Humor na literatura de ficção científica
A ficção científica não é muito famosa por seu bom humor. Ao contrário, é um gênero mais alinhado com a futurologia pessimista, o que normalmente não dá muita margem ao riso. Também se costuma enxergar a classe científica como extremamente estóica, e a ficção que adota esse ambiente acaba contaminada também por esse conceito.
De fato, a maioria da fc nem se esforça por ser bem humorada. Ou se dedica a fazer enfadonhos discursos paracientíficos, alertar histericamente para um destino trágico da humanidade, ou ser piegas ao elevar jovens imberbes à situação de salvadores do universo. É claro que, como todos os demais gêneros, essas não são situações únicas. Alguns autores conseguem romper essa previsibilidade e desenvolver trabalhos surpreendentes, que se destacam da mediocridade geral e colocam-se num patamar mais elevado. Obras de teor filosófico, psicológico, épico, perturbadoras, emocionantes, maravilhosas e, porque não, engraçadas.
Na literatura, a fc humorística é rara, mas seus poucos exemplos são trabalhos de qualidade. O autor que mais explorou o filão foi britânico Douglas Adams (1952-2001) em uma série de seis livros iniciada com
O Guia do mochileiro das galáxias (
The hitchhiker's guide to the galaxy, 1979). Adams criou um universo absolutamente caótico, onde tudo pode acontecer e usa isso em favor do humor. Algumas de suas sacadas nesses livros tornaram-se parte da cultura pop, como o Dia da Toalha (25/05), comemorado no mundo todo por seus leitores.
Mas a verve cômica não é fruto recente na fc. O escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), mais conhecido por ter criado o detetive Sherlock Holmes, é provavelmente o exemplo pioneiro. No livro
O mundo perdido (
The lost world), publicado em 1912, Doyle insere um humor requintado na relação entre os personagens ao longo de sua perigosa jornada pela Amazônia em busca de um platô lendário onde ainda viveriam dinossauros. Toda a carga cômica é apoiada no personagem principal, o excêntrico Professor Challenger, que tem modos muito característicos de se relacionar com seus parceiros de viagem. Assim, Doyle aproveita para rir dos ridículos da sociedade científica.
O norte-americano Fredric Brown (1906-1972) já ridicularizava a paranóia americana por invasões em plena Golden Age da fc (anos 1940 e 1950), em seu romance
Os marcianos divertem-se (
Martians, go home..., 1955), contando a confusa invasão da Terra por alienígenas cínicos e absolutamente insuportáveis. Sendo uma invasão virtual – os marcianos surgiam como imagens holográficas –, os humanos não tinham como reagir ao falatório ininterrupto e a descarga de ofensas que eles adoravam proferir e, muitas vezes, a aparição incômoda acontecia em lugares e momentos nada próprios, colocando todos os humanos em estado de completo desespero.
Outro trabalho festejado entre os leitores e, na minha opinião, o melhor momento do humor na fc, é o romance de Harry Harrison (1925-2012)
Bill, o herói galáctico (
Bill, the galactic hero, 1965). Harrison monta um ambiente típico de
space-opera para depois demolir todos os seus elementos, um por um. Bill é um jovem sem nenhum futuro, numa colônia periférica do império galáctico, que é enganado pelo discurso de um militar cuja função é recrutar novos soldados. É claro que tudo o que o fulano diz é mentira mas, depois de alistado, não tem jeito: Bill é embarcado numa nave e, a partir daí, nada mais dá certo para o infeliz. Logo de saída, Bill perde o braço esquerdo num ataque à sua nave e tem implantado no lugar dele o braço direito de um de seus falecidos colegas, um negro rebelde e falador. Além de ficar com dois braços direitos, tem de enfrentar a rebeldia do braço implantado, que nem sempre concorda com as ordens que recebe. Isso é só um aperitivo da confusão que se torna a vida de Bill, sempre envolvido em situações de perigo por conta da burocracia imperial, da idiotice de seus companheiros ou de sua própria estupidez.
Mais sutil é o humor do excelente Damon Knight (1922-2002) em
O outro pé (
The other foot, 1966). Knight foi um autor da geração New Wave da fc (anos 1960 e 1970). Essa história, um dos poucos trabalhos do autor publicados em português, conta da situação inusitada de um homem que, por um capricho da natureza, tem sua consciência trocada com a de um alienígena. Preso num corpo estranho, o homem vai tentar reverter a situação, mas terá de enfrentar os instintos de seu novo corpo, que vão dominando-o pouco a pouco, enquanto o mesmo ocorre com seu antigo corpo, que agora tem a mente do alienígena.
