segunda-feira, 28 de abril de 2025

Silo

Por volta de dez mil pessoas vivem em uma torre subterrânea de cento e quarenta andares totalmente isolada da superfície. O complexo é autônomo, reciclando seu próprio oxigênio e água, e produzindo alimentos e energia para toda a população. Tudo isso porque a atmosfera do planeta é mortal para os seres humanos: um simples vazamento poderia trazer a morte para todos. Logo, a única alternativa para a continuidade da vida é manterem-se isolados dentro da torre. 
Décadas antes, um grupo de rebeldes se revoltou e tentou abrir caminho a força para a superficie. A revolta foi contida, mas abalou as relações político-sociais na torre. Desde então, dissidentes que manifestem o desejo de sair recebem permissão para isso desde que se comprometam a limpar a lente da câmera que vigia continuamente a superfície. Porém, todos morreram após alguns minutos de caminhada no exterior. Em todas as vezes, a população a torre assistiu aquelas breves jornadas na esperança de que, finalmente, a pessoa sobrevivesse. Mas isso nunca aconteceu.
Para que a população não aumente, a reprodução é mantida sob controle, e só alguns casais, a cada ano, obtém permissão para gerar filhos. Quando o xerife da torre e sua esposa conquistam essa benção e a alegria de ter um filho parece finalmente ser uma realidade, algo dá errado: a gravidez não se consolida e a mulher, uma importante técnica de TI, começa a desconfiar de que existe algum tipo de conspiração na torre. Isso a coloca em contato com um engenheiro que acredita ser possível obter informações do passado a partir de relíquias tecnológicas ilegais dos tempos pré-torre, para descobrir o que houve com o mundo e encontrar um modo de retornar para a vida na superfície em segurança. A investigação vai colocar em movimento uma série de ações dramáticas que podem por toda a torre em risco. 
Essa é a premissa da série de tv Silo, inspirada na série de romances do escritor americano Hugh Howey – que conta com três volumes: Silo (Wool), Ordem (Shift) e Legado (Dust), publicados no Brasil pela Intrínseca. A série de tv é produzida por Graham Yost e está em exibição desde 2023 no sistema de streaming Apple TV+, e recentemente estreou sua segunda temporada. É estrelada por Rebecca Ferguson, Rashida Jones, David Oyelowo, Common, Harriet Walter, Avi Nash, Rick Gomez Chinaza Uche e Tim Robbins, ator veterano que também assina a produção. 
A primeira temporada tem dez episódios muito bem produzidos, com cenografia deslumbrante e uma narrativa repleta de mistérios instigantes que vão se complicando a cada novo episódio. A história dialoga de perto com pelo menos dois clássicos da ficção científica: Plano Sete (Level 7, 1959), do escritor israelense Mordecai Roshwald, e A cidade dos asfixiados (La cité des asphyxiés, 1937), do escritor francês Régis Messac. Mas cada uma das histórias têm méritos próprios e valem ser conhecidas. 
Claro que nem tudo é perfeito em Silo. Muitas coisas são mostradas superficialmente, sem que se dedique o mínimo de tempo para explicar como aquilo tudo é possível. A tecnologia, em tudo similar a algo saido dos anos 1990, está em uso há mais de um século e continua funcionando perfeitamente. Mas, do mesmo modo que as histórias de ficção científica espacial não explicam como as naves podem fazer ruídos no vácuo do espaço, é preciso fazer vista grossa para tais inconsistências. Afinal, o que importa são os dramas humanos que se desenrolam ali. Mas algumas coisas são difíceis de ignorar.
Para dar um gostinho, veja aqui o trailer promocional da primeira temporada da série. Os quatro primeiros episódios estão disponíveis no pacote de assinatura da tv a cabo Now, da operadora Claro.
— Cesar Silva

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Nebulosa

 



Nebulosa, André Cáceres. Capa e projeto gráfico: Matéria-Prima Editorial. 330 páginas. São Paulo: Editora Patuá, coleção Futuro Infinito, 2021.

 

Num futuro distante e indefinido a humanidade está espalhada pela galáxia ao habitar 108 mundos. Sim, mais de uma centena. E todos eles governados, pelo menos formalmente, por um deles, o centro político do Império, chamado de Nebulosa. Em meio a este universo de trilhões de seres humanos, um deles descobre uma maneira de prever estatisticamente eventos futuros. Esta é a mola propulsora que dá início a esta aventura de space-opera.

