Expiração (Exhalation), Ted Chiang. Tradução de Braulio Tavares. 416 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
Expiração é uma coletânea do escritor norte-americano Ted Chiang, que chegou ao Brasil em 2021 pela editora Intrínseca, e tradução de Braulio Tavares. É o segundo título do autor, que estreou por aqui em 2016 com A história da sua vida e outros contos, coletânea de narrativas de ficção científica e fantasia, muitas delas premiadas, promovida pelo longa-metragem A chegada (Arrival), de 2016, dirigido por Denis Villeneuve, adaptando o conto título.
Se na primeira coletânea havia o predomínio de temas ligados à religiosidade judaica, desta vez a preocupação central é o impacto da tecnologia na vida das pessoas: cada conto apresenta um novo dispositivo que altera dramaticamente as relações humanas. Alguns críticos compararam a coletânea ao seriado de tv Black Mirror porque pelo menos um dos textos dialoga bem de perto com o seriado, mas o mote principal é bem mais variado e até a religiosidade retorna em um dos contos.
A seleção traz nove textos de dimensões variadas, que vão de contos curtos a novelas; sete deles publicados anteriormente e dois inéditos, escritos para a coletânea.
Abre a seleta a noveleta "O mercador e o portal do alquimista", vencedora dos prêmios Hugo e Nebula em 2008, primeiro publicada pela Subterranean Press em 2007 e republicada no mesmo ano pela revista Fantasy & Science Fiction. Conta uma emotiva história de viagem no tempo no ambiente de As mil e uma noites: um homem descobre que é possível viajar no tempo através de um portal criado por um sábio mas as alegrias e vantagens obtidas na aventura serão cobradas em algum momento, no passado ou no futuro.
O segundo texto é "Expiração", que empresta o nome a coletânea. O conto foi primeiro publicado em 2008 e ganhou o prêmio Hugo e o BSFA no ano seguinte. Trata-se de um conto de difícil classificação, num universo fechado na qual os seres vivos são eletromecânicos. Um cientista pesquisa o segredo da mente a partir de um fenômeno que causa um perturbador descompasso nos relógios. Nos comentários sobre os contos, Chiang relata que a inspiração para esse texto veio da leitura de "A formiga elétrica" (1969), de Philip K. Dick, mas não há aqui os elementos típicos da obra dickiana, como a paranoia e a natureza da realidade, mas o final é igualmente melancólico.
"O que se espera de nós" foi originalmente publicado em 2005, e conta os efeitos psíquicos e sociológicos advindos da invenção do preditor, um dispositivo tão simples quanto pequeno, que consiste de uma caixinha plástica com um botão e uma lâmpada de led que, não importa como seu usuário faça, a luz sempre pisca um instante antes do botão ser acionado, e somente neste caso, o que leva as pessoas a terem dúvidas se realmente existe livre-arbítrio.
O texto seguinte ganhou o Hugo e o Locus em 2011. Trata-se da novela "O ciclo de vida dos objetos de software", originalmente publicada em 2010. Conta, com muitos detalhes, o desenvolvimento de uma nova forma de inteligência artificial baseada em uma plataforma similar a de um jogo de realidade virtual, onde vivem seres fofinhos que podem crescer e aprender na interação com avatares humanos. Em alguns momentos, lembrou-me o seriado de animação Digimon, porém sem a narrativa aventureira. Trata-se de um drama sobre o reconhecimento da maturidade e dos direitos dessas criaturinhas, que passam por muito sofrimento nas mãos de seus caprichosos proprietários humanos. Não chega ao ponto de O homem bicentenário, de Isaac Asimov, mas a ideia segue mais ou menos o mesmo princípio.
"O que se espera de nós" foi originalmente publicado em 2005, e conta os efeitos psíquicos e sociológicos advindos da invenção do preditor, um dispositivo tão simples quanto pequeno, que consiste de uma caixinha plástica com um botão e uma lâmpada de led que, não importa como seu usuário faça, a luz sempre pisca um instante antes do botão ser acionado, e somente neste caso, o que leva as pessoas a terem dúvidas se realmente existe livre-arbítrio.
O texto seguinte ganhou o Hugo e o Locus em 2011. Trata-se da novela "O ciclo de vida dos objetos de software", originalmente publicada em 2010. Conta, com muitos detalhes, o desenvolvimento de uma nova forma de inteligência artificial baseada em uma plataforma similar a de um jogo de realidade virtual, onde vivem seres fofinhos que podem crescer e aprender na interação com avatares humanos. Em alguns momentos, lembrou-me o seriado de animação Digimon, porém sem a narrativa aventureira. Trata-se de um drama sobre o reconhecimento da maturidade e dos direitos dessas criaturinhas, que passam por muito sofrimento nas mãos de seus caprichosos proprietários humanos. Não chega ao ponto de O homem bicentenário, de Isaac Asimov, mas a ideia segue mais ou menos o mesmo princípio.
