sexta-feira, 26 de abril de 2024

A mão que pune: 1890, Octávio Aragão

A mão que pune: 1890
, Octávio Aragão. 212 páginas. Rio de Janeiro: CJD, selo Caligari, 2018.

Depois de um prolongado hiato (seu último livro, Reis de todos os mundos possíveis, foi publicado em 2013 pela Draco), o professor e escritor carioca Octavio Aragão, que muitos conhecem como o pai da franquia Intempol, retornou em 2018 com o romance A mão que pune: 1890, pela Caligari, selo da Editora CJT, do Rio de Janeiro. Trata-se de uma aventura de ficção científica de contorno steampunk, pulpesca e movimentada, no mesmo ambiente de seu primeiro romance A mão que cria (Mercuryo, 2006), com uma profusão de personagens da ficção contracenando com personalidades históricas, num resultando que fica entre a ficção alternativa e história alternativa. 
A história de A mão que pune: 1890 ocorre numa realidade histórica já bastante alterada pelos eventos do volume anterior. A França, ambiente dos primeiros movimentos da narrativa, é uma república presidencialista que tem o escritor Julio Verne como chefe de Estado. A confiança de Verne na ciência e suas ideias tecnologicamente inovadoras tornaram o pais uma potência do século XIX, na qual cientistas pesquisam todo tipo de bizarrices. Experiências com seres humanos, por exemplo, são muito frequentes e os resultados deles trarão muitos problemas para o protagonista, o jornalista Angelo Agostini, cartunista ítalo brasileiro que inicia a história em Paris, desolado com a morte recente da amante e um filho bebê para cuidar. Ao visitar a Feira Mundial de Paris, em 1890, Agostini reconhece D. Pedro II, imperador do Brasil, que está em Paris em segredo para tentar obter a cura para uma doença misteriosa que está matando seu filho. Mas a França está a beira de uma guerra promovida por um grupo extremista que pretende fazer uso dos mortos-vivos de Dr. Frankenstein como principal força de ataque contra os híbridos entre homens e animais advindos das pesquisas de um certo Dr. Moreau, que formam a guarda pretoriana do regime verniano. A essa problemática já bastante complicada, acrescente-se o sequestro do filho de Agostini e uma batalha de dirigíveis nos céus do Brasil, regada a generosas doses de violência e pirotecnia, e temos como resultado final uma história extremamente movimentada e muito difícil de compreender. 
A estrutura narrativa barroca é uma das assinaturas estilísticas de Aragão, que geralmente começa suas histórias em ritmo leve e convencional, mas acelera constantemente de forma que, a certa altura, a narrativa fica tão frenética que é como tentar acompanhar um filme projetado em alta velocidade. Além disso, a grande quantidade de personagens similares – todos são maus e violentos – torna a identificação de quem matou quem num complexo quebra cabeças no qual as peças não se encaixam muito bem. Fica a amarga sensação de que perdemos alguma coisa pelo caminho, justamente aquilo que seria a chave para o entendimento pleno da história. 
Mas, na verdade, não há nem nunca houve chave alguma. Aragão é um autor que trabalha mais no nível das sensações do que da racionalidade, ou seja, suas histórias são para serem sentidas, não compreendidas. A tecitura narrativa não-linear soa algo desordenada, como uma história contada através de fragmentos aleatórios extremamente intensos. É como se o leitor fosse um soldado no front de uma batalha, tão absorvido pela necessidade de manter-se vivo em meio a barafunda que não consegue ter uma visão geral do que está acontecendo. Por ver a coisa de muito perto, perde toda a perspectiva.
É praticamente impossível ser mais preciso quanto aos contornos da história deste romance. Isso pode ser uma vantagem, pois também é praticamente impossível dar spoillers. Mas é certamente uma peça impressionante, tanto que conveceu os conservadores membros do Clube dos Leitores de Ficção Científica a dar-lhe o prêmio Argos de melhor romance de 2018 (o Prêmio Argos é votado apenas pelos associados do referido Clube e escolhe, anualmente , os melhores textos originais longo e curto da ficção fantástica brasileira). 
Christopher Kastensmidt, escritor texano radicado no Brasil e autor dos contos da série A Bandeira do Elefante e da Arara, assina um prefácio que entra na brincadeira de Aragão, antecipando o nonsense que se multiplicará nas páginas seguintes. 
Por isso tudo, não há necessidade de ler A mão que cria para fruir A mão que pune. Se você ficar com a impressão que perdeu algo, relaxe. A ideia é essa mesmo.
Cesar Silva

sexta-feira, 19 de abril de 2024

BESTA DE GÉVAUDAN


BESTA DE GÉVAUDAN

Miguel Carqueija

 

Não saia de casa à noite,

aguarde até de manhã;

que ela vem como um açoite:

a Besta de Gévaudan!

