terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Filhos de sangue e outras histórias, Octavia E. Butler

Filhos de sangue e outras histórias
(Bloodchild and other stories)
, Octavia E. Butler. Tradução de Heci Regina Candiani. 240 páginas. São Paulo: Morro Branco, 2020.

Por muito tempo, os leitores brasileiros de ficção científica se perguntaram por que os livros de Octavia Butler não eram traduzidos no país. Acreditava-se que talvez fosse o fato da escritora não ser conhecida aqui, apesar de ter conquistado uma coleção dos principais prêmios do gênero e ter alguns contos publicados na edição brasileira da revista Isaac Asimov Magazine. Embora a maior parte dos escritores vistos na IAM também sofrerem do mesmo mal, essa nunca pareceu ser uma explicação suficiente, pois alguns tiveram chances, como Kim Stanley Robinson, Connie Willis e George R. R. Martin, por exemplo. 
Alguns dos motivos ficaram mais claros quando a editora Morro Branco lançou-se à aventura de publicar no Brasil o melhor da ficção científica e fantasia escrita por mulheres. E, entre todas elas, nenhuma é mais relevante que Octavia Butler, considerada a grande dama da fc mundial. Já no primeiro título de Butler traduzido aqui, Kindred: Laços de sangue (Kindred), o motivo vem a tona de forma clara: a ficção de Butler é muito diferente daquilo que o leitor brasileiro estava acostumado a  receber. A começar pelo tema que trabalha questões de preconceito e intolerância com uma crueza dolorosa. Butler não embarca no conceito da golden age de que a ficção científica deve tratar dos problemas com positividade e universalidade, geralmente extrapolados em futuros distantes para não perturbar os homens brancos que formam o grosso do público do gênero não só no Brasil, mas em toda parte. Butler não faz concessões; sua faca está afiada e cutuca bem em cima da ferida ainda aberta. 
Desde então, Butler tornou-se a autora de fc mais publicada da Morro Branco e uma das mais traduzidas no Brasil, com oito títulos: Kindred (2017), Despertar (2108), Ritos de passagem (2019), Imago (2021), A parábola do semeador (2018), A parábola dos talentos (2019), Semente originária (2021) e Filhos de sangue e outras histórias (2020), que é o objeto desta resenha. 
Publicada originalmente em 1996, Filhos de sangue e outras histórias é uma coletânea de contos e ensaios que reúne boa parte da produção curta da autora. Sua republicação em 2005, com acréscimos, é a base da tradução brasileira. Portanto, a coletânea reunia, a época, toda a sua produção curta. A outra única coletânea da autora é Unexpected stories, de 2014, ainda inédita aqui. Butler confessa, no breve prefácio, que tem enorme dificuldade em trabalhar com a ficção curta e que se sente muito mais à vontade nos textos longos. 
O volume é formado por três divisões principais. A primeira, nomeada "Histórias", apresenta os cinco contos antes publicados, sendo que dois deles foram vistos na já citada versão brasileira da IAM. A segunda parte é "Dois ensaios"  e a terceira, "Novas histórias", apresenta dois contos escritos para a segunda edição da coletânea. Todos os textos são complementados por notas da autora que ajudam na contextualização e no entendimento dos problemas ali apresentados, isso quando não complicam ainda mais as coisas. 
O conto que abre a primeira seção é "Filhos de sangue", originalmente publicado em 1984, ganhador dos prêmios Hugo e Nebula. É bastante difícil resumir o contexto principal deste conto, certamente um dos mais expressivos momentos da fc em todos os tempos. Conta a história de uma família, mais precisamente de um jovem pertencente a ela, que vive em um planeta em relação de interdependência biológica com os seres dali, uma antiga raça inteligente que estava em franca decadência até que os humanos lá chegaram. Essa relação implica que os homens humanos servem como hospedeiros dos ovos alienígenas, que se desenvolvem em seu interior até eclodirem em larvas famintas. Nesse momento exato é preciso fazer a retirada das larvas, antes que elas devorem o hospedeiro de dentro para fora. Por sua vez, os alienígenas protegem os humanos das dificuldades da sobrevivência naquele ambiente hostil, alimentando-os com um tipo de leite narcótico que secretam. Apesar do horror que parece significar ser hospedeiro dos ovos alienígenas para um garoto prestes a ser incubado, especialmente depois de testemunhar um parto é extremamente sanguinolento, há uma relação de afeto profundo entre o hospedeiro e alienígena, bem como entre as famílias humanas e alienígenas que não pode ser deixada de lado.
À primeira leitura, parece uma metáfora para a escravidão, mas a própria autora diz que não foi essa a ideia. De fato, a discussão está mais vinculada ao dom da maternidade que, neste caso, cabe tanto às mulheres humanas, que geram seus próprios descendentes, quanto aos homens humanos, que incubam as futuras gerações de alienígenas. Ou seja, trata-se mesmo é de uma estranha história de amor. 
O segundo conto é "O entardecer, a manhã e a noite", de 1987. Aqui, estamos às voltas com algum tipo de doença genética altamente disseminada na população, que ataca o sistema nervoso e leva as pessoas a se mutilarem até a morte. Acompanhamos a visita de um casal à mãe de um deles, interna de uma clínica que trata de pessoas com a doença. Ambos são filhos de pessoas que tiveram a doença, o que significa que também a têm e terão de enfrentar as consequências em algum momento no futuro. A questão é: seria justo ter filhos eles mesmos nessa circunstância? Há algo de bradburyano nesta história, porém Butler deriva mais para o drama familiar do que para o horror, que geralmente caracterizava o mestre. 