Talvez um leitor mais experiente de FC já tenha intuído que estamos diante de uma estrutura bem parecida ao da série “Fundação”, de Isaac Asimov (1920-1992). De fato, poderia dizer que é um romance bem asimoviano, ainda que não se limite a isso. Quem descobre um meio de prever o futuro através de equações matemáticas é Dédalo, um jovem aprendiz de uma universidade no distante planeta de Agro-IV. Ora, Dédalo seria uma espécie de Hari Seldon mais jovem – o cientista de Asimov –, e a nova ciência que cria, a cliodinâmica, uma versão menos ambiciosa da psico-história. Pois esta prevê a queda do império e elabora, em segredo, um plano para reconstruí-lo. Já a cliodinâmica é mais sutil e modesta: prevê apenas que o imperador Ninrod II sofrerá um atentado.

Dédalo é levado até o líder político, e vira uma espécie de amuleto para servir de oráculo ou trunfo a ser utilizado pelo imperador, ou por quem tomar posse do garoto. Isso porque, no fundo, não seria preciso prever matematicamente a possibilidade do imperador sofrer um atentado, já que o regime imperial carece de legitimidade e impõe-se pelo terror em vários dos planetas, provocando, assim, reações de guerrilhas e planos conspiratórios para enfraquecê-lo ou derrubá-lo.

Talvez para explicar as várias fontes de contestação é que o romance tem sua ação intercalada em cenários diferentes, liderados por personagens específicos. Além de Dédalo, temos a guerreira Aurora, do planeta Opel-A; Ícaro, filho rebelde do imperador, e Leon Suçuaruna, outro filho de líder político, este do mundo de Riverão, que outrora liderava o império, mas foi politicamente destronado e mantém sua nobreza apenas na aparência, totalmente endividado e dependente dos favores de outras realezas e grupos mercenários.

Ao longo de dezenas de capítulos curtos, os planos e aventuras destes e outros vários personagens se sobrepõe de forma gradativa, como é comum nesta estrutura de romance em mosaico. E o que sobressai é menos o caráter subjetivo dos personagens, e mais as estratégias para obtenção de poder. É principalmente uma história de conspirações palacianas, mas movimentadas o suficiente para prender o interesse, ainda que algumas situações e reviravoltas ocorram de forma repentina e superficial.

A base asimoviana do livro pode ser identificada também na vinculação de Nebulosa com o planeta de Trantor, centro do império de “Fundação”. Além disso, pelo fato da humanidade ter se expandido Via-Láctea afora e perdido a noção de sua própria origem, considerada uma lenda. Mas também como, em algum momento, Asimov recorra a uma explicação para isso, em Nebulosa haverá um contexto favorável ao encontro da origem inicial da humanidade. Mas também como em “Fundação”, a humanidade estaria só no universo. Ou ao menos haveria um segredo com relação a uma possibilidade em contrário.

Embora Cáceres não seja o primeiro a se inspirar em Asimov para construir seu universo ficcional, chama a atenção, pois o Bom Doutor nunca teve uma influência importante nos escritores brasileiros de FC, historicamente mais próximos de Bradbury, Clarke e Lovecraft.

Em Nebulosa, o conhecimento científico é desqualificado e tido como potencialmente subversivo. Os cientistas são vistos como bruxos e perseguidos como se fizessem parte de uma seita. O que predomina é a forma de conhecimento mágico ou místico, ainda que isso não seja muito explorado e não fique claro como que uma civilização toda baseada na tecnologia de viagens espaciais com velocidade de dobra – inspirada aqui na série Jornada nas Estrelas (Star Trek) – possa desconsiderar o conhecimento que possibilita isso.

Outra questão subjacente se relaciona à questão do limite ou mesmo existência do livre-arbítrio – também colocada em questão na psico-história de “Fundação”. Embora pouco desenvolvida no contexto das tramas palacianas, receberá uma explicação probabilística que segue o Bom Doutor, no que diz respeito à maior precisão da previsão sobre o comportamento de agrupamentos coletivos do que na vida particular de um indivíduo.

Ainda que, em si, quase estejamos diante de um romance de homenagem, esta abordagem respeitosa de fã, não torna a leitura desinteressante, porque Cáceres escreve bem, os diálogos e as situações são ágeis e, o principal: suas descrições dos vários planetas são belas e inspiradas. Provavelmente, ele teve ter pesquisado bastante, não apenas em histórias de FC, mas na já farta literatura astronômica sobre os exóticos e surpreendentes exoplanetas.

Este não é o primeiro livro do jornalista André Cáceres, que já havia publicado a distopia Cela 108 (2015), além de alguns outros textos esparsos, mas talvez seja seu trabalho mais ambicioso, mesmo tendo por base um outro autor, um clássico da FC. Embora Nebulosa entretenha, acredito que o autor pode mais, principalmente se tiver uma voz mais própria, como demonstrou no conto “Esperando o Dono”, vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2024.

Marcello Simão Branco