A sutileza máxima do humor as vezes negro, outras apenas ácido, pode ser encontrada permeando toda a obra de Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007), um autor de fc que rejeitava o rótulo. Vonnegut foi um dos poucos autores de fc bem aceitos no ambiente mainstream (a literatura não-fc), justamente porque sua ficção é muito diferente do usual. Seu romance mais conhecido é
Matadouro 5 (
Slaughterhouse-five, 1969), uma história meio autobiográfica que conta o horror do bombardeio a bucólica cidade de Dresden pelos aliados durante a II Guerra Mundial, misturado aos delírios do personagem que acredita ter sido abduzido e viver uma existência paralela num zoológico alienígena, acompanhado por uma famosa atriz de cinema.
Outro autor que gostava de uma boa piada em seus textos era Isaac Asimov (1920-1992). Russo radicado nos EUA, Asimov é um dos pioneiros do gênero e escreveu centenas de livros de ficção e divulgação científica. Mestre em apresentar conceitos científicos de forma agradável e facilmente inteligível por leigos, Asimov é o autor de fc preferido dos brasileiros. Seus romances não eram especificamente cômicos, mas o autor reconhecia a enormidade do próprio ego e constantemente fazia piadas com isso, colocando em muitos de seus textos um alter-ego para ser ridicularizado pelos outros personagens. Esse humor sutil, inteligente e bem comportado está presente em todos os seus textos, não é preciso destacar nenhum em especial, pois Asimov foi um escritor tão regular que qualquer deles apresenta essa característica.
Mais um autor de destaque no gênero é o norte-americano Jack Vance, nascido em 1916 e o único desta relação que ainda está vivo. Vance escreveu uma comédia cujo título já ri de si mesma:
Ópera interplanetária (
Space opera, 1965). Tudo faz crer que se trata de uma
space-opera, subgênero da fc que costumeiramente utiliza ambientes espaciais para contar aventuras de guerra e heroísmo, como o filme
Guerra nas Estrelas, por exemplo, mas não é nada disso. Vance conta mesmo a história de um corpo de ópera, com coral e orquestra completos, que viaja pelo universo para levar a refinada arte terrestre aos seres incultos de outros mundos. Mas acontece que os alienígenas não pensam como nós e as apresentações da tal ópera nunca têm o resultado esperado.
No Brasil, sendo a fc um gênero pouco publicado, há ainda menos exemplos de humor. Contudo, o pouco que há, é excelente.
O fruto maduro da civilização (1993) é uma coletânea de contos e o único livro de fc de Ivan Carlos Regina, autor paulista de uma ironia refinada que se pode conferir na leitura de "A derradeira publicidade do hebefrênico Alfredo", "O tempo é um carrasco impiedoso" e outros textos que, além de engraçadíssimos, são parte do que de melhor já se escreveu no gênero por estas paragens.
Humor no cinema de ficção científica
O humor de ficção científica que chegou às mídias audiovisuais nem sempre foi de igual qualidade ao da literatura, mas algumas obras valem a pena ser lembradas.
No cinema,
Apertem os cintos, o piloto sumiu 2 (
Airplane II: The sequel, 1982), de David Zucker, aborda o gênero satirizando os filmes-catástrofe em versão espacial. A história conta as situações absurdas de um ônibus espacial de turismo que se acidenta durante uma viagem à Lua. Entre o grande elenco estão atores veteranos como Lloyd Bridges, Peter Graves, Chuck Connors e a participação muito especial de William Shatner, o icônico Capitão Kirk de
Star Trek.
S.O.S.: Tem um louco no espaço (
Spaceballs, 1987), de Mel Brooks, tira um sarro das modernas sagas de fc, mais exatamente a franquia
Star Wars, com muitas citações que fazem a alegria dos fãs, além de ótimas situações de metalinguagem que são a especialidade desse diretor norte-americano.
Outro longa muito interessante é
Galaxy quest (1999), que satiriza as séries de tv e o universo dos fãs de fc. Entre os atores, Sigourney Weaver, a eterna Tenente Rippley da franquia
Alien, ao lado de um elenco de comediantes de primeira linha em uma produção caprichadíssima, sobre o elenco de atores de uma série de tv que, durante a participação em uma convenção de fãs, é abduzido por alienígenas pacíficos que, depois de assistirem o seriado, acreditam que eles são heróis de verdade e podem salvá-los do ataque de um perigosíssimo vilão intergaláctico.
Também temos a sutileza mordaz de
Brazil (1985), de Terry Gillian, que nos apresenta a visão de um futuro absurdo no qual a burocracia tornou a vida uma impossibilidade prática. O título faz referência a canção
Aquarela do Brasil que, naquele ambiente opressivo, leva um burocrata inseguro e insatisfeito, a sonhar com um lugar melhor para viver.