O conto seguinte é "Parentes próximos", publicado em 1979. Este não é um conto de fc, mas segue alguns de seus protocolos. Trata-se de um diálogo entre uma mulher jovem e o irmão de sua mãe recentemente falecida, e a conversa vai revelar verdades ocultas que estiveram sempre à vista. Esta história me lembrou muito o conto "Entre irmãos", de José J. Veiga, mais pela situação em si, do que pelo enredo. 
"Sons de fala" é o outro texto que já havia sido traduzido na IAM brasileira, também ganhador do Hugo. Trata-se de um conto publicado originalmente em 1983, que relata os fatos dramáticos que uma jovem senhora tem de enfrentar num mundo pós-apocalíptico no qual uma pandemia emudeceu todas as pessoas. Mas não só isso: além de desprovidas de linguagem, as pessoas também perderam a capacidade de entender a escrita, de modo que a comunicação ficou absolutamente comprometida. Forçada a sair da segurança de sua casa, a mulher pega um ônibus mas uma briga acaba fazendo todos desembarcarem num lugar perigoso. Num mundo em que a civilização caiu, uma bela mulher sempre será a vítima perfeita e é assim que a história inicia. 
Histórias sobre o fim da civilização por causa de pandemias mundiais são muito comuns na fc. E sempre funcionam, porque é uma premissa muito factível, como todos podemos confirmar. A contribuição de Butler ao subgênero é centralizar a narrativa no problema do esvaziamento das palavras, que nem sempre é discutido e, mesmo quando é, passa em segundo plano, como em 1984, de George Orwell. Um conto filosófico que implica em importantes discussões a respeito do valor das palavras na sociedade.
O conto seguinte é "Atalho", de 1971, certamente um dos primeiros escritos da autora e o mais curto do volume. Também é um texto mainstream, embora pudesse perfeitamente ser ambientado num cenário distópico qualquer. Quem quiser, pode imaginar que a história se passa em algum assentamento decadente em um planetóide qualquer, nos subterrâneos de Marte ou num futuro pós apocalíptico, mas o caso é que as coisas narradas podem muito bem acontecer neste exato momento em algum lugar do mundo, porque as pessoas levam suas desgraças para qualquer parte que forem. Conta a história de uma mulher trabalhadora que tenta sobreviver num ambiente machista e preconceituoso que a vê apenas como um objeto. 
A seção de ensaios traz o artigo "Obsessão positiva", de 1989, no qual Butler oferece um relato autobiográfico de sua carreira na escrita, e "Furor scribendi", de 1993, que é uma espécie de manual e escrita, com conselhos valiosos para quem pretende se aventurar no nada maravilhoso mundo da literatura comercial. 
A seção final traz os contos "Anistia" e "O livro de Martha", escritos em 2003 para a reedição da coletânea publicada em 2005.
"Anistia" narra uma entrevista de emprego, mas não um emprego qualquer, uma vez que os contratantes são alienígenas que invadiram a Terra há algumas gerações. O planeta está agora definitivamente ocupado por duas raças inteligentes, mas tudo leva a crer que os alienígenas são os atuais donos dele, pois são mais inteligentes, mais poderosos e mais tolerantes. As comunidades humanas são até deixadas razoavelmente em paz a maior parte do tempo, mas os alienígenas precisam dele nós por vários motivos. O principal é que somos uma espécie de droga para eles, que se sentem muito bem depois de manter uma relação psíquica conosco. Para se relacionar com os humanos, os alienígenas - que são formados por comunidades de minúsculos seres sensientes - contratam tradutores, e é um deles o protagonista deste conto, na verdade uma jovem que foi abduzida quando criança e relata sua experiência para os candidatos a contratação. Esta história guarda algumas semelhanças com "Filhos de sangue". Embora o panorama e as premissas sejam bem diversas, também conta uma relação de simbiose entre humanos e alienígenas, na qual os homens tornam a vida dos alienígenas menos difícil enquanto estes impedem que nos exterminemos a nós mesmos, ainda que muitos acreditem que tenhamos esse direito. 
"O livro de Martha" é um conto curiosíssimo. Narra a discussão entre uma mulher e Deus, que O acusa de não fazer o melhor pelos homens que criou. Deus argumenta que fez o melhor em todos os aspectos, que se não parece é porque a visão da mulher é limitada. Deus então propõe que ela diga o que Ele deveria fazer para tornar o mundo melhor. Mas somente uma coisa, pois o excesso de alterações levaria a humanidade ao autoextermínio. E a proposta de mulher é um tanto inusitada.
Fecha a edição, o apêndice "Questões para discussão", com treze questões propostas nos contos para serem aprofundadas pelos leitores, o que torna o livro um material interessante para ser trabalhado em salas de aula no ensino médio e até na universidade, tal é a profundidade das questões.
Filhos de sangue e outras histórias é o livro perfeito para se iniciar nos temas e problemas da ficção de Octavia Butler, que são continuamente retomados em sua ficção longa e caudalosa, que merece ser conhecida e frequentada. 
Cesar Silva

