sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Atmosfera Rarefeita


Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro, Alfredo Suppia. 400 páginas. São Paulo: Devir Livraria, Coleção Enciclopédia Galáctica, 2013.


Há certos livros que de saída chamam a atenção pelo tema. Pois este é o caso de Atmosfera Rarefeita: A Ficção Científica no Cinema Brasileiro. O assunto, à primeira vista, pode causar estranheza a um leitor desavisado ou não familiarizado com a ficção científica, mesmo entre aqueles da área de cinema. Mas mais importante do que isso é que este trabalho – fruto da tese de doutorado do autor, defendida em 2007 – desmistifica lugares comuns e abre a possibilidade de um novo e instigante campo de pesquisa. Para o cinema brasileiro, para a ficção científica, e para os estudos culturais brasileiros.
Alfredo Suppia, que é professor do Instituto de Artes da Unicamp, inicialmente apresenta algumas considerações de ordem teórica, de como compreende o que caracterizaria a FC, baseando-se nos conceitos de intertextualidade e do novum – este desenvolvido pelo acadêmico croata Darko Suvin. Grosso modo, o primeiro relacionado às apropriações e intersecções possíveis entre diferentes assuntos dentro de um mesmo gênero temático de histórias, ou a elas associadas. Já o segundo se refere ao elemento decisivo que torna possível caracterizar uma história como sendo de FC, que a diferenciaria do mundo tal qual lidamos e conhecemos. Tem equivalência na ideia do estranhamento cognitivo, mas talvez seja mais incisiva para pontuar o que pertence ou não ao campo da FC. Estas considerações serão importantes ao longo dos capítulos, principalmente ao analisar ênfases diferentes dos filmes brasileiros vinculados ao gênero.
Depois de apresentar um breve histórico sobre a trajetória da literatura brasileira de FC – que também servirá de substrato para discussões posteriores – Suppia parte para o núcleo duro de sua pesquisa. Nos capítulos três e quatro ele expõe uma extensa e detalhada resenha de dezenas de filmes brasileiros de FC, de longa e curta metragem. Realiza esta façanha de forma cronológica. Primeiro num capítulo sobre os longas-metragens e depois noutro com os curtas-metragens, mostrando com riqueza de detalhes o desenvolvimento do cinema de FC brasileiro, suas fases, características, padrões recorrentes, virtudes e limites.
Assim, são comentados 95 filmes longa-metragem e 63 curtas-metragens. De 1908 a 2013, quando foi publicado o livro. Praticamente um século de análise! Dentro deste longo percurso foi identificado alguns temas mais recorrentes em determinada época, e outros que tem se tornado padrão, se estabelecendo como um tema tradicional do cinema de FC do país. Numa primeira vertente, filmes que satirizam, por meio de elementos ou iconografia, aspectos da sociedade brasileira. Com o passar das décadas esta tendência foi se enfraquecendo, sendo especialmente presente até, pelo menos o final da década de 1950. A esta tendência emergiu outra que relaciona a FC com o humor e a paródia, seja de temas da sociedade, seja do próprio gênero em si, com adaptações que se inspiraram em clássicos do gênero, característica presente principalmente nos filmes do grupo Os Trapalhões, entre os anos 1960 e 1980. Filmes como, por exemplo, Os Trapalhões no Planalto dos Macacos (1976) e Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978). A intenção destes filmes, fora o óbvio entretenimento e grande apelo popular, seria o de estabelecer uma reflexão do quanto somos subdesenvolvidos, tanto em termos sócio-econômicos, como em termos tecnológicos – da ciência e do cinema em si. Outros filmes marcantes se inserem nesta perspectiva, ainda que com nuances um pouco mais matizadas, como Carnaval em Marte (1954), O Homem do Sputnik (1959) e Os Cosmonautas (1962), que partem do modelo consagrado da chanchada para inserir temas de ficção científica.
 A partir dos anos 1960 uma nova perspectiva começa a ser vislumbrada, a de filmes mais centrados em temas sociais e políticos, como O Quinto Poder (1962), O Homem que Comprou o Mundo (1968), Brasil Ano 2000 (1969), entre alguns outros poucos que não firmaram uma tendência para as décadas posteriores, embora não tenham desaparecido completamente, como pode ser visto em filmes como O Efeito Ilha (1994) e nos mais recentes Branco Sai, Preto Fica (2015) e Bacurau (2019).
Contudo, a perspectiva crítica mais interessante do cinema brasileiro de FC tem sido a abordagem dos temas ambientais, o que faz todo o sentido num país de dimensões continentais, em processo de desenvolvimento econômico e com a maior floresta tropical do planeta e a maior biodiversidade. Como conciliar o desafio de construir uma nação material e socialmente desenvolvida com esta base ecossistêmica? Pergunta que tem desafiado gerações de ambientalistas, economistas, políticos e formuladores de políticas públicas recebeu diversas interpretações, ao longo da trajetória do nosso cinema. Filmes representativos nesta seara são Quem é Beta? (1973), Parada 88: Limite de Alerta (1978), Abrigo Nuclear (1981), Por Incrível que Pareça (1986), Oceano Atlantis (1993) e Acquaria (2004).
