "mundo dos mortos". Desse modo, replica o enlevo sem perder a originalidade. E o volume ainda vem acompanhado de um libreto de 36 páginas recheado de informações sobre cemitérios famosos de São Paulo e do mundo. Apesar do tema algo mórbido, tem uma leitura tão deliciosa quanto a da novela em si.
Por sua apresentação gráfica e título, qualquer um diria que Cidade dos deitados é um livro juvenil, e o encarte faz parecer que é, realmente, paradidático. Mas não é nada disso. Não que não possa ser lido por jovens, de fato acredito que o volume faria muito sucesso entre os adolescentes, mas a escrita é madura e exige participação do leitor, sem a qual pode nao ser possível aproveitar todos os detalhes do história.
Por este e outros aspectos já citados é que posso dizer que Cidade dos deitados é um trabalho de fronteira muito rico, que pode ser percebido em diversos níveis e matizes por diversos públicos. 
Enfim, Cidade dos deitados é uma dessas agradáveis surpresas, um encontro noturno com uma aparição delicada, sem o travo do horror que geralmente acompanha tais eventos.

Cesar Silva

domingo, 19 de março de 2023

A Obra de Arthur C. Clarke



    Neste 19 de março, Sir Arthur C. Clarke (2017-2008) morria há 15 anos, na cidade de Colombo, em Sri Lanka. Para valorizar sua memória e manter o interesse em sua obra, publico a atualização da pesquisa “Bibliografia Crítica de Arthur C. Clarke”, veiculada pela primeira vez no fanzine Megalon, número 72, de dezembro de 2017. Uma edição extra, que saiu depois do encerramento do fanzine em 2004, para comemorar o centenário de nascimento do autor.

Esta nova rodada da pesquisa sobre seus livros e afins apresenta algumas novidades com relação aos publicados no Brasil e em Portugal, principalmente com a descoberta do ótimo blogue lusitano, Ficção Científica em Português:  fclusa.wordpress.com, por meio do qual foi possível acrescentar algumas obras em língua portuguesa. Também estão incluídas as novas edições publicadas no Brasil de 2017 para cá, basicamente da editora Aleph.



O link de acesso para baixar o arquivo com esta nova versão está aqui: https://www.mediafire.com/file/4t0amnqhu1c8876/Pesquisa_Clarke_2023.pdf/file

Para aqueles que não tiveram acesso à edição integral do Megalon sobre o autor, ela pode ser baixada aqui: https://www.mediafire.com/file/bb5sdmliuig3r3n/Megalon_72.pdf/file

No dia 31 de março houve um programa no Youtube sobre o trabalho, no canal "Filosofia da Astronáutica e Ficção Científica", mantido por Edgar Smaniotto e Carlos Relva. Pode ser visto aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=dbxpk1m53lI

Boa diversão, e se tiver alguma sugestão, correção ou acréscimo entre em contato comigo: marcellobranco@yahoo.com

Marcello Simão Branco


sábado, 11 de março de 2023

Labirinto Digital

 Labirinto Digital, Mario Kuperman. Capa: Vivian Valli. 158 páginas. São Paulo: Marco Zero, 2004.

 


Desde a eleição de 2018 o presidente que esteve à frente do Brasil até 2022 – e felizmente não foi reeleito – e seus apoiadores fanáticos, difundem a tese de que as urnas eletrônicas não são seguras, podem ser fraudadas. Mas apesar de divulgarem, vez ou outra, depoimentos e vídeos atestando isso, provaram-se, elas sim todas fajutas. Pura manipulação mentirosa destinada, no fundo, a desacreditar as urnas para o manter no poder de forma ilegal e autoritária. Inauguradas em 1998, as urnas eletrônicas brasileiras são comprovadamente seguras, aperfeiçoadas a cada rodada eleitoral, e com repetidas e complexas verificações de sua confiabilidade, por instituições do país e do exterior, fazendo da eleição brasileira a mais confiável do mundo. Pois bem. Este romance, Labirinto Digital, aborda um tema semelhante.