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Senhores do Sonho

 Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors), Chad Oliver. Tradução: Erasmo Catauli Giacometti. 150 páginas. Rio de Janeiro: Edições GRD, coleção Ficção Científica GRD, n. 17, 1964. Lançamento original de 1960.

 


É sempre um momento especial ler um livro da clássica coleção de FC de Gumercindo Rocha Dorea (1924-1921), a mais importante da história do gênero no Brasil. Em seus 20 números publicou, de forma pioneira, autores clássicos e contemporâneos, além de brasileiros que se tornariam nomes de peso em nossa FC. Gumercindo era um editor especialmente sensível para publicar obras de autores não badalados ou conhecidos, mas, de inegável qualidade. Como no caso desde Os Senhores do Sonho, a primeira obra de Chad Oliver (1928-1993) publicada no país e, provavelmente, seu livro mais interessante.

Oliver apaixonou-se pela FC na adolescência e, anos depois, quando formado em Antropologia, uniu as duas preferências, com o conhecimento acadêmico como base para uma literatura altamente especulativa, mas igualmente verossímil. O autor foi um dos que mais adiante levou o tema da diversidade e da alteridade dentro da FC. Tirou o homem ocidental – em particular – de sua posição central para confrontá-lo com seus limites, preconceitos e esperanças.

No interior da FC o tema do contato entre humanos e alienígenas talvez seja o mais pródigo, e abordado das mais diferentes maneiras. O mais comum e popular talvez seja o da invasão violenta dos alienígenas ao nosso planeta – e vice-versa. Mas em Os Senhores do Sonho não há propriamente um cenário de invasão. É mais sutil e complexo, pois trata do contato entre duas civilizações muito diferentes. A humanidade descobre uma espécie humanoide, aparentemente inteligente, vivendo no nono planeta da estrela Sirius, situada a 8,6 anos-luz da Terra. É fácil visualizá-la, pois é a mais brilhante do céu noturno. Após o achado da missão de reconhecimento, as Nações Unidas – em segredo – procura por Monte Stewart, um prestigioso professor de Antropologia da Universidade do Colorado (EUA). Ele é convidado a liderar uma equipe de especialistas para contactar os habitantes de Sirius IX.

