quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Prêmio Litera 2023

Iniciativa do perfil  TT Literário, o Prêmio Litera ranqueia, em consulta popular através de formulários online, os favoritos do público nas categorias Protagonista literário, Casal literário, Amizade, Meme ou confusão literária, Hype literário, Sáfico, Merecia mais, Página de promoção, Book influencer, Lançamento independente, Capa, Ilustrador, Lançamento LGBTQIA+, Romance, Romance brasileiro, Fantasia, Fantasia brasileira, Ficção científica e Suspense/thriller brasileiro.  Algumas das categorias são exclusivas para trabalhos brasileiros, nas demais as produções estrangeiras e nacionais concorrem em igualdade de condições. A título de registro, transcrevemos aqui as dez primeiras posições das categorias que envolvem a ficção de gênero. São elas:
Ficção científica
1- 24h para correr, Marina S. Dutra
2- Aurora, Vitória Souza 
3- Marea infinitus, Lis Vilas Boas
4- Incompletos, Laís dos Passos
5- Anima: Ameaça virtual, Mariana Madelinn, Carol Vidal & Ricardo Santos
6- Vigilantes e o multiverso do caos, Denise Flaibam
7- As foices, Neal Shusterman
8- Uma galáxia multicor e os confins do universo, Becky Chambers
9-  A torre acima do véu, Roberta Spindler
10- Nós fazemos o mundo, de N. K Jemisin.
Fantasia
1- Marcada com sangue, Tracy Deon
2- A hospedeira do caos: Espelho d'água, Marcella Albuquerque
3- Caledrina Cefyr e a fonte perdida, Gabriela Costa
4- Tulipa Luz e os fantasmas do passado, Lolline Huntar'z
5- Os devaneios de Rory Agnes, Anne C. Freitas
6- Aurora dourada, Pamela Guerardi
7- Nilue, Thais Lopes
8- Entre beijos e flechas, Vanessa Freitas
9- Pequenas maldições: Criaturas nefastas, Caroline Carnevalle
10- Divinos rivais, Rebecca Ross.
Fantasia brasileira
1- O invasor de sonhos, Gricia Mendes
2- Até o amanhecer, Vanessa Freitas
3- Entre beijos e flexas, Vanessa Freitas
4- Prata manchada, Fernanda Redfield
5- Servante: Fogo e obediência, S. C. Deborah
6- Mensageiro do legado, Thainá Fernandez
7- Tulipa Luz e os fantasmas do passado, Lolline Huntar'z
8- Sangue de areia, Mari Lima
9- Aurora dourada, Pamela Gerardt
10- A sereia sem dons, Cristina Bomfim.
Thriller/suspense brasileiro 
1- Em quadrados, Ana Camarinha
2- A cópia, Gabby Meister
3- O mistério da casa incendidada, Rafael Weschenfelder
4- Trem de louco, Bruno de Deus
5- A outra Ana, Vinicius Oliveira Rocha
6- Xuxa preta, Alan de Sá
7- Acalanto, Auryo Jotha
8- O monstro dançante, Gabrielli Casseta
9- Medeia morta, Claudia Lemes
10- Má influência, Dan Rodriguez.
A organização do Prêmio Litera não informa os detallhes editoriais de cada título. 
Mais posições destas e de outras categorias podem ser garimpadas no perfil do prêmio, aqui.

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Naquela época tínhamos um gato/Os saltitantes seres da Lua, Olyveira Daemon

Naquela época tínhamos um gato/Os saltitantes seres da Lua
, Olyveira Daemon. 216 páginas. São Paulo: edição de autor, 2023. Publicado em ebook.