No Brasil de um futuro próximo, além das eleições para os cargos eletivos, os cidadãos votam nos projetos de lei, sempre que são colocados em pauta no Congresso. Mas, na verdade, o mecanismo chamado de televoto – acoplado e acionado nos televisores – não confere aos eleitores o poder de decisão. É apenas uma consulta prévia, para que os parlamentares tenham uma noção do que desejam. Depois de saberem o resultado, deputados e senadores votam de forma definitiva, independentemente do preferido pelos seus eleitores.

Diego Bonato, recém-formado como agente da Polícia Federal, em Brasília, recebe sua primeira missão: ir até Manaus investigar uma pista que indica que pode estar havendo fraude no televoto da cidade. Mas ele meio que investiga às cegas, seguindo apenas uma vaga desconfiança por parte de seu chefe. Com isso, o agente tateia entre várias pessoas, como políticos, empresários, burocratas e até uma cartomante que, de forma irônica, é que lhe dará um rumo mais racional para suas investigações. Além destas figuras, ele conhece, de forma casual, uma linda mulher chamada Eleonora, uma chilena que está ilegal no país e teme ser expulsa. Ela faz parte de uma rede de contrabando de artesanatos, e também pelo encantamento por sua beleza, Diego hesita em agir contra ela e, aos poucos, devido aos rumos surpreendentes da investigação, passa a questionar também suas próprias certezas sobre seu papel de policial e do sistema que jurou defender.

O agente conhece também Laudelino Machado, um funcionário graduado da Central de Comunicações de Manaus, órgão responsável pelo monitoramento do resultado do televoto na cidade, que passa a auxiliá-lo nas investigações, procurando um possível sabotador dentro do órgão. Mas o interesse de Machado é menos na lisura dos pleitos e mais no próprio Diego, com suas tentativas de seduzi-lo. Aqui é interessante notar que o romance apresenta um personagem homossexual e, mais importante, tal orientação sexual não carrega, ao que parece, nenhuma carga de preconceito social. Tanto é que mais adiante, Machado termina por se casar com um colega de trabalho. A esta bem-vinda mudança de valores sociais, uma outra chama mais atenção: as crianças vivem com os pais até os cinco anos. Depois são educadas em internatos mantidos pelo Estado, e cortam os laços com seus genitores. Certamente, este novo valor é, no mínimo, controverso e, mais surpreendente, adotado apenas em alguns países. O Chile de Eleonora, por exemplo, mantém a família como o núcleo central da criação e unidade social.

Para além dessas mudanças sociológicas, o autor indica que o Brasil é um país economicamente desenvolvido, ou próximo disso, embora os costumes políticos clientelistas ainda joguem um peso importante nas relações políticas e sociais – como Diego Bonato irá descobrir para sua decepção. Além disso, o Brasil ainda convive com uma clivagem entre os interesses do Sul e do Norte do país, assunto que continua contemporâneo, principalmente do ponto de vista das regiões menos afluentes, o Norte e o Nordeste. Talvez para acentuar este aspecto, Kuperman situou a história em Manaus. Uma capital do Amazonas futurista, com videofones e carros voadores, mas onde o debate sobre a preservação da floresta continua sendo o tema mais importante. Ainda mais porque se aproxima a votação de um projeto de lei que pode levar a uma maior flexibilidade na exploração econômica do bioma. Pois este é o outro ponto de coincidência do romance com a atualidade, após termos o mesmo governo autoritário a incentivar o desmatamento criminoso, que atingiu níveis recordes.

Em sua investigação, o policial descobre a existência de uma organização secreta e, aparentemente invisível, chamada ácrata. De inspiração anarquista, ela estaria por trás das fraudes. Que de fato terminam por ser identificadas pelo namorado de Machado, que atesta que os resultados do televoto não mudaram os resultados das consultas, mas diminuíram as porcentagens da abstenção. Contudo, como irá descobrir Diego, o responsável não será um ácatra, mas alguém identificado com a causa de preservação da floresta.