Depois dos preparativos e quase dois anos de viagem – sim, existe o recurso da velocidade acima da luz –, eles aterrissam no planeta. Dos nativos só se sabe previamente o que se viu das imagens captadas pelos cópteros – uma espécie de drone – e algumas fotografias. Desta forma, Monte e seus auxiliares têm de criar protocolos quase inéditos para estabelecer comunicação. Nesse aspecto, talvez o autor pudesse explorar mais os procedimentos tradicionais dos trabalhos de campo da etnografia. Pois, apesar de se estar a fazer contato com seres de outro mundo, pelo fato de serem humanoides, algum tipo de semelhança por comparação poderia ser tentado.

Monte sai a campo com alguns membros de sua equipe, mas estranham a aparente indiferença dos Merdosi – o nome deles, como vieram a saber depois. Mas o mais intrigante é a ausência de qualquer instrumentação. Eles vivem em harmonia, por assim, dizer, com a floresta. São humanoides, andam eretos, com os pés apresentando um dedo grande sobressaindo dos demais. Com braços muito longos, de modo que as mãos quase tocam o chão quando estão em pé. Não possuem pelos no corpo, e tem um rosto cumprido e fino, com grandes mandíbulas e olhos. Além disso, se movem com grande velocidade, quando preciso, pulando os cipós de árvore em árvore.

Mesmo confusos sobre o comportamento dos Merdosi, Monte Stewart e seu linguista Charlie Jenike conseguem, aos poucos, se comunicar com eles ao aprenderem rudimentos de sua linguagem. Mas algo dá muito errado, alterando os acontecimentos. Após visitarem uma aldeia e notarem que lá só havia idosos, mulheres e crianças, descobrem chocados que o acampamento foi atacado e os demais membros da expedição, inclusive suas esposas, barbaramente mortos. Não pelos Merdosi, mas pelos merdosinis, uma espécie de cão que acompanha os nativos todo o tempo, como animais de guarda e estimação.

É que os nativos utilizam os animais para sua proteção e obtenção de alimento. Mas por que houve o massacre? Como os nativos controlam exatamente os merdosini? O que fazer a partir de agora? A possibilidade de voltar à Terra quase se realiza. Mas Monte e Charlie solicitam ao Almirante York, comandante da espaçonave Gandhi, uma semana para que façam uma última tentativa. Pois, apesar da tragédia, querem descobrir o que aconteceu e por quê.

Os Merdosi desenvolveram uma outra forma de cultura e sociabilidade. Sem tecnologia alguma, justamente um dos aspectos mais importantes e característicos de todas as culturas humanas da Terra. Um povo que não utiliza instrumentos e ferramentas para transformar sua realidade. Contudo, tem o recurso de outro artifício. Mais complexo e subjetivo: o uso da mente. Seus poderes cerebrais os conectam entre si, dominam as demais espécies, e vivem em íntima comunhão com as forças da natureza. Não chegam a se comunicar por telepatia – pois se utilizam de uma linguagem verbal –, nem movimentam objetos com a mente (telecinese), mas projetam seus pensamentos e emoções sobre si próprios e, principalmente, sobre as outras espécies do planeta. Assim, eles obtêm o que desejam, manipulando a vontade dos animais. Além disso, e principalmente, sonham de forma intensa, quase misturando vigília e sono num mesmo estado de compreensão da realidade. Com tudo isso, os dois cientistas se dão conta de que estão diante de uma descoberta surpreendente e extraordinária. E que talvez seja muito arriscado apresentá-la à humanidade, com seus valores e objetivos tão diferentes e potencialmente desestabilizadores.

É um romance bonito de FC, com muito respeito sobre a equivalência de modos e relações entre povos diversos, alargando a compreensão sobre as várias dimensões possíveis de expressão da humanidade – no caso, para além da experiência terrestre. Contudo, a condução e o desfecho passam uma sensação meio naive. Pois Chad Oliver, embora seja um pioneiro de qualidade em temas de ciências humanas e sociais na FC (a corrente soft do gênero), ainda escreveu uma prosa e tipo de enredo em parte relacionado às peculiaridades da Golden Age. No qual as motivações dos personagens ainda não estão amadurecidas em sua densidade psicológica, além da apresentação de uma prosa mais direta e convencional que, se não desagrada, não se coaduna com a maior complexidade de estilo dos autores da New Wave, que levaram mais longe os temas sociais e os perfis dos personagens no gênero. O autor poderia estar situado numa espécie de transição entre um movimento e outro, o que não impede, como já dito, que se aprecie a leitura de um dos livros mais interessantes no subtema do contato com seres extraterrestres.