Educação também é o tema do conto seguinte, "A babá automática patenteada de Dacey", publicada originalmente em 2011. Trata-se de uma narrativa sobre o desenvolvimento de uma babá mecânica cujo objetivo é criar e educar crianças sem traumatizá-las, como geralmente ocorre com pais e mães naturais. Contudo, as coisas não progridem exatamente como seu inventor desejava. Anos depois, o filho do inventor resolve retomar a babá mecânica em um novo e polêmico experimento. Há também aqui ecos de outro conto de PKD, "Babá", de 1955, mas se houve influência o autor não diz.
"A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos" foi originalmente publicado em 2013. Este é o conto que mais se familiariza com Black Mirror. Conta duas histórias entrelaçadas: uma acontece em algum momento no passado, quando os exploradores europeus entraram em contato com uma comunidade autóctone que não conhecia a escrita, e como a transferência dessa tecnologia alterou a cultura desse povo. A outra narrativa fala sobre os desentendimentos entre uma jovem mãe e sua filha a partir do desenvolvimento de uma tecnologia digital conhecida como "remen", um motor de busca que consegue compilar na rede mundial de computadores toda a informação sobre uma determinada pessoa e recriar em detalhes os fatos de sua vida, de forma que a memória humana passa a ser um instrumento quase obsoleto.
"O grande silêncio" foi escrito em 2014 para uma instalação artística, e depois publicado em 2016. É o texto mais curto da coletânea e tem estilo de fábula, pois é narrado por um papagaio porto-riquenho, membro de um bando dos últimos indivíduos da sua espécie, que convive com a presença humana em seu habitat por causa do rádio-observatório de Arecibo. O papagaio sabe que sua espécie vai desaparecer, mas sua admiração e carinho pelos seres bípedes faz a narrativa assumir cores de uma sensibilidade que os humanos, na mesma circunstância, certamente não compartilhariam, assim como nunca se sensibilizaram com a destruição de centenas de espécies por sua sanha progressista. O conto tem muito a dizer a nós, brasileiros, neste momento em que está em foco a destruição de florestas e de povos nativos sob patrocínio do governo que, devemos sempre lembrar, foi eleito democraticamente.
Os textos finais foram ambos escritos em 2019, para a coletânea e chegaram a ser indicados ao Hugo.
Em "Ônfalo", Chiang retoma o tema religioso apresentando ao leitor uma realidade em que o criacionismo foi cientificamente provado. Essas provas vieram, a princípio, dos estudos de botânica que identificaram amostras fósseis de árvores que não tinham anéis de crescimento, bem como fósseis de conchas que também não os presentavam, culminando na descoberta de múmias de homens e mulheres sem umbigos que seriam, portanto, humanos primordiais criados diretamente por Deus. É lógico, portanto, que a cosmogonia aristotélica, que tem a Terra como centro imóvel do universo, se perpetuou até os nossos dias, bem como a convicção de que o homem é o centro de toda a criação. Mas as coisas começam a complicar quando uma cientista descobre que valiosos fósseis de conchas sem anéis, pertencentes ao acervo de um importante museu, estavam sendo vendidos numa pequena loja de souvenires turísticos. A investigação vai levá-la a descobertas desconcertantes que mudarão para sempre a percepção da natureza da criação.
Na novela "A ânsia e a vertigem da liberdade" o dispositivo da vez é o prisma, uma espécie de tablet cuja função é colocar uma pessoa em contato com versões de si mesma em universos paralelos. No seriado de tv Fringe, produzido entre 2008 e 2013, pudemos ver um dispositivo similar inventado por Walter Bishop, cientista maluco que é protagonista da história. Mas Chiang foi mais longe com a ideia: cada prisma só pode se conectar com um universo específico e sua capacidade de comunicação é finita: uma vez esgotada, a conexão é interrompida para sempre; outro prisma irá necessariamente se conectar a outra realidade. O prisma se tornou um equipamento popular, mas seu uso intensivo trouxe riscos à saúde mental dos usuários, que passaram a desenvolver problemas emocionais graves. Como há pequenas diferenças entre as realidades, as pessoas ficam inseguras com relação às próprias decisões.
Na história, acompanhamos uma trapaceira que está tentando convencer um desses viciados a vender o seu dispositivo pois descobriu que o aparelho está conectado a uma realidade em que o amante de um figurão, que morreu num acidente, ainda está vivo, o que torna aquele prisma num objeto muito valioso. Ela mesma, contudo, também tem seus problemas, pois carrega a culpa de, com um ato egoísta, ter lançado uma amiga numa espiral de decadência moral da qual não conseguiu sair nunca mais. Será que, em outras realidades, teria acontecido o mesmo?
Para quem leu A história de sua vida e outros contos, a leitura de Expiração pode ser um pouco frustrante por não ter o mesmo ritmo e a mesma potência literária mas, deixando de lado a comparação, que é inevitável, também é um grande livro, com vários dos contos reconhecidos pelos principais prêmios do gênero. Expiração tem uma cadência mais lenta, mas as ideias e as reflexões são mais profundas e poéticas, quase filosóficas.