Labirinto Digital é um romance interessante e surpreendentemente convergente com o momento atual, com boas ideias, mas mal desenvolvidas. Embora apresentados como uma organização subversiva, no fim nem se sabe quem são os ácatras, ou como realmente atuam. Fica muito vago. Já a chilena que se torna namorada de Diego e abala suas certezas, fica indefinida na trama. Inclusive com cenas que ficam soltas e sem continuidade posterior. E, por fim, após a descoberta de que ocorre mesmo uma fraude, os parlamentares pressionados acabam por aprovar uma lei que torna a consulta não só consultiva, mas deliberativa. Ou seja, os eleitores passam a decidir diretamente sobre os projetos.

Isso é celebrado de forma efusiva como um avanço democrático. De fato, em tese é, mas o autor não explora as possíveis consequências danosas: falta de reflexão prévia à votação, com a inevitável consequência plebiscitária de temas importantes decididos ´no calor da hora´, risco enorme de os interesses dos eleitores individuais serem influenciados ou corrompidos por grandes interesses corporativos e econômicos, além do risco de manipulação das informações. Estas possíveis consequências dialogam com as do conto “A Queda de Roma, Antes da Telenovela” (2011), do escritor português Luís Filipe Silva – publicado na antologia Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política. No caso desta história, se especula que o voto direto do eleitor através de um recurso tecnológico, acabe banalizando a política, que ficaria inserida como se fosse mais um programa de TV, facilitando assim a captura dos projetos de lei por grupos interessados.

Todas essas medidas que poderiam advir do avanço de uma democracia direta, são controladas, por assim dizer, por mecanismos antimajoritários, da desgastada democracia liberal: instituições que procuram controlar umas às outras e os partidos políticos, que canalizam e representam diferentes ideias e demandas da sociedade. Em sentido amplo, locus de vivências e disputas legitimas dentro de um regime político aberto e mais transparente. Pois eles fazem uma mediação, ainda que imperfeita, dos muitos interesses em jogo, em torno de valores, projetos e postos de obtenção de poder.

Em suma, Labirinto Digital é um romance que surge como promissor antes da leitura, mas se revela incompleto durante e depois dela. Deveria ter desenvolvido melhor os personagens e suas motivações além de, principalmente, as muitas e ricas possibilidades do contexto macro do enredo em si, mostrado como confuso e superficial. E tal deficiência se acentua ao se estar diante de um autor experiente que, até 2004, já havia publicado seis outros livros de ficção, além do longa metragem Jogo da Vida e da Morte (1972), que dirigiu e dividiu o roteiro com o prestigioso escritor Mário Prata, que versa sobre a história shakespereana de Hamlet em tempos contemporâneos. Já nos seus 82 anos, Kuperman tem uma obra que, podemos dizer, se situa entre temas de costumes burgueses e forte crítica social de suas injustiças e contradições. Pena que, como já dito, esta verve tenha sido mal trabalhada em seu romance de ficção científica.

Marcello Simão Branco

quinta-feira, 9 de março de 2023

O rei de amarelo, Robert W. Chambers

O rei de amarelo (The king in yellow), Robert W. Chambers. Tradução de Edmundo Barreiros, comentários de Carlos Orsi. 256 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