Nos últimos anos têm surgido alguns filmes estrelados por atores conhecidos que, mesmo não se assumindo como FC, pertencem ao gênero e podem servir, se esta tendência se mantiver por alguns anos, para um processo de popularização do gênero entre público e crítica. Exemplos como Redentor (2004), A Máquina (2005), Nosso Lar (2010) – este no subgênero espírita, de grande apelo –, O Homem do Futuro (2011) e o já citado Bacurau (2019).
Num primeiro momento ler sobre centenas de filmes pode parecer um pouco cansativo, afinal estes dois capítulos vão da página 29 até a página 236, mas creio que num trabalho pioneiro como este é mais que justificado. Antes de mais nada, vale registrar aqui o volume impressionante de informações que ele levanta – com o mérito adicional de entrevistar vários dos diretores dos filmes – mostrando ser um pesquisador dedicado e apaixonado. Mas a leitura das quase duzentas páginas destes dois capítulos é das mais divertidas. Eu, pelo menos, fiquei com muita vontade em ver filmes absolutamente raros e obscuros, e ao mesmo tempo, frustrado porque a imensa maioria deles não se encontra à disposição, seja na internet e muito menos no mercado de DVDs ou blu-rays. Ainda mais do que na literatura brasileira de FC, há um campo enorme a ser descoberto por parte de fãs, críticos e público interessado sobre o que já foi feito (e se faz) em termos de cinema do gênero.
Mas se estes dois capítulos em si já seriam uma contribuição mais do que suficiente para tornar o livro uma referência tanto para o cinema quanto para a FC no Brasil, Suppia parte para uma discussão mais analítica sobre porque o cinema brasileiro de FC se desenvolveu destas formas, suas possíveis ligações com o realismo mágico e das dificuldades de reconhecimento que a FC encontra tanto no cinema, como na literatura para se tornar uma forma de expressão artística vista como relevante por si enquanto criação, e também enquanto caminhos para refletir sobre problemas da realidade brasileira.
Inicialmente ele procura relativizar a noção de que o cinema brasileiro – e o de FC em particular – deve ter como parâmetro de comparação e qualidade apenas Hollywood. Assim, compara a produção brasileira como a de países com condição social e tecnológica semelhante, como o México, Argentina e o Leste Europeu. Novamente por meio da resenha de alguns filmes importantes de cada país, ele mostra que a questão geográfica nem sempre é a mais adequada para se identificar similaridade entre a produção dos países, mas sim suas conexões e afinidades culturais. Neste sentido, o cinema mexicano se assemelha mais ao brasileiro – principalmente no que diz respeito a não se levar muito a sério e de se reconhecer como tecnologicamente inferior –, do que ao do seu vizinho rico do norte, e o argentino ao da Europa Ocidental, em seu caráter mais sério e socialmente crítico.
O cinema brasileiro de FC tem dificuldades de afirmação e reconhecimento – especialmente no formato longa-metragem –, porque ainda reina um senso comum de que estamos tecnologicamente atrasados com relação aos EUA, e o gênero ser considerado como de pouca relevância num país com tantos problemas históricos e sociais. O livro mostra de forma convincente que o primeiro argumento não se sustenta. Se é fato de que não há condições de se produzir no Brasil filmes com efeitos visuais como os de Hollywood – apesar de novas tecnologias digitais terem reduzido esta distância nos últimos anos –, por outro, isto não é tão importante assim, pois é possível contar boas histórias concentrando-se mais nos roteiros e interpretações. Ou seja, no aspecto mais dramático e de conteúdo do cinema.
Tomando como inspiração o artigo clássico de Fausto Cunha, “FC no Brasil, um Planeta Quase Desabitado”[1], Suppia nomeia o cinema brasileiro como de “atmosfera rarefeita”, mas não invisível dada a quantidade nada desprezível, resistente e contínua da prática de produções cinematográficas brasileiras de FC, mesmo que boa parte delas, em especial nos longas-metragens, tenham sido realizados sem a consciência ou intenção de serem identificados com o gênero. O fato é que o cinema enfrentaria uma dificuldade ainda maior do que a literatura de ser reconhecido e praticado, dado os custos altos exigidos pela arte cinematográfica, mesmo aquela realizada com orçamentos modestos.
Atmosfera Rarefeita, publicado em 2013, é uma obra de referência de qualidade inegável e coloca-se no mesmo patamar que Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil, 1875-1950 (2003), de Roberto de Sousa Causo, tem para os estudos históricos e pesquisas sobre a literatura de FC brasileira.
O livro é ainda completado por dezesseis páginas coloridas de rico e raro material visual de produções brasileiras de FC, mas ficou incompleto pela ausência de uma listagem dos filmes citados e analisados, além de um índice remissivo, que seria de grande utilidade numa obra desenvolvida com tantas minúcias de informações, especialmente sobre filmes e realizadores.