                                                                                      —Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Expiração, Ted Chiang

Expiração (Exhalation)
, Ted Chiang. Tradução de Braulio Tavares. 416 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

Expiração é uma coletânea do escritor norte-americano Ted Chiang, que chegou ao Brasil em 2021 pela editora Intrínseca, e tradução de Braulio Tavares. É o segundo título do autor, que estreou por aqui em 2016 com A história da sua vida e outros contos, coletânea de narrativas de ficção científica e fantasia, muitas delas premiadas, promovida pelo longa-metragem A chegada (Arrival), de 2016, dirigido por Denis Villeneuve, adaptando o conto título. 
Se na primeira coletânea havia o predomínio de temas ligados à religiosidade judaica, desta vez a preocupação central é o impacto da tecnologia na vida das pessoas: cada conto apresenta um novo dispositivo que altera dramaticamente as relações humanas. Alguns críticos compararam a coletânea ao seriado de tv Black Mirror porque pelo menos um dos textos dialoga bem de perto com o seriado, mas o mote principal é bem mais variado e até a religiosidade retorna em um dos contos.
A seleção traz nove textos de dimensões variadas, que vão de contos curtos a novelas; sete deles publicados anteriormente e dois inéditos, escritos para a coletânea. 
Abre a seleta a noveleta "O mercador e o portal do alquimista", vencedora dos prêmios Hugo e Nebula em 2008, primeiro publicada pela Subterranean Press em 2007 e republicada no mesmo ano pela revista Fantasy & Science Fiction. Conta uma emotiva história de viagem no tempo no ambiente de As mil e uma noites: um homem descobre que é possível viajar no tempo através de um portal criado por um sábio mas as alegrias e vantagens obtidas na aventura serão cobradas em algum momento, no passado ou no futuro.
O segundo texto é "Expiração", que empresta o nome a coletânea. O conto foi primeiro publicado em 2008 e ganhou o prêmio Hugo e o BSFA no ano seguinte. Trata-se de um conto de difícil classificação, num universo fechado na qual os seres vivos são eletromecânicos. Um cientista pesquisa o segredo da mente a partir de um fenômeno que causa um perturbador descompasso nos relógios. Nos comentários sobre os contos, Chiang relata que a inspiração para esse texto veio da leitura de "A formiga elétrica" (1969), de Philip K. Dick, mas não há aqui os elementos típicos da obra dickiana, como a paranoia e a natureza da realidade, mas o final é igualmente melancólico.
"O que se espera de nós" foi originalmente publicado em 2005, e conta os efeitos psíquicos e sociológicos advindos da invenção do preditor, um dispositivo tão simples quanto pequeno, que consiste de uma caixinha plástica com um botão e uma lâmpada de led que, não importa como seu usuário faça, a luz sempre pisca um instante antes do botão ser acionado, e somente neste caso, o que leva as pessoas a terem dúvidas se realmente existe livre-arbítrio.
O texto seguinte ganhou o Hugo e o Locus em 2011. Trata-se da novela "O ciclo de vida dos objetos de software", originalmente publicada em 2010. Conta, com muitos detalhes, o desenvolvimento de uma nova forma de inteligência artificial baseada em uma plataforma similar a de um jogo de realidade virtual, onde vivem seres fofinhos que podem crescer e aprender na interação com avatares humanos. Em alguns momentos, lembrou-me o seriado de animação Digimon, porém sem a narrativa aventureira. Trata-se de um drama sobre o reconhecimento da maturidade e dos direitos dessas criaturinhas, que passam por muito sofrimento nas mãos de seus caprichosos proprietários humanos. Não chega ao ponto de O homem bicentenário, de Isaac Asimov, mas a ideia segue mais ou menos o mesmo princípio. 
Educação também é o tema do conto seguinte, "A babá automática patenteada de Dacey", publicada originalmente em 2011. Trata-se de uma narrativa sobre o desenvolvimento de uma babá mecânica cujo objetivo é criar e educar crianças sem traumatizá-las, como geralmente ocorre com pais e mães naturais. Contudo, as coisas não progridem exatamente como seu inventor desejava. Anos depois, o filho do inventor resolve retomar a babá mecânica em um novo e polêmico experimento. Há também aqui ecos de outro conto de PKD, "Babá", de 1955, mas se houve influência o autor não diz.