 

Quem tem um uivo medonho

e matar é o seu afã,

quem mais parece um mau sonho?

É a Besta de Gévaudan!

 

Ela é a fera noturna

que ataca para matar:

e pela noite soturna

está sempre a vaguear!

 

Nada consegue por medo

na perversa criatura,

que carrega o seu segredo

desde o monte até a planura!

 

 

Ó Deus, protege este povo!

Como será o amanhã?

Sempre mais mortes, de novo,

na vila de Gévaudan?

 

A Besta quer muito sangue

e não receia morrer:

deixa sua vítima exangue,

ela mata por prazer!

 

Que mal que fez esta terra

pra tamanho merecer?

E sustentar esta guerra

Com tão poderoso ser?

 

Cavaleiros e cachorros

o monstro já perseguiram

pelas charnecas e morros

porém nada conseguiram!

 

Precisamos de um herói

ou então de um grande santo

porque esta matança dói

e a Morte estende o seu manto!

 

É grande a dor no horizonte

e reina a fatalidade;

de onde será a fonte

que gerou essa maldade?

 

As patas pisam silentes

como forradas por lã;

punindo os impenitentes:

a Besta de Gévaudan!

 

Olhos de sangue injetados

cheios de ódio a nós espiam

enquanto os mortos, coitados,

pelas estradas jaziam!

 

É um lobo, uma hiena,

ou um dragão repulsivo

que nos mata sem ter pena?

Será dos céus um aviso

 

do que virá sobre a França

e que fará perecer

homem, mulher e criança

e será ver para crer?


Este é o flagelo de Deus,

a Besta é um vaticínio:

protejam os filhos seus

que aí vem o morticínio!

 

E o bispo na procissão

suplica o auxílio dos santos:

livrai-nos da maldição,

enxugai os nossos prantos!

 

Rio de Janeiro, 6 de abril de 2024

 

 

 imagem pinterest

quarta-feira, 3 de abril de 2024

A Caixa Verde

 




A Caixa Verde (Claimed), Gertrude Barrows Bennett. Tradução: Gustavo Terranova Aversa. Capa: Natália Mieko Okamoto Aversa. 247 páginas. São Paulo: Andarilho, 2023. Lançamento original de 1920.

 

Uma tendência dos últimos anos no ambiente editorial voltado à FC&F no Brasil tem sido a publicação de autores estrangeiros em domínio público. Isso se tornou mais presente por causa da entrada de vários desses autores nessa condição. Com isso, além de nomes consagrados como, por exemplo, H. G. Wells e Lovecraft, outros menos conhecidos ou inéditos no país ganharam suas edições.

Este é o caso desta autora, Gertrude Barrows Bennet (1883-1948), apesar de A Caixa Verde não ser sua primeira obra a ser lançada no Brasil. Antes, dentro deste contexto recente, ela já teve publicados As Cabeças de Cerbero (The Head of Cerberus; 1919) e A Cidadela do Medo (The Citadel of Fear; 1918), pela editora Melusine, no sistema de financiamento coletivo Catarse.