A história da ficção fantástica começou com a literatura gótica, passou pelo decadentismo e pelo romantismo, e só se tornou o que é hoje depois da crise econômica de 1929, que favoreceu o desenvolvimento explosivo das publicações pulp nos EUA, publicações estas que já existiam de forma incipiente desde o final do século XIX. Devido ao seu caráter algo alienante (que permitia aos que sofriam com as agruras da vida algumas horas de distanciamento) e aos processos de repodução mais acessíveis, as revistas pulp tornaram-se o principal espaço de entretenimento aos que não tinham dinheiro para obter acesso à cultura, frequentar cinemas elegantes ou comprar um rádio. Os editores desses periódicos criaram e promoveram diversas estratégias para otimizar as vendas; uma delas foi criar protocolos de produção para cada gênero, de modo a promover nichos de mercado e fidelizar os consumidores. Temas, abordagens, conteúdos, tudo era cuidadosamente manipulado para que as vendas fossem as melhores possíveis. Assim, surgiram aquilo que hoje chamamos de gêneros fantásticos: a fantasia, a ficção cinetífica e o terror, que se somaram ao faroeste, que já era bastante popular. Mais tarde viriam ainda as aventuras de guerra e de espionagem, mas isso é uma outra história.
O caso é que, devido a essa operação comercial muito bem elaborada, um certo tipo de literatura acabou por desaparecer do mercado, embora continuasse a ser praticada em ambientes não "civilizados" pela literatura pulpesca. Uma literatura que não respeita os protocolos comerciais e mistura os gêneros ao ponto de não ser possível determinar a qual deles o texto pertence. Foi dessa literatura "selvagem" que se originou toda a literatura de gênero como a conhecemos hoje. 
Escritores identificados com uma das primeiras publicações do gênero, a Weird Tales – lançada em 1923 nos EUA –, foram os construtores das bases da fc&f contemporânea, como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard, Clark Ashton Smith, entre outros. Mas eles não inventaram a roda. Antes deles, autores como Edgard Alan Poe, Ambrose Bierce, M. R. James, Lord Dunsany, Jan Potocki, Evgeni Zamiátin, entre outros, já enveredavam por esses caminhos obscuros. A maior parte é bastante conhecida e respeitada, mas há muitos que ainda não tiveram suas contribuições devidamente valorizadas. É o caso de Robert W. Chambers (1865-1933), escritor americano que escreveu dezenas de novelas populares, sendo O rei de amarelo uma de suas primeiras obras, publicada originalmente em 1895. O livro reúne vários contos mais ou menos amarrados por citações e referências interligadas à ideia de uma peça, chamada justamente "O rei de amarelo", cuja leitura leva à loucura. 
A edição da Intrínseca, publicada em 2014, traz nove contos mais um conjunto de dez poemas em prosa, e a excelente introdução de Carlos Orsi que acrescenta comentários e referências ao longo de todos os textos, apontando vínculos nem sempre tão evidentes como, por exemplo, a recorrência de nomes de personagens e cenários – que o comentador indica como sintoma de uma realidade paralela na própria mitologia da obra. 
Alguns dos contos têm o raro talento de nos fazer ter pesadelos, como "O reparador de reputações", "O emblema amarelo", "A máscara", No pátio do dragão" e "A demoyselle d'Ys". Outros são terror em estado primitivo, como "A rua da primeira bomba" um pungente drama de guerra que, a certa altura, torna-se um pesadelo. E ainda, textos de caráter realista, como "A rua dos quatro ventos", "A rua de Nossa Senhora dos Campos" e "Rua Barrée", cuja relação com o conceito de "O Rei de Amarelo" é bastante transversal.
O que causa tanto interesse nessa obra de Chambers é o conceito de universo compartilhado em torno de um livro amaldiçoado que, no caso, é uma peça de teatro. Em 1970, o escritor americano James Blish publicou uma versão pessoal para a peça maldita, ainda não traduzida para o português: apesar de Chambers estar em domínio público, Blish não está. 
Lovecraft, que cita Chambers em seu famoso ensaio O horror sobrenatural na literatura, emprestou do autor, com o "Necronomicon"  livro de segredos arcanos escrito por um místico árabe –, a ideia de um livro cuja leitura enlouquece, bem como a de uma mitologia antiga que ecoa no presente. Outro mestre do horror que confessou ser influenciado por Chambers foi Stephen King, e encontramos em A torre negra referências evidentes como, por exemplo, o Rei Rubro. Outros autores conseguem trabalhar de forma bastante similar ao estilo de Chambers, como a escritora russa Liudmila Petruchevskaia e o novaiorquino David Foster Wallace, entre outros. No Brasil, os casos mais bem sucedidos são os contos de Murilo Rubião e o romance Noite dentro da noite, de Joca Reiners Terron.
A leitura de Chambers hoje se reveste de significado na medida que aponta soluções narrativas não alinhadas aos protocolos de gênero criados pela indústria editorial, servindo pois como boa influência para fugir das cansativas e previsíveis estratégias literárias ensinadas nos cursos e oficinas de literatura criativa que pululam por aí. 
Cesar Silva