– Marcello Simão Branco


[1] Publicado como capítulo extra do livro No Mundo da Ficção Científica (Science Fiction Reader´s Guide), de L. David Allen. Summus Editorial, 1975.

domingo, 10 de novembro de 2019

Aimó: Uma viagem pelo mundo dos orixás, Reginaldo Prandi

Aimó: Uma viagem pelo mundo dos orixás, Reginaldo Prandi. Ilustrações de Rimon Guimarães, 200 páginas. Selo Seguinte, Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2017.

Tratar de mitologia africana não é novidade no ambiente da ficção fantástica brasileira, embora não seja também uma recorrência. De fato, há ainda uma grande defasagem entre as mitologias fundadoras de nossa cultura e as mitologias de matriz estrangeira quando falamos de ficção brasileira. A esmagadora maioria dos autores brasileiros sente-se pouco confortável com a cultura nativa até porque não a conhece: vive num ambiente aculturado, em que os valores estrangeiros, geralmente europeus, predominam. Por isso, é muito comum encontrarmos autores brasileiros no campo do fantástico trabalhando com mitologias grega, nórdica, japonesa e até nativas da região da América do Norte. É o que vemos no cinema, na tv, nos quadrinhos e na literatura dominante do gênero que, não por acaso, vêm exatamente do mercado anglo-americano que explora todas elas. Em alguns momentos, no ambiente dos autores, até se construíram discursos pró-nativos, de matizes modernistas, mas sempre houve uma forte corrente contrária que a acusava de ser patrulheira e pregar uma ficção estereotipada.
O que tem permitido o crescimento de obras literárias com temas africanistas no ambiente da ficção fantástica brasileira, além da laicização do mercado e da "explosão cambriana" na diversidade cultural, foi a cultura do "faça você mesmo" e, principalmente, a popularização dos processos editoriais. Hoje, diferentemente de todos os outros tempos, publica quem quiser e o que quiser. Com as facilidades editoriais, seja no acesso à impressão por demanda ou no crescimento da atividade literária no espaço virtual, os editores comerciais perderam boa parte do poder de determinar o que pode ou não ser publicado. Ainda há, é claro, um nó górdio na distribuição de livros reais, dominado por uma máfia voraz, mas há quem diga que as livrarias também já têm seus dias contados.
Ao longos dos últimos vinte anos, mais ou menos, formou-se um grande grupo de autores e leitores muito interessados em novidades, integrado pelo avanço da internet. Num primeiro momento, enquanto as grandes editoras ainda insistiam em ignorar esse grupo, os autores fizeram circular fanzines e livros independentes que ajudaram a crescer uma massa de leitores ao ponto de formar um mercado potencial. Timidamente,  autores ligados ao fandom começaram a aparecer nas livrarias e cada vez mais deles percebem que a ficção fantástica tem méritos suficientes para romper preconceitos.
Enfim, depois de muita luta, podemos dizer que as comportas abriram e a ficção fantástica não está mais restrita a um fandom especializado. Autores experientes, inclusive do mainstream, parecem entender as vantagens de trabalhar dentro da ficção especulativa, avançando especialmente no fantasia, que tem sido o gênero de melhor aceitação comercial.
Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás é um exemplo disso. Romance de autoria do sociólogo Reginaldo Prandi, autor paulista e estudioso da mitologia africana que escreveu o importante Mitologia dos orixás (2000, Companhia das Letras) e diversos outros volumes sobre cultura afro-brasileira, elabora uma fabulação singela que, de forma bastante didática, mostra como se fundamenta a religiosidade africana. Aimó não é seu primeiro romance no tema: Ifá, o adivinho (2002, Companhia das Letras), por exemplo, foi premiado em 2003 como Melhor Livro Reconto da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
Acompanhamos a jornada de Aimó, menina sem memória que, aos prantos, vaga pelo Orum, o mundo dos orixás. São tantas suas lágrimas que acabam por despertar Olorum, o maior dos orixás, que, sensibilizado pelo sofrimento de Aimó, encarrega Ifá e Exu para que apresentem à menina todas as orixás para que ela possa escolher uma delas como sua mãe espiritual e então reencarnar no Aiê, o mundo dos homens, e restaurar sua linhagem. Aimó inicia assim uma peregrinação por Orum, testemunhando, a partir das narrações de Ifá, as principais histórias de cada uma das orixás femininas e, no processo, também dos orixás masculinos. As narrativas de Ifá, sempre apresentadas em uma fonte diferenciada do estilo principal do texto, também expõem ao leitor as características doutrinárias do Candomblé, religião africana que deu origem às seitas praticadas no Brasil.
As ilustrações de Rimon Guimarães, de um estilo primitivista elegante, ajudam a construir o imaginário do Orum. Cada capítulo é introduzido por um dos signos do oráculo de Ifá (o jogo de búzios), detalhados num anexo no final do volume. Também aparecem em anexos: notas do autor, um glossário com termos das línguas nagô e iorubá citados no livro, e uma relação explicativa sobre cada um dos orixás.
O romance de Prandi, como integrante do selo juvenil da Companhia das Letras, tem o objetivo de levar ao leitor jovem algum conhecimento sobre esta que é a mais viva das mitologias modernas, extremamente influente na cultura brasileira. Contudo faz muito mais do que isso: traz também ao leitor experiente da literatura fantástica um das mais expressivas e esclarecedoras explicações sobre o Candomblé, seus fundamentos e seus personagens, integrando-os com naturalidade ao imaginário coletivo, sem proselitismos. Ao lado de O palácio de Ifê (2000, L&PM) e A estrela de Iemanjá (2009, Cortez), ambos da escritora gaúcha Simone Saueressig, Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás forma uma tríade da melhor ficção fantástica sobre orixás já apresentadas ao leitor brasileiro, leituras obrigatórias principalmente a autores que pretendem navegar por águas tão pouco conhecidas.
Cesar Silva