"A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos" foi originalmente publicado em 2013. Este é o conto que mais se familiariza com Black Mirror. Conta duas histórias entrelaçadas: uma acontece em algum momento no passado, quando os exploradores europeus entraram em contato com uma comunidade autóctone que não conhecia a escrita, e como a transferência dessa tecnologia alterou a cultura desse povo. A outra narrativa fala sobre os desentendimentos entre uma jovem mãe e sua filha a partir do desenvolvimento de uma tecnologia digital conhecida como "remen", um motor de busca que consegue compilar na rede mundial de computadores toda a informação sobre uma determinada pessoa e recriar em detalhes os fatos de sua vida, de forma que a memória humana passa a ser um instrumento quase obsoleto. 
"O grande silêncio" foi escrito em 2014 para uma instalação artística, e depois publicado em 2016. É o texto mais curto da coletânea e tem estilo de fábula, pois é narrado por um papagaio porto-riquenho, membro de um bando dos últimos indivíduos da sua espécie, que convive com a presença humana em seu habitat por causa do rádio-observatório de Arecibo. O papagaio sabe que sua espécie vai desaparecer, mas sua admiração e carinho pelos seres bípedes faz a narrativa assumir cores de uma sensibilidade que os humanos, na mesma circunstância, certamente não compartilhariam, assim como nunca se sensibilizaram com a destruição de centenas de espécies por sua sanha progressista. O conto tem muito a dizer a nós, brasileiros, neste momento em que está em foco a destruição de florestas e de povos nativos sob patrocínio do governo que, devemos sempre lembrar, foi eleito democraticamente.
Os textos finais foram ambos escritos em 2019, para a coletânea e chegaram a ser indicados ao Hugo. 
Em "Ônfalo", Chiang retoma o tema religioso apresentando ao leitor uma realidade em que o criacionismo foi cientificamente provado. Essas provas vieram, a princípio, dos estudos de botânica que identificaram amostras fósseis de árvores que não tinham anéis de crescimento, bem como fósseis de conchas que também não os presentavam, culminando na descoberta de múmias de homens e mulheres sem umbigos que seriam, portanto, humanos primordiais criados diretamente por Deus. É lógico, portanto, que a cosmogonia aristotélica, que tem a Terra como centro imóvel do universo, se perpetuou até os nossos dias, bem como a convicção de que o homem é o centro de toda a criação. Mas as coisas começam a complicar quando uma cientista descobre que valiosos fósseis de conchas sem anéis, pertencentes ao acervo de um importante museu, estavam sendo vendidos numa pequena loja de souvenires turísticos. A investigação vai levá-la a descobertas desconcertantes que mudarão para sempre a percepção da natureza da criação. 
Na novela "A ânsia e a vertigem da liberdade" o dispositivo da vez é o prisma, uma espécie de tablet cuja função é colocar uma pessoa em contato com versões de si mesma em universos paralelos. No seriado de tv Fringe, produzido entre 2008 e 2013, pudemos ver um dispositivo similar inventado por Walter Bishop, cientista maluco que é protagonista da história. Mas Chiang foi mais longe com a ideia: cada prisma só pode se conectar com um universo específico e sua capacidade de comunicação é finita: uma vez esgotada, a conexão é interrompida para sempre; outro prisma irá necessariamente se conectar a outra realidade. O prisma se tornou um equipamento popular, mas seu uso intensivo trouxe riscos à saúde mental dos usuários, que passaram a desenvolver problemas emocionais graves. Como há pequenas diferenças entre as realidades, as pessoas ficam inseguras com relação às próprias decisões. 
Na história, acompanhamos uma trapaceira que está tentando convencer um desses viciados a vender o seu dispositivo pois descobriu que o aparelho está conectado a uma realidade em que o amante de um figurão, que morreu num acidente, ainda está vivo, o que torna aquele prisma num objeto muito valioso. Ela mesma, contudo, também tem seus problemas, pois carrega a culpa de, com um ato egoísta, ter lançado uma amiga numa espiral de decadência moral da qual não conseguiu sair nunca mais. Será que, em outras realidades, teria acontecido o mesmo?
Para quem leu A história de sua vida e outros contos, a leitura de Expiração pode ser um pouco frustrante por não ter o mesmo ritmo e a mesma potência literária mas, deixando de lado a comparação, que é inevitável, também é um grande livro, com vários dos contos reconhecidos pelos principais prêmios do gênero. Expiração tem uma cadência mais lenta, mas as ideias e as reflexões são mais profundas e poéticas, quase filosóficas. 
Num ano em que muitos bons títulos de ficção foram publicados aqui, este foi certamente um dos mais importantes.
Cesar Silva