Dr. Fantástico (
Dr. Strangelove, 1964), de Stanley Kubrick, com a excelente multi-interpretação de Peter Sellers, jogou a primeira pá-de-cal sobre a Guerra Fria. Neste clássico, um problema de comunicação entre um bombardeio americano e a sua base de operações provoca o risco do lançamento de uma bomba nuclear sobre o solo soviético. Em um crescendo de confusão, as duas nações se vêm às voltas com a ameaça cada vez mais concreta de uma guerra nuclear total, enquanto um cientista maluco tece as mais absurdas teorias sobre o fim da humanidade, e em diversos outros pontos do país, a violência explode alimentada pela ridícula paranoia de uma invasão comunista na América.
Uma fc por excelência, que usa o humor limpo e sem apelações, é a série
De volta para o futuro (
Back to the future, 1985), de Robert Zemmekis. Foram ao todo três filmes, sendo que o primeiro é um primor de roteiro, direção, cenografia e interpretação, narrando a história de um adolescente envolvido num experimento revolucionário que o joga trinta anos no passado. Preso num paradoxo temporal – um dos mais interessantes temas da fc –, ele vai aos poucos desaparecendo, pois sua presença no passado desencadeia fatos que não deveriam acontecer, alterando o futuro. Um dos melhores filmes de fc de todos os tempos.
Outro filme no mesmo tema, que vale a pena ser lembrado, é
O feitiço do tempo (
Groundhog Day, 1993), de Harold Ramis, fantasia urbana que, por envolver uma curiosa teoria sobre o tempo, pode ser classificado como fc. Nele, um insuportável apresentador de televisão, interpretado por Bill Murray, ao fazer a cobertura anual do Dia da Marmota, fica preso nele indefinidamente.
Por mais que se esforce, sempre acaba acordando no mesmo dia e passando pelas mesmas coisas novamente. Apenas ele sabe que tudo se repete e, desse modo, vai sendo confrontado pouco a pouco com a sua própria incapacidade como ser humano.
Mais ou menos no mesmo estilo temos
O show de Truman (
The Truman show, 1998), de Peter Weir, estrelando o famoso comediante Jim Carrey. A história mostra a vida de um homem que, sem saber, vive numa cidade cenográfica, sendo continuamente filmado, desde antes de seu nascimento, para um
reality show de grande sucesso. O filme se destaca na filmografia de Carey por ser sutil e delicado, muito diferente do estilo geralmente apelativo e debochado do ator.
Humor nas séries de tv de ficção científica
Na televisão, nem sempre o humor chegou a tanto refinamento quanto no cinema. Tal não é muito próprio da mídia mais popular de todas e, por isso, o que mais se vê nos
shows de tv é o humor grosseiro e apelativo. Parafraseando uma máxima empresarial: o humor refinado ri das ideias; o humor comum ri das coisas, e o humor grosseiro ri das pessoas. Com esta régua, o leitor pode montar sua própria escala de qualidade naquilo que vê por aí.
Mas vale destacar alguns seriados que conseguiram apresentar algo mais em matéria de humor na fc.
O exemplo mais conhecido, e que dispensa maiores comentários, é o seriado
Perdidos no espaço (
Lost in space), que teve três temporadas entre 1965 e 1968, sempre com a presença hilária do desprezível Dr. Smith e sua escada preferida, o Robô "Lata-de-Sardinha", como ele carinhosamente o chamava.
Entre os desenhos animados, o melhor exemplo desde sempre é
Os Jetsons (
The Jetsons), produzido entre 1962 e 1963 pelos estúdios Hanna-Barbera. Conta as trapalhadas de uma típica família do futuro e os problemas que ela enfrenta diante dos avanços da tecnologia, que nunca são acompanhados por uma proporcional evolução do ser humano, de forma que concluímos que, quanto mais as coisas mudam, mais ficam iguais. Similaridades com a nossa própria vida não são meras coincidências.
Outro seriado clássico é
Meu marciano favorito (
My favorite martian), comédia de costumes exibida nas tvs americanas entre 1963 e 1965, que usa a presença de um alienígena humanoide entre a sociedade classe média americana para fazer graça com o comportamento dela.
Outro seriado com o mesmo perfil é
Alf, o ETeimoso (
Alf), produzido entre 1986 e 1990. Neste caso, o alienígena não é humano, mas sim um estranho bicho peludo, último sobrevivente de um planeta que foi destruído pela estupidez de seus próprios habitantes. O seriado teve também uma excelente versão em desenho animado, contando como Alf vivia em seu planeta natal.