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Almanaque Entrevista


Roberto de Sousa Causo fala sobre os 30 anos de sua carreira literária e as perspectivas da ficção científica brasileira


por Marcello Simão Branco


Conheço o Causo desde setembro de 1987, faz tempo, a partir de uma reunião mensal do Clube de Leitores de Ficção Científica, em São Paulo. Artista e militante em tempo integral, fez tudo e mais um pouco em prol da ficção científica e fantasia no país desde então. O que se faz com as perguntas a seguir é além de celebrar a longevidade de sua carreira, reconhecer sua importância, que se confunde com a trajetória e desenvolvimento do gênero no país. Pois se ele, numa visão de conjunto, se estabeleceu como um dos nossos autores mais relevantes, tem uma contribuição multiforme, e não menos significativa: fã, fanzineiro, ilustrador, crítico e ensaísta, editor, tradutor, pesquisador acadêmico, organizador de eventos. Poucas pessoas têm uma condição semelhante em nossa comunidade, e também por isso – concorde-se ou não com algumas de suas posições e argumentos, que lhe renderam polêmicas pesadas no passado –, ele tem uma sólida legitimidade.
Na entrevista a seguir Causo repassa sua trajetória, em especial como escritor e suas principais características temáticas, as influências que recebeu e sua postura democrática e diversificada em relação à FC, em parte responsável também por sua abertura e disposição em realizar tantas atividades. Mas responde, principalmente, sobre aspectos mais recentes da FCB e suas perspectivas para que conquiste mais espaço editorial, leitores e renovação de autores e ideias, no intuito de almejar uma condição de mais reconhecimento no meio literário e cultural brasileiro.

Você completou 30 anos de carreira profissional em 2019 escrevendo FC&F no Brasil. O que isso significa para um escritor no qual os gêneros são tão pouco valorizados, e que tipo de paralelo é possível fazer entre a sua trajetória e a da FC&F brasileira neste período?