Afinal, quem é Olyveira Daemon? 
Não há mistério. Trata-se da personalidade pós-lobotômica do ser fragmentário antigamente conhecido por Nelson de Oliveira, escritor mainstream, ou quase isso, que logrou ganhar o Prêmio Fundação Cultural da Bahia por sua primeira coletânea, Os saltitantes seres da Lua, publicada em 1997. E, como se não fosse suficiente, abiscoitou também o importante Prêmio Casas de Las Américas em 1998 pela coletânea Naquela época tínhamos um gato (escrita antes, publicada depois), ambas reunidas agora em uma única edição, "parcialmente revisada", como diz o próprio Olyveira na página de rosto da nova edição. 
Quando ganhei uma cópia deste livro, o autor mandou jogar fora as edições anteriores. Talvez as revisões não tenham sido tão parciais assim. De qualquer forma, foi uma ótima iniciativa recuperar essas duas publicações que estavam esgotadas e eram difíceis de encontrar. Embora eu me recorde de ter lido Naquela época tínhamos um gato por volta de dez anos atrás, todos os contos, de ambos os títulos, me pareceram tão fresquinhos como se tivessem sido escritos agorinha mesmo. 
Lembro que, na primeira leitura, já havia ali o indisfarçável experimentalismo com estilos de discurso e linguagem, que me causou mais estranhamento do que os enredos propriamente ditos. Desta vez, os experimentos estão ainda mais acentuados e levam o leitor desavisado ao quase desespero cognitivo. Sobrevivi porque já esperava por isso mas, mesmo assim, a leitura desta reedição é uma experiência estética incomum. 
Olyveira Daemon não dá trégua ao leitor. De um texto em que todas as letras "i" são substituídas por "y" e as "c" por "k", segue-se outro escrito em portunhol, e outro no qual os pontos finais são trocados por barras verticais, sinais de parágrafo (§) e outros grafismos, ou em que as letras "o" viram círculos pretos, ou certas palavras são substituídas por falsos cognatos muito marotos, ou os nomes dos personagens antecedem suas falas como em um roteiro de teatro, e assim por diante. Quanto mais avança a leitura, mais profundas as ousadias. 
Mas não só de experimentos de linguagem vive o heterônimo de Nelson de Oliveira. As histórias também são arrojadas, indo do realismo naturalista de "Éramos todos bandoleiros", e ">Os insetos , o silêncio", passando pelo absurdismo de "Kadáver kauteloso eskondido num baú" e "Encanador", pela fantasia de "A vysão vermelha de Vyctor, ao vento", pelo humor escrachado de "Qüiprocó na Sé", até pela ficção científica de "The body snatchers". Alguns são curtinhos, praticamente vinhetas de duas ou três páginas, outros são robustos, ocupando dezenas delas, formando uma seleta de trinta contos no total. Em alguns intervalos entre os contos, surgem comentários espirituosos do autor, chamados de "Notas-anedotas" que ajudam a contextualizar os textos quanto às propostas do autor. O volume é completado por um prefácio assinado pelo jornalista e também escritor André Cáceres.
A coletânea é empolgante quanto as perspectivas que propõe para a estética literária, especialmente com relação a ficção fantástica que tem na suspensão da descrença um fundamento considerado incontornável e que é extemamente vulnerável ao mais leve experimentalismo na linguagem. 
Olyveira Daemon prova que a fcf brasileira engatinha no que se refere a ousadia formal, mas temo que os autores do gênero talvez não comprem a ideia com facilidade. Um dia, quem sabe? 
Enquanto isso, festejamos o fato de existir um Olyveira Daemon para sacudir os protocolos embolorados da velha pulp fiction.
Cesar Silva

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Prêmio Argos 2023

O Prêmio Argos de Literatura Fantástica, criado em 2000, é promovido anualmente pelo Clube de Leitores de Ficção Científica e reconhece os melhores trabalhos em romance, antologia e história curta de ficção científica, fantasia e horror escritos em língua portuguesa publicados no ano anterior. 
Em 2023, o método de escolha dos vencedores mudou, sendo realizado um primeiro turno de votação exclusiva entre os membros do Clube que indicam cinco finalistas em cada categoria, depois votados publicamente através de formulários digitais na internet.
Os vencedores em 2023 são:
Romance: Estação das moscas, Cirilo Lemos, coleção Dragão Negro, Draco;
Demais finalistas: Baluartes: Terra sombria, Clinton Davisson, Avec; Bem mal me quer, Hache Pueyo, Dame Blanche; O fantasma de Cora, Fernanda Castro, Gutenberg; Paradoxo de Theséus, Alexey Dodsworth, Draco.
Antologia: Os Pilares de Melkart, Ana Lúcia Merege, Draco;
Demais  finalistas: A study in ugliness e outras histórias, Hache Pueyo, Lethe Press; Fator Morus, Lu Evans, org., Nebula; Mafaverna: Democracia, Jana Bianchi e Diogo Ramos, orgs., NDI; Outros Brasis da ficção a vapor, Davenir Viganon, Caligo.
Conto:  Jogo do destino, Ana Lúcia Merege, Draco;
Demais  finalistas: Fica com Mi-go esta noite, Carlos Relva, do autor; O renascer dos deuses, Oghan N'thanda, do autor; "Planeta Quilombo", G .G. Diniz, Mafagafo 5; Sankofa, Juliane Vicente, da autora.
Parabéns aos ganhadores!

domingo, 3 de dezembro de 2023

Depois da Bomba

 Depois da Bomba (Dr. Bloodmoney, or How we Got Along after the Bomb), Philip K. Dick. Tradução: Eurico Fonseca. Capa: A. Pedro. 248 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 309, sem data. Lançamento original em 1965.