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Prêmio Argos 2022

O Prêmio Argos de Literatura Fantástica, criado em 2000, é promovido anualmente pelo Clube de Leitores de Ficção Científica e reconhece os melhores trabalhos em romance, antologia e história curta de ficção científica, fantasia e horror escritos em língua portuguesa publicados no ano anterior, por meio de votação direta dos seus sócios. 
Os vencedores em 2022 são:
Romance: Até que a brisa da manhã necrose o seu sistema, Ricardo Celestino, Clube de Autores.
Antologia: Outros Brasis da ficção científica, Davenir Viganon, org., Caligo.
Conto: "Sobre a fé de um andante que teve a cara mastigada", Ricardo Celestino, Outros Brasis da ficção científica, Caligo.

Espere agora pelo ano passado, Philip K. Dick

Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), Philip K. Dick. Tradução de Braulio Tavares, 296 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2018.

Espere agora pelo ano passado (Now wait for last year), foi publicado originalmente em 1966, estava inédito em língua portuguesa até 2018 quando e chegou ao Brasil pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras, com tradução de Braulio Tavares, exemplo perfeito e acabado do estilo dickiano potencializado no formato de romance (no qual há mais de um núcleo narrativo).
A história está centrada no casal Sweetscent. Eric é um médico importante e Katherine, sua esposa, é executiva de uma grande corporação. O casal está passando por uma crise e a separação parece iminente. Nesse momento, Eric é convocado para tratar de um paciente muito especial em uma cidade distante, alguém que ele não pode se dar ao luxo de recusar: trata-se de ninguém menos que o presidente do planeta Terra, cujo corpo está entrando em falência geral depois de ter abusado de diversos tratamentos para prolongar sua vida por séculos. E o homem não pode morrer justamente quando precisa participar de uma importante negociação com a delegação de um planeta alienígena com o qual a Terra mantém uma guerra prolongada.
Com a ausência do futuro ex-marido, Katherine decide fazer aquilo que mais gosta, e investe numa droga nova que promete uma profunda experiência mística. A droga é de fato tudo o que prometia e mais um pouco: ela também permite viajar no tempo! O problema é que se trata de uma substância altamente viciante e tóxica: se ela não tomar outra dose em 24 horas, morrerá, e se continuar tomando, morrerá em uma semana da mesma forma. Desesperada, Katherine pede socorro a Eric que, para ajudá-la, compromete sua missão e torna-se acusado pela morte do presidente da Terra. Para salvar a ambos, a Terra e, talvez, o próprio casamento – o que parece impossível –, Eric terá que desvendar o que está por trás da estranha droga e se envolver no mortal jogo de espionagem interplanetária.
PKD coloca na mesa todas as suas cartas: paranoia, intrigas políticas, um crime a ser desvendado, drogas, a fragilidade da mente, a natureza da realidade e do tempo, e uma corrida alucinada em que cada segundo conta. As linhas de ação nem sempre se interligam, o que cria abismos narrativos que o leitor precisará cruzar para entender o que está acontecendo e, para isso, terá de construir as pontes, que podem mudar a interpretação da história de um leitor para outro, ou de um mesmo leitor em momentos diversos.
Muitos podem achar que isso seja fruto de um problema de tradução ou de edição, mas é improvável. Braulio Tavares é um grande tradutor e especialista no gênero, e a edição da Suma é caprichosa, com encadernação em capa dura e o requinte da pungente ilustração de Fabrizio Lenci. Não há espaço aqui para falhas. Resta, portanto, a alternativa de que a obra foi feita assim propositalmente pelo autor, e decerto que é isso mesmo. PKD tem diversos livros com características similares, alguns um pouco mais que outros, e este é um dos "mais". 
Para aqueles que conseguem superar esta corrida de obstáculos, o resultado é gratificante, um exemplo do tipo de ficção que influenciou uma infinidade de autores que vieram depois, especialmente o movimento cyberpunk, com o qual PKD é muitas vezes identificado como precursor. Mesmo que fosse só por isso – há muitos outros motivos além desse – penso que vale a pena o esforço.
Cesar Silva

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guerra sem fim, Joe Haldeman

Guerra sem fim (Forever war), John Haldeman. 304 páginas. Tradução de Leonardo Castilhone. São Paulo: Landscape, 2009.