Carreiras nacionais com esse tempo são raras, então imagino que eu seja um sobrevivente dos percalços desse campo. Tem gente ainda em atividade de um modo ou de outro, que tem mais tempo de estrada: Finisia Fideli, Jorge Luiz Calife, Daniel Fresnot, Simone Saueressig, Carlos Emílio Correia Lima, Braulio Tavares; e contemporâneos meus, Gerson Lodi-Ribeiro, Fábio Fernandes, Henrique Flory e uns poucos outros. As coisas eram bem diferentes em 1989, as portas muito mais estreitas – tanto que minha estreia foi com um conto publicado na revista francesa Antarès, na qual também apareceram André Carneiro, Walter Martins, Calife e Lodi-Ribeiro.
Sou um autor típico da Segunda Onda da FC Brasileira, eu acho. Com influências populares, muita visualidade e um conhecimento da história, da evolução e das questões próprias da ficção científica e fantasia, que baliza a minha produção. Testemunhei o surgimento da Terceira Onda com algum atrito inicial, mas pela boa vontade de editores como Douglas Quinta Reis, Erick Sama, Richard Diegues & Gianpaolo Celli, Samir Machado de Machado, Claudio Brites, Duda Falcão & Cesar Alcázar e Nelson de Oliveira, pude contribuir para algumas das iniciativas características desse momento ainda vigente da FC brasileira – o steampunk, as séries de antologias originais, a fantasia folclórica. Mas acho que mantendo a minha cara e minhas áreas de interesse.
Tenho a impressão de que o rebuliço da Terceira Onda está decantando em algo próximo das características da Segunda Onda, quer dizer, cada autora ou autor encontrando o seu espaço temático e programático individual, numa chave de diversidade de abordagens e de influências. Nomes como Ana Cristina Rodrigues, Ana Lúcia Merege, Ana Rüsche, Cirilo S. Lemos, Christopher Kastensmidt, Eduardo Kasse, Enéias Tavares, Erik Novello, Fábio Kabral, Felipe Castilho, Giulia Moon, Leonel Caldela, Luiz Bras e Tibor Moricz tem um trabalho com características próprias, de abordagens definidas. A diferença – provavelmente mais de grau do que num plano estrutural em relação às coisas da Segunda Onda – é que o campo da literatura jovem representa uma força atratora particular com alguns elementos dominantes com uma pressão uniformizante que contrasta um pouco com esse quadro.

Uma de suas características sempre foi a versatilidade temática, com bom trânsito entre a FC, seus subgêneros, ramos da fantasia, e o horror. Exemplos temos em obras como Glória Sombria (FC espacial), Selva Brasil (história alternativa), Terra Verde (FC ambiental), A Corrida do Rinoceronte (fantasia contemporânea), Anjo de Dor e Mistério de Deus (fantasia sombria). Como você explica tal virtude na perspectiva de uma abordagem humanista e socialmente crítica presente nestas e em outras de suas histórias?

Fico contente que você enxergue a minha atividade assim. Como fã de ficção científica e fantasia, eu entendo esse campo como muito amplo e múltiplo, e nunca fez muito sentido pra mim assumir um único gênero ou tendência. O exemplo de Orson Scott Card, que escreveu e escreve com sucesso FC, fantasia e horror também foi importante pra mim, como um precedente de peso dessa atuação multifacetada.
A realidade também é múltipla, então não existe uma perspectiva literária que sozinha dê conta dela ou que a represente por inteiro – uma ilusão muito frequente do mainstream literário. Escrever em gêneros e subgêneros diferentes me permite abordar as coisas de maneira diferente e compor o meu próprio mosaico.
Caí na FC hard com o Universo GalAxis meio que por acidente, já que a minha formação em exatas é mínima. Mas a gente vive há algum tempo um bom momento da divulgação científica no Brasil, e a FC brasileira precisa refletir isso. Mais ainda na conjuntura atual, em que a produção científica e a contribuição da ciência para a política e para a informação dos cidadãos está ameaçada por fundamentalismos ideológicos, religiosos e de mercado.
Eu cresci durante a ditadura militar, com a censura às artes e às ideias, e por isso costumo dizer que tenho pouca paciência com conceitos como arte pela arte e hermetismo literário. A liberdade de dizer coisas impõe a necessidade de dizer coisas – no meu caso, é a denúncia dos azares da herança violenta da cultura brasileira, a desigualdade e a exploração do semelhante, a ameaça ao meio ambiente, e o isolamento moral de quem tenta ser correto em uma sociedade essencialmente corrupta.

Apesar de ter se consolidado como um autor profissional, você nunca esteve longe do fandom tendo, inclusive, surgido nos primórdios da Segunda Onda, no início dos anos 1980. Qual a importância do fandom em sua carreira, e como analisa suas transformações nestes 30 anos? Afinal em que sentido podemos afirmar que existe um fandom brasileiro de FC&F neste século XXI?