 


O título do romance faz referência ao dr. Bruno Bluthgeld, cientista alemão que trabalha para o Exército dos EUA, e que se traduz como bloodmoney em inglês. Pois é da ação e consequência desse personagem que a trama se desenrola. No passado, presente e futuro. Isso porque em 1972, Bluthgeld esteve à frente de um teste nuclear realizado na atmosfera que redundou num fracasso catastrófico: uma enorme onda radioativa se espalhou pelos EUA, trazendo morte e doenças a milhares de pessoas.

Em 1981 Bluthgeld procura viver de forma anônima em São Francisco, com o rosto envolto numa máscara que esconde cicatrizes e com uma paranoia cada vez mais doentia, por se corroer pelo mal que causou e pelo qual é odiado pela maioria das pessoas. Ele procura ajuda de um psicanalista, o Dr. Stokstill, que trabalha em frente a uma loja de venda e conserto de aparelhos de TV. Onde está o afro-americano Stuart McConchie e também, mais recentemente, Hoppy Harrington, um deficiente que não tem braços e pernas – decorrente de sua mãe ter ingerido talidomida em sua gravidez –, mas que é muito inteligente e se move com uma espécie de cadeira mecânica altamente sofisticada.

Dick expõe, inicialmente, o contexto por meio desses personagens para, de súbito, jogar o leitor no holocausto nuclear. Sim, os EUA sofrem um ataque maciço, provavelmente da União Soviética, e tem o país praticamente destruído. A cidade onde os três vivem é destruída, e o restante da história se passa no que restou da Califórnia, onde alguns agrupamentos urbanos sobreviveram de forma precária – sem eletricidade, água, combustível e pouca comida –, e no interior foram criadas algumas comunidades relativamente autônomas e isoladas umas das outras, com suas próprias leis e formas de organização do poder.

Sete anos depois, em 1988, reencontramos Bluthgeld, Harrington e McConchie. O primeiro isolado num sítio onde cria ovelhas, o segundo integrado à comunidade de West Marin e o terceiro vivendo de bicos na pequena cidade de Berkeley. A eles somos apresentados a outros personagens, não menos que memoráveis em sua estranheza e humanidade como, por exemplo, a menina Edie Keller, que, devido a uma mutação genética provocada pelo ataque nuclear, leva em seu ventre o feto do irmão Bill, numa aliança siamesa, e no qual ele se comunica telepaticamente com ela, e com os mortos; e o astronauta Walter Dangerfield, que vive numa nave em órbita sozinho, já que no mesmo dia que partiria para Marte com sua esposa, foi surpreendido pelo ataque nuclear. Após a morte dela, virou uma espécie de disc jóquei, se comunicando com as comunidades na superfície por meio de transmissões radiofônicas, onde veicula músicas e leituras de romances.

Mas este conjunto singular de personagens se situa num contexto pós-apocalíptico, por vezes crível e por vezes estranho, embora não inteiramente impossível. Isso porque nesse novo mundo, os efeitos radioativos possibilitaram a emergência de inteligência e capacidade de comunicação com os humanos por parte de cães e gatos, além de ratos com inacreditáveis capacidades musicais e matemáticas. Além disso, várias pessoas apresentam diferentes tipos de mutações e deficiências. Contudo, os sobreviventes permaneceram na superfície da Terra, pelo menos após vários viverem nos primeiros anos em espaços subterrâneos, como fez McConchie.

Dick procura mostrar não propriamente uma tentativa de reconstrução social, mas sobretudo de sobrevivência e adaptação a este novo mundo. Com isso, passa a centrar a narrativa principalmente na comunidade de West Marin, para onde converge os personagens já citados e outros que lá vivem. Mas nem todos realmente se adaptam a esta nova realidade. Ao invés, e de forma gradativa, se deterioram psicologicamente, tornando-se uma ameaça para os demais.




O dr. Bluthgeld é paranoico e acha que vai ser descoberto e assassinado, principalmente por qualquer pessoa nova que apareça em West Marin. Um professor chega a ser executado pela comunidade quando se descobre que pretendia realmente matá-lo. Mas ele, de fato, passa a imaginar que provocou o próprio holocausto e precisa provocar outro para uma nova “purificação” da humanidade. Louco ou não, o fato é que seus poderes imaginários passam a ter alguma espécie de realidade, quando tempestades terríveis se abatem sobre West Marin. Isso provoca a reação de Hoppy Harrington, um sujeito tão habilidoso manualmente, a despeito – ou por causa – de sua debilidade, quanto ressentido pelas humilhações do passado. Com crescente influência e megalomania imagina-se como a salvação de uma possível nova danação.

Um sentimento que vai se tornando cada vez mais