Mais um seriado que navegou as mesmas águas foi
3rd rock from the Sun, produzido entre 1996 e 2001, com a presença ilustre e premiada de John Lithgow. Nele, um grupo de alienígenas assume a forma de uma família humana para estudar o comportamento da espécie local. Porém, nem todas as transformações foram bem sucedidas... na verdade, nenhuma delas.
Inédito na tv brasileira, mas possivelmente disponível em canais a cabo e por satélite, o seriado britânico
Red Dwarf, produzido entre 1988 e 1993, conta a história do último sobrevivente da Terra viajando pelo que restou da galáxia numa enorme espaçonave, acompanhado de mutantes e alienígenas muito suspeitos. Seu humor advém principalmente da sátira e do pastiche de outros seriados e filmes de fc.
Também da Inglaterra vem a nova série do clássico seriado
Doctor Who, cuja primeira temporada foi produzida em 1963. Esta nova série, que estreou em 2005 e ainda está em produção, conta a história do último dos Senhores do Tempo que, por algum motivo misterioso, sente uma atração irresistível pela Terra. A bordo da Tardis, uma poderosa máquina do tempo em forma de cabine telefônica azul ultramar, este Doutor sem nome combate invasões alienígenas e distorções temporais sempre na companhia de uma beldade terrestre que muda de tempos em tempos. Algumas vezes, as aventuras são bastante dramáticas, mas sempre contadas com muito bom humor e repletas de piadas inteligentes que exigem a atenção do expectador.
Outro exemplo recente do humor na fc televisiva é a multipremiada
The big bang theory, sitcom focada em um disfuncional grupo de pesquisadores acadêmicos de uma universidade americana e as dificuldades que eles têm em se relacionar entre si e com as pessoas a sua volta. A fc aparece principalmente em citações, uma vez que o gênero é considerado um dos pratos favoritos dos
nerds em geral. O seriado estreou em 2007 e é um grande sucesso no mundo todo.
Humor nos quadrinhos de ficção científica
Nos quadrinhos, o humor poucas vezes caminhou ao lado da fc. O exemplo mais clássico dessa rara união está na tira
Brucutu (
Alley Oop) de Vincente T. Hamlim, criada em 1932. Brucutu é um troglodita que vive entre os dinossauros e viaja pelo tempo através de uma máquina inventada por um cientista maluco do futuro, o professor Papanatas.
Em 1947, o cartunista Carl Barks criou para a Disney, inspirado no Pato Donald e seus sobrinhos, uma série de histórias com Patópolis, uma cidade habitada por patos e outros bichos.
Sua principal criação foi o
Tio Patinhas (
Scrooge McDuck), empresário multimilionário que sempre se mete em encrencas por causa de sua ganância desmedida. Muitas dessas aventuras tiveram cenários de ficção científica, com os patos indo à Lua, ao fundo do mar e a cidades imaginárias, em histórias inteligentes e divertidas.
Em 1967 surgiu a série francobelga
Valérian, agente espaço-temporal (
Valérian), da dupla Pierre Christin e Jean-Claude Mézières, que usa de bom humor em doses equilibradas mesclado com muita ação para contar as aventuras de um agente do futuro encarregado de impedir que disfunções espaço-temporais, naturais ou não, prejudiquem o contínuo espaço-tempo. As histórias de Valérian e sua acompanhante Laureline são muito criativas e de alta qualidade artística, uma característica do quadrinho europeu.
Nas franjas do gênero, está um dos maiores sucessos dos quadrinhos em tiras modernos:
Calvin e Haroldo (
Calvin and Hobbes).
A série, publicada entre 1985 e 1995, tem legiões de fãs em todo o mundo, inclusive no Brasil. Seu autor, Bill Watterson, muitas vezes coloca o garotinho traquinas e seu tigre de pelúcia em situações típicas da fc, como viagens no tempo, por exemplo. São invariavelmente tiradas excelentes e de um humor finíssimo.
Também com contatos eventuais com a fc, merece ser registrada uma série dos irmãos Gilbert e Jaime Hernandez, com uma turma de garotas muito divertidas que se envolvem em todo tipo de aventuras. Mais conhecida como
Love & Rockets ou
Locas, a série criada em 1982 não se preocupava muito com a verossimilhança, apenas situava as garotas em algum ambiente exótico, as vezes futurista, outras em meio aos dinossauros e, desse modo, discutia temas ligados ao universo e ao imaginário feminino.
Pouco mais há que se lembrar. O que determina que fazer humor na fc não é apenas um caminho difícil, como sempre é fazer humor de qualidade, mas uma boa oportunidade de desenvolver um modo novo e diferenciado de tratar o gênero. Quem sabe não esteja justamente aí um caminho favorável para uma bem sucedida ficção científica brasileira, que escape dos lugares comuns e modismos importados tão replicados pelos fãs.