Acho que estou longe de ser um escritor estabelecido. Muita gente já ouviu falar de mim, mas pouca gente me leu.
O fandom é muito importante para mim. Me deu foco, motivação e base para entender a FC e a fantasia de maneira mais aprofundada, e me apresentou amigos e relações que enriqueceram a minha vida. As pessoas do meio, especialmente as que criticam o fandom, têm dificuldade em reconhecer o quanto ele constitui um ambiente frutífero de troca de ideias, uma institucionalidade informal necessária para a vitalidade de uma literatura, quando a institucionalidade formal do mainstream não supre as nossas necessidades específicas.
Era assim lá por 1997, quando eu defendia o fandom e era acusado de ser o guardião dos portões do gueto, e continua sendo assim hoje, em grande parte. De lá pra cá, nenhum de nós, pró ou contra o fandom, foi aceito pelo mainstream literário, embora tenha havido uma forte aproximação dele com todo o campo da ficção especulativa nacional. Daí, inclusive, a gente acompanhar com atenção o empenho de Nelson de Oliveira (que é pró-fandom, segundo eu entendo) em aproximar os dois campos – e como, inclusive, a sua cruzada pela renovação do mainstream pela FC acabou circunscrita ao universo das pequenas editoras. Por tudo isso, também observo com interesse como o pessoal da Terceira Onda tem reagindo à manifestação de Santiago Nazarian como porta-voz dos valores e da qualidade seletiva, exclusiva e autoritária do mainstream.[1]


Fã histórico da série de FC alemã Perry Rhodan, como ela incentivou e influenciou suas histórias? Nota-se, por exemplo, elementos palpáveis dela em sua série As Lições do Matador.

Perry Rhodan é um fenômeno editorial sem paralelo, e a mais vasta space opera de todos os tempos. Para manter esse fôlego, eles usaram muitos temas da FC, mesmo fora da space opera. Desse modo, ler Perry Rhodan na infância e adolescência foi como ter um curso intensivo sobre ficção científica, de um modo despretensioso. Um resultado disso é uma postura democrática, inclusiva e também despretensiosa, a respeito do gênero, que eu acredito que assimilei.
Na minha ficção, certamente herdei da série (e de outras influências) um componente idealista. Além disso, nas Lições do Matador, a premissa da luta dos humanos contra naves-robôs deve ter saído diretamente do primeiro e do segundo ciclo de Perry Rhodan, – eu até escrevi um ensaio enorme sobre isso, conectando o tema com o uso de drones de ataque na atualidade: “Combatendo Robôs”. Também deriva de Perry Rhodan a ideia da humanidade como o sangue novo, o arrojo que pode fazer frente aos alienígenas que comandam essas naves-robôs. Outra influência está na tendência em dividir a minha série em ciclos — até aqui, desenvolvidos simultaneamente. Meu protagonista, Jonas Peregrino, é, como Perry Rhodan, um líder não-ideológico que conquista a confiança dos subordinados pelo exemplo e pela retidão. A grande diferença é que Peregrino opera dentro de uma hierarquia, e nunca irá comandar a humanidade. Ele tem um lado sombrio e melancólico que Rhodan não tem.
Há outras inversões, quer dizer, estratégias que assumi até porque Perry Rhodan não responde a certas ansiedades literárias minhas. Enquanto as novelas que compõem os episódios da série alemã têm texto minimalista, eu gosto mais de textura, de densidade, daí apelar mais para o texto superescrito. Acho que eu queria tanto mergulhar no mundo dessa série, que o minimalismo da prosa não permitia, que acabei buscando o seu oposto.
Perry Rhodan tem um lado conciliador que me agrada muito – raramente há um conflito bélico total ou até a destruição do adversário. Civilizações derrotadas pela humanidade ressurgem como povos amigos e aliados. Mesmo assim, as principais ameaças são quase sempre alienígenas, e a união da humanidade se deu de maneira quase descomplicada. No meu universo ficcional, aparte os tadais e suas naves-robôs, os alienígenas em geral são amigos e mais avançados em termos éticos, enquanto são as divisões humanas que trazem as maiores dificuldades.
Quando Perry Rhodan foi iniciada, na década de 1960, a série expressou uma ansiedade de união da Europa contra a divisão ideológica do mundo entre Leste-Oeste e a sua ameaça de guerra nuclear. O nosso mundo atual vê a União Europeia e outras áreas do mundo – o Brasil e a América Latina entre elas – divididas de maneira ainda mais fragmentária, ideológica, politicamente rasteira e com elevada desigualdade econômica.

Alguns observadores têm defendido que a FC brasileira vive um bom momento. Você concorda? Se sim, seria em que sentido, em termos editoriais, de qualidade das obras publicadas, de uma nova geração de autores?

