Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors), Chad Oliver. Tradução: Erasmo Catauli Giacometti. 150 páginas. Rio de Janeiro: Edições GRD, coleção Ficção Científica GRD, n. 17, 1964. Lançamento original de 1960.
É sempre um momento
especial ler um livro da clássica coleção de FC de Gumercindo Rocha Dorea
(1924-1921), a mais importante da história do gênero no Brasil. Em seus 20
números publicou, de forma pioneira, autores clássicos e contemporâneos, além
de brasileiros que se tornariam nomes de peso em nossa FC. Gumercindo era um
editor especialmente sensível para publicar obras de autores não badalados ou
conhecidos, mas, de inegável qualidade. Como no caso desde Os Senhores do Sonho, a primeira obra de Chad Oliver (1928-1993)
publicada no país e, provavelmente, seu livro mais interessante.
Oliver apaixonou-se pela
FC na adolescência e, anos depois, quando formado em Antropologia, uniu as duas
preferências, com o conhecimento acadêmico como base para uma literatura
altamente especulativa, mas igualmente verossímil. O autor foi um dos que mais
adiante levou o tema da diversidade e da alteridade dentro da FC. Tirou o homem
ocidental – em particular – de sua posição central para confrontá-lo com seus
limites, preconceitos e esperanças.
No interior da FC o tema
do contato entre humanos e alienígenas talvez seja o mais pródigo, e abordado
das mais diferentes maneiras. O mais comum e popular talvez seja o da invasão
violenta dos alienígenas ao nosso planeta – e vice-versa. Mas em Os Senhores do Sonho não há propriamente
um cenário de invasão. É mais sutil e complexo, pois trata do contato entre
duas civilizações muito diferentes. A humanidade descobre uma espécie
humanoide, aparentemente inteligente, vivendo no nono planeta da estrela
Sirius, situada a 8,6 anos-luz da Terra. É fácil visualizá-la, pois é a mais
brilhante do céu noturno. Após o achado da missão de reconhecimento, as Nações
Unidas – em segredo – procura por Monte Stewart, um prestigioso professor de
Antropologia da Universidade do Colorado (EUA). Ele é convidado a liderar uma
equipe de especialistas para contactar os habitantes de Sirius IX.
Depois dos preparativos e
quase dois anos de viagem – sim, existe o recurso da velocidade acima da luz –,
eles aterrissam no planeta. Dos nativos só se sabe previamente o que se viu das
imagens captadas pelos cópteros – uma espécie de drone – e algumas fotografias.
Desta forma, Monte e seus auxiliares têm de criar protocolos quase inéditos
para estabelecer comunicação. Nesse aspecto, talvez o autor pudesse explorar
mais os procedimentos tradicionais dos trabalhos de campo da etnografia. Pois,
apesar de se estar a fazer contato com seres de outro mundo, pelo fato de serem
humanoides, algum tipo de semelhança por comparação poderia ser tentado.
Monte sai a campo com
alguns membros de sua equipe, mas estranham a aparente indiferença dos Merdosi
– o nome deles, como vieram a saber depois. Mas o mais intrigante é a ausência
de qualquer instrumentação. Eles vivem em harmonia, por assim, dizer, com a
floresta. São humanoides, andam eretos, com os pés apresentando um dedo grande
sobressaindo dos demais. Com braços muito longos, de modo que as mãos quase
tocam o chão quando estão em pé. Não possuem pelos no corpo, e tem um rosto
cumprido e fino, com grandes mandíbulas e olhos. Além disso, se movem com
grande velocidade, quando preciso, pulando os cipós de árvore em árvore.
Mesmo confusos sobre o
comportamento dos Merdosi, Monte Stewart e seu linguista Charlie Jenike
conseguem, aos poucos, se comunicar com eles ao aprenderem rudimentos de sua
linguagem. Mas algo dá muito errado, alterando os acontecimentos. Após visitarem
uma aldeia e notarem que lá só havia idosos, mulheres e crianças, descobrem
chocados que o acampamento foi atacado e os demais membros da expedição,
inclusive suas esposas, barbaramente mortos. Não pelos Merdosi, mas pelos
merdosinis, uma espécie de cão que acompanha os nativos todo o tempo, como
animais de guarda e estimação.
É que os nativos utilizam
os animais para sua proteção e obtenção de alimento. Mas por que houve o
massacre? Como os nativos controlam exatamente os merdosini? O que fazer a
partir de agora? A possibilidade de voltar à Terra quase se realiza. Mas Monte
e Charlie solicitam ao Almirante York, comandante da espaçonave Gandhi, uma
semana para que façam uma última tentativa. Pois, apesar da tragédia, querem
descobrir o que aconteceu e por quê.
Os Merdosi desenvolveram
uma outra forma de cultura e sociabilidade. Sem tecnologia alguma, justamente
um dos aspectos mais importantes e característicos de todas as culturas humanas
da Terra. Um povo que não utiliza instrumentos e ferramentas para transformar
sua realidade. Contudo, tem o recurso de outro artifício. Mais complexo e
subjetivo: o uso da mente. Seus poderes cerebrais os conectam entre si, dominam
as demais espécies, e vivem em íntima comunhão com as forças da natureza. Não
chegam a se comunicar por telepatia – pois se utilizam de uma linguagem verbal
–, nem movimentam objetos com a mente (telecinese), mas projetam seus
pensamentos e emoções sobre si próprios e, principalmente, sobre as outras
espécies do planeta. Assim, eles obtêm o que desejam, manipulando a vontade dos
animais. Além disso, e principalmente, sonham de forma intensa, quase
misturando vigília e sono num mesmo estado de compreensão da realidade. Com
tudo isso, os dois cientistas se dão conta de que estão diante de uma descoberta
surpreendente e extraordinária. E que talvez seja muito arriscado apresentá-la à
humanidade, com seus valores e objetivos tão diferentes e potencialmente
desestabilizadores.
É um romance bonito de FC, com muito respeito sobre a equivalência de modos e relações entre povos diversos, alargando a compreensão sobre as várias dimensões possíveis de expressão da humanidade – no caso, para além da experiência terrestre. Contudo, a condução e o desfecho passam uma sensação meio naive. Pois Chad Oliver, embora seja um pioneiro de qualidade em temas de ciências humanas e sociais na FC (a corrente soft do gênero), ainda escreveu uma prosa e tipo de enredo em parte relacionado às peculiaridades da Golden Age. No qual as motivações dos personagens ainda não estão amadurecidas em sua densidade psicológica, além da apresentação de uma prosa mais direta e convencional que, se não desagrada, não se coaduna com a maior complexidade de estilo dos autores da New Wave, que levaram mais longe os temas sociais e os perfis dos personagens no gênero. O autor poderia estar situado numa espécie de transição entre um movimento e outro, o que não impede, como já dito, que se aprecie a leitura de um dos livros mais interessantes no subtema do contato com seres extraterrestres.
—Marcello Simão Branco
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