"A verdade dos fatos, a verdade dos sentimentos" foi originalmente publicado em 2013. Este é o conto que mais se familiariza com Black Mirror. Conta duas histórias entrelaçadas: uma acontece em algum momento no passado, quando os exploradores europeus entraram em contato com uma comunidade autóctone que não conhecia a escrita, e como a transferência dessa tecnologia alterou a cultura desse povo. A outra narrativa fala sobre os desentendimentos entre uma jovem mãe e sua filha a partir do desenvolvimento de uma tecnologia digital conhecida como "remen", um motor de busca que consegue compilar na rede mundial de computadores toda a informação sobre uma determinada pessoa e recriar em detalhes os fatos de sua vida, de forma que a memória humana passa a ser um instrumento quase obsoleto.
"O grande silêncio" foi escrito em 2014 para uma instalação artística, e depois publicado em 2016. É o texto mais curto da coletânea e tem estilo de fábula, pois é narrado por um papagaio porto-riquenho, membro de um bando dos últimos indivíduos da sua espécie, que convive com a presença humana em seu habitat por causa do rádio-observatório de Arecibo. O papagaio sabe que sua espécie vai desaparecer, mas sua admiração e carinho pelos seres bípedes faz a narrativa assumir cores de uma sensibilidade que os humanos, na mesma circunstância, certamente não compartilhariam, assim como nunca se sensibilizaram com a destruição de centenas de espécies por sua sanha progressista. O conto tem muito a dizer a nós, brasileiros, neste momento em que está em foco a destruição de florestas e de povos nativos sob patrocínio do governo que, devemos sempre lembrar, foi eleito democraticamente.
Os textos finais foram ambos escritos em 2019, para a coletânea e chegaram a ser indicados ao Hugo.
Em "Ônfalo", Chiang retoma o tema religioso apresentando ao leitor uma realidade em que o criacionismo foi cientificamente provado. Essas provas vieram, a princípio, dos estudos de botânica que identificaram amostras fósseis de árvores que não tinham anéis de crescimento, bem como fósseis de conchas que também não os presentavam, culminando na descoberta de múmias de homens e mulheres sem umbigos que seriam, portanto, humanos primordiais criados diretamente por Deus. É lógico, portanto, que a cosmogonia aristotélica, que tem a Terra como centro imóvel do universo, se perpetuou até os nossos dias, bem como a convicção de que o homem é o centro de toda a criação. Mas as coisas começam a complicar quando uma cientista descobre que valiosos fósseis de conchas sem anéis, pertencentes ao acervo de um importante museu, estavam sendo vendidos numa pequena loja de souvenires turísticos. A investigação vai levá-la a descobertas desconcertantes que mudarão para sempre a percepção da natureza da criação.
Na novela "A ânsia e a vertigem da liberdade" o dispositivo da vez é o prisma, uma espécie de tablet cuja função é colocar uma pessoa em contato com versões de si mesma em universos paralelos. No seriado de tv Fringe, produzido entre 2008 e 2013, pudemos ver um dispositivo similar inventado por Walter Bishop, cientista maluco que é protagonista da história. Mas Chiang foi mais longe com a ideia: cada prisma só pode se conectar com um universo específico e sua capacidade de comunicação é finita: uma vez esgotada, a conexão é interrompida para sempre; outro prisma irá necessariamente se conectar a outra realidade. O prisma se tornou um equipamento popular, mas seu uso intensivo trouxe riscos à saúde mental dos usuários, que passaram a desenvolver problemas emocionais graves. Como há pequenas diferenças entre as realidades, as pessoas ficam inseguras com relação às próprias decisões.
Na história, acompanhamos uma trapaceira que está tentando convencer um desses viciados a vender o seu dispositivo pois descobriu que o aparelho está conectado a uma realidade em que o amante de um figurão, que morreu num acidente, ainda está vivo, o que torna aquele prisma num objeto muito valioso. Ela mesma, contudo, também tem seus problemas, pois carrega a culpa de, com um ato egoísta, ter lançado uma amiga numa espiral de decadência moral da qual não conseguiu sair nunca mais. Será que, em outras realidades, teria acontecido o mesmo?
Para quem leu A história de sua vida e outros contos, a leitura de Expiração pode ser um pouco frustrante por não ter o mesmo ritmo e a mesma potência literária mas, deixando de lado a comparação, que é inevitável, também é um grande livro, com vários dos contos reconhecidos pelos principais prêmios do gênero. Expiração tem uma cadência mais lenta, mas as ideias e as reflexões são mais profundas e poéticas, quase filosóficas.
Num ano em que muitos bons títulos de ficção foram publicados aqui, este foi certamente um dos mais importantes.
— Cesar Silva
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