Em termos editoriais, certamente. O volume de publicações e variedade de iniciativas – editoras, coleções de livros e revistas eletrônicas – deixa os outros momentos da história da FC no Brasil no chinelo, mesmo admitindo que a maioria absoluta disso tudo seja estritamente semiprofissional. A diversidade de abordagens também é algo a se aplaudir – do pulp ao borderline, com a fusão do mainstream com a FC. Quanto à qualidade, escritores como Cirilo S. Lemos, Enéias Tavares, Luiz Bras e alguns outros não devem a autores dos outros momentos da nossa FC. Vale lembrar ainda que gente da Segunda Onda ainda está em atividade: Braulio Tavares, Carlos Orsi, Fábio Fernandes, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, Jorge Luiz Calife e Sid Castro, por exemplo.
Há de se lamentar algumas coisas, porém. A principal delas é a absoluta separação, tipo água e óleo, entre o topo da publicação de ficção científica no Brasil – que está nas editoras Aleph, Intrínseca, Morro Branco e Suma – e os autores brasileiros de FC. Estes estão presos, na maioria absoluta, a espaços semiprofissionais e à carência de investimentos editoriais e promocionais. É bem possível, inclusive, que as brigas e divisões dentro do fandom respondam por esse divórcio, assustando as editoras. De qualquer modo, é algo que elas precisam superar. A cultura brasileira não pode ser só um entreposto de produtos importados, e a publicação de FC também não.

De forma repetitiva, obras recentes da nossa FC tem se aproveitado de tendências ou modismos como, por exemplo, steampunk, new weird, new space opera, pós-humanismo, afrofuturismo etc. O que você pensa disso, principalmente na perspectiva da busca e expressão por uma FC mais brasileira, tema presente desde o fim dos anos 1980, mas ainda pertinente para a especulação sobre os problemas e perspectivas do Brasil?

Acho que aí temos algo um pouco problemático. Por conta de uma certa desaceleração e hiato na publicação de FC que você, eu e mais gente da Segunda Onda testemunhamos no fim da década de 1980 e durante a década de 1990, o pessoal da Terceira Onda se engajou, no começo deste século, em um processo bem intenso de atualização das tendências da FC e da fantasia. Esse é outro ponto positivo a se atribuir ao fandom, já que nada disso foi inicialmente abraçado pelas grandes editoras, que subiram nesse bonde bem mais tarde, e com traduções – como a Morro Branco e sua atualização da FC feminista. Coube às pequenas editoras, associadas ao fandom, essa tarefa de atualização, apelando em 90% aos autores nacionais. E alguns desses mesmos editores reconheceram mais tarde que era tanto modismo, que a FC/F nacional parecia a São Paulo Fashion Week (nas palavras de Marcelo Amado, da Editora Estronho).
Como eu já sugeri, esse processo acabou destilando tendências dominantes, especialmente o steampunk, que me parece mais apto a absorver aspectos brasileiros do que outras tendências – a história do país, sua geografia, cultura e suas figuras históricas. Obras como A Lição de Anatomia do Dr. Louison, de Enéias Tavares, e E de Extermínio, de Cirilo Lemos, são romances maduros que expressam o potencial da contribuição steampunk à FC brasileira.
É claro, no seu pior, tal esforço de atualização expressa uma subordinação cultural em relação ao que é produzido nos Estados Unidos e na Inglaterra. Isso também entra na frente da reflexão sobre explorações brasileiras que seriam contribuições originais ao gênero. Durante a Segunda Onda, nós testemunhamos a reação negativa de muitos setores à proposta dessa reflexão, e a Terceira Onda começou repetindo muitos dos argumentos contrários a ela, mas aos poucos foi se dobrando ao steampunk, à fantasia folclórica (a antologia do CLFC com a Editora Draco seria impensável junto às antigas lideranças do clube) e, mais recentemente, à FC jovem distópica ou representativa dos excluídos – como a gente vê, por exemplo, na edição especial sobre FC e fantasia brasileiras da revista eletrônica Strange Horizons. Me parece então que a questão levantada por Ivan Carlos Regina em 1988 – e por Walter Martins na década de 1960 – ainda está viva, mas de forma difusa, faltando apenas mais discussões abertas a respeito. Mas os fóruns também estão muito difusos hoje em dia, não é mesmo?
Daí a importância, inclusive, do evento “Ficção Científica Brasileira: 60 Anos de Manifestos”, organizado por Ana Rüsche, George Amaral e Elton Furlanetto em 1.º de dezembro do ano passado – uma discussão que, em torno de manifestos que vêm de 1958 ao presente, expressou a seriedade e senso de propósito que o gênero pode assumir no Brasil, e as principais linhas de tensão sentidos por ele na sua evolução e no seio do sistema literário do país. Uma discussão que vai muito além de desempenho de mercado e imitação de tendências.


Uma outra vertente interessante presente na FCB nos últimos anos é uma nova geração de pesquisadores e estudos acadêmicos. Embora ela possa contribuir na busca pela superação de preconceitos – especialmente nas universidades – e já tenha produzido trabalhos renovadores, ela não carece, de uma forma geral, de uma cultura mais abrangente sobre a FC, que estaria mais presente na geração de leitores forjada no fandom?