A Caixa Verde começa com a descoberta de uma ilha alçada à superfície do mar depois de uma poderosa tempestade que quase tragou um navio na região das ilhas portuguesas dos Açores, no Atlântico Norte. Parte da tripulação vai ao pedaço de terra e se depara com um conjunto de altas colinas rodeadas por estranhas formações que parecem ruínas de uma cidade desaparecida. Um dos marujos traz um pedaço tirado de uma pedra e, ao mexer nela com mais cuidado no barco, vê surgir uma estranha e hipnótica estrutura retangular de cor esverdeada. James Blair, contudo, passa a ter pesadelos e visões perturbadoras, e vende a caixa numa loja de antiguidades. Mas esse objeto irá amaldiçoar toda a pessoa que tem contato com ela. Como é o caso de Jesse Robinson, um empresário de personalidade autoritária que vive com sua linda sobrinha, Leilah Robinson. Após contato com a caixa, ele passa mal, recebe a visita de um jovem médico, o doutor Vanaman, e a partir daí os três estarão definitivamente envolvidos pelo poder maléfico e sobrenatural da caixa, que, além disso, desperta curiosidade pela inscrição misteriosa numa de suas bases e por não ter uma abertura visível para se conhecer o que pode, eventualmente, ter em seu interior.

A autora escreve muito bem, tem uma linguagem fluente, sem firulas, e as imagens que cria a partir dos poderes da caixa impressionam pela imaginação de tons verdadeiramente fantásticos. Além disso, seus personagens são pouco mais densos do que o habitual nas revistas pulps, onde, a história foi primeiro publicada de forma seriada, na revista Argosy. Apesar disso, talvez fosse comum para a época, temos o manjado triunvirato: o ancião poderoso, sua linda protegida e um jovem cientista que, ao prestar serviços ao homem, se apaixona pela garota. Tal estrutura foi repetida à exaustão na literatura pulp, quadrinhos, séries de TV e cinema, século XX adentro. Mas não chega a incomodar nesta história, pois, como dito, ela é bem dinâmica e está centrada no mistério da caixa e seus efeitos perturbadores nas pessoas.

Tal como uma história circular, o desenlace se dá no mar: Robinson e sua sobrinha são raptados por um barco sobrenatural e Vanaman, claro, vai no encalço para resgatar, principalmente, Leilah. Mas, mais importante: o que seria exatamente esta caixa verde, e porque exercia esses poderes, e de quem, afinal ela era? As respostas são parcialmente oferecidas no contexto de uma civilização perdida que teria existido em tempos imemoriais entre a América do Norte e a Europa, sim, o continente mítico da Atlântida. Ao possuir a caixa e procurar desvendar seus poderes, Jesse Robinson desencadeou a fúria de uma antiga entidade atlante que, renascida, passou a reivindicar a devolução do objeto.

Quase tão interessante quanto a história, é a figura da autora, que foi descoberta, por assim dizer, em 1952, quatro anos após sua morte, quando do lançamento em livro do pequeno romance The Citadel of Fear, onde o pesquisador Loyd Arthur Eshbach (1910-2003) apresentou provas sobre sua identidade. Isso porque, em vida ela publicou com o pseudônimo de Francis Stevens, entre os anos de 1917 e 1923, quando escreveu doze histórias publicadas em revistas, como a já citada Argosy e em Weird Tales. Por receio de não ser bem recebida, ela sugeriu ao editor que a publicasse com um nome fictício, vindo daí o nome que ficou associado a um homem. Pelo fato de ter tido uma carreira muito curta, até a descoberta de sua verdadeira identidade muitos imaginaram, inclusive, que Francis Stevens fosse pseudônimo do autor e editor prestigiado da época, A. Merritt (1884-1943).

Portanto, sendo uma mulher, ela foi uma precursora nos gêneros FC&F nos Estados Unidos, especialmente na primeira metade do século XX, num ambiente extremamente masculino e machista. Para além de seu pioneirismo de gênero, Bennett é um nome importante pela qualidade de sua obra, uma instigante mistura entre ficção científica, fantasia e horror, bem ao feitio da corrente weird que tomou as páginas de muitas das pulp magazines nas décadas de 1920 e 1930. O influente crítico Sam Moskowitz (1920-1997) chegou a afirmar que ela foi “a maior escritora de FC no período entre Mary Shelley e C.L. Moore” – citado no livro Partners in Wonder: Women and the Birth of Science Fiction, 1926-1965, de Eric Leif Davin, publicado em 2005.

Por tudo isso, esse lançamento da pequena editora Andarilho – que inclui como brinde, um mapa da Atlântida! – na sua simpática coleção de livros de FC&F de autores em domínio público, merece mais atenção: seja pelo prazer de uma aventura enigmática e inteligente, seja por aqueles que pesquisam sobre a história da FC&F.

Marcello Simão Branco