Guerra sem fim foi o título brasileiro que a editora Landscape escolheiu para o romance Forever War, do escritor americano John Haldeman, um drama de guerra espacial publicado originalmente em 1975, que faturou o Hugo e Nebula, os principais prêmios norte-americanos para o gênero.
A história conta a experiência de um soldado em uma guerra num planeta tão distante que, ao retornar depois de dois anos de serviço, não encontra mais o mundo de onde partiu, visto que, por causa dos efeitos da relatividade, o tempo na Terra passou dezenas de anos mais rápido. E missões mais distantes ainda o aguardam.
Mas esse argumento não é o único apelo relevante do livro de Haldeman. Na verdade, histórias com esse mesmo conceito já foram escritas aos montes, entre elas o excelente O dilema do astronauta (Starman's Quest, 1958), de Robert Silverberg, publicado pela editora portuguesa Panorama. O que importa na ficção de Haldeman são os conceitos políticos ali discutidos, sobre a presença dos homens em guerras nas quais eles nunca deveriam se envolver. Essas ideias advém do fato de Haldeman ser veterano da guerra do Vietnã, condecorado com uma medalha por ferimentos em combate.
Os paralelos entre Guerra sem fim e sua experiência como soldado não são mera coincidência. Haldeman é um escritor influente em seu país, com vários outros Hugos e Nebulas no currículo. Entre 1983 e 2014, foi professor sênior de escrita criativa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). No Brasil ele foi pouco - ou nada - publicado. Provavelmente seu único texto saiu no extinto fanzine Hipertexto publicado pela UFSCar, apenas porque seus editores tiveram a sorte de encontrá-lo pessoalmente num simpósio de ficção científica em Portugal e puderam negociar diretamente com o escritor.
A lamentar o fato de que o romance só ganhou publicação no Brasil depois que o diretor de cinema Ridley Scott (de Blade Runner e Alien) adquiriu seus direitos para uma versão filmada, nunca realizada. Como tem sido patente nos últimos vinte anos, a publicação de uma ficção científica original parece ter que vir a reboque de um subproduto audiovisual. É lamentável que as editoras brasileiras ditas profissionais ainda se comportem dessa forma. Pelo menos a Landscape teve a iniciativa de traduzir e publicar o livro sem esperar pelo filme, o que já é mais do que se poderia desejar. Outras editoras talvez não o fizessem. 
A edição da Landscape é bacana mas três coisas eu pessoalmente desgostei: primeiro, o título. A obra já era conhecida há anos no fandom como "Guerra eterna", e essa teria sido a sua melhor tradução. Existe até uma adapatação em quadrinhos traduzida em Portugal com esse título. E também houve, em 1993, uma novela produzida pela extinta TV Manchete com o título de Guerra sem fim e muita gente bem poderia pensar que o livro é sua novelização. Segunda coisa: a imagem da capa não traduz nem de longe o clima do romance, parece mais um romance de bolso dos anos 1950. Terceiro, o preço. A editora brasileira sugeriu o preço de capa em R$54,90, um valor quase impraticável para a época de sua publicação no Brasil, em 2009, quando os preços dos livros estavam num patamar muito abaixo disso. Só fãs muito ardorosos compraram esta edição, que é hoje muito rara, e um livro dessa qualidade merecia ser lido mais amplamente. E foi mesmo uma pena pois, um pouco por causa disso - e mais pelo fato do filme nunca ter vindo -, que nunca tivemos a publicação dos romances subsequentes, Forever Free e Forever Peace, ambos também muito bons.
Hoje, o romance está disponível em edição de 2019 da Editora Aleph. A capa e o título continuam ruins, mas o preço está bem mais acessível.
Cesar Silva