Olha aí, mais uma pergunta incisiva e crucial. Acho que aqueles acadêmicos que possuem essa cultura se destacam, como Ramiro Giroldo, Ana Rüsche e Alfredo Suppia. Eles e outros – aqueles voltados para o coletivo “literatura fantástica” ou “fantasismo”, como Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares – estão forjando mais pesquisadores com a mesma inclinação, eu suponho.
Dedicação exclusiva à FC como tópico acadêmico é algo difícil, nem sei se existe em centros mais dinâmicos como Estados Unidos e a Inglaterra. Todo mundo, eu acho, faz o seu malabarismo com muitos assuntos e teorias literárias. Mas eu me lembro daquela visita ao congresso da ABRALIC na USP em 1992, com um único painel sobre literatura fantástica e ficção científica, envolvendo três pesquisadores apenas (dois deles estrangeiros). Quando a gente compara com o congresso do Insólito Ficcional que visitei, graças ao Prof. Flavio García, ano passado na UERJ, com suas dezenas e dezenas de comunicações e conferências, fica claro que houve uma transformação radical na penetração desses assuntos no ambiente acadêmico brasileiro.
Acho que o uso mais utilitário da FC no meio acadêmico seria o de mera ilustração de teorias literárias e teorias da cultura, e tenho certeza de que isso acontece. Mas mesmo daí podem surgir contribuições interessantes.
Acho que sua pergunta traz embutida a questão de uma ausência de diálogo ou sinergia entre essa produção intelectual e a produção artística de FC no país. Tirando Libby Ginway, Ramiro Giroldo, Ana Rüsche e seu grupo, existem poucos acadêmicos com disposição de interagir com autores e fãs. Nesse evento da UERJ, Flavio García fez o gesto importantíssimo de incluir escritores/acadêmicos como conferencistas, sugerindo essa ponte tão importante. Mas não sei se você concorda, o fandom e os seus autores costumam ter um lado anti-intelectual, avesso ao contato com a academia e suas discussões, preferindo falar de mercado e tendências... Isso também está mudando, mas é preciso haver boa vontade para o diálogo, de ambas as partes, para que essa sinergia possa ser mais forte e produtiva.

O que vem pela frente? O que anda escrevendo, quais seus próximos projetos?

Terminei há pouco “Anjos do Abismo”, o terceiro romance das Lições do Matador. Já foi revisado, inclusive, por Carlos Angelo, e aguarda o melhor momento de ser apresentado à editora. O Desire Studio está trabalhando na revista em PDF Universo GalAxis Anual 2019, para promover o Universo GalAxis (do qual fazem parte As Lições do Matador e sua série-irmã, Shiroma, Matadora Ciborgue). Você, inclusive, tem um texto na revista.
A iniciativa de Duda Falcão junto à Editora AVEC, uma série de antologias originais chamada Multiverso Pulp, aceitou há pouco meu conto “Garimpeiros”, que narra uma aventura de Jonas Peregrino na Esquadra Colonial, ainda como tenente. Essa é uma nova frente para As Lições do Matador, e há pouco terminei uma noveleta ambientada em Marte, com uma aventura do cadete Peregrino ainda na academia militar. Além disso, trabalho no primeiro romance de Shiroma, Matadora Ciborgue, com o título de “Cerco em Ulaambaatar” – cuja primeira parte, “Phoenix Terra”, deve virar e-book pela Editora Mojuganide, do Desire Studio, com uma linda ilustração de capa de Carlos Rocha. E também já comecei o quarto romance das Lições do Matador, “Operação Nebulosa”, que deve equilibrar a space opera militar da série com uma space opera mais exótica, tipo Jack Vance.
Luiz Bras, o organizador da coleção Futuro Infinito, me pediu um livro de contos, e eu já entreguei “Brasa 2000 e Mais Ficção Científica”, que sai no fim de 2019 ou em 2020. E a Plutão Livros de André Caniato se prepara para trazer de volta minha noveleta “Patrulha para o Desconhecido” como e-book – ela foi uma das três histórias classificadas no primeiro concurso nacional de contos de FC, o Prêmio Jeronymo Monteiro da Isaac Asimov Magazine, onde apareceu pela primeira vez em 1991, como você deve se lembrar.
Enfim, eu ainda trabalho no projeto literário do Desire, o romance multivolume “Archin”, uma criação de Taira Yuji, o fundador do estúdio.




[1] Causo se refere ao artigo “A dura realidade da ficção fantástica”, de Santiago Nazarian, publicado na Folha de S. Paulo, suplemento “Ilustríssima”, em 29 de setembro de 2019, e a réplica “Ficção fantástica decola e ganha altura”, de Samir Machado de Machado, no mesmo jornal e suplemento, em 6 de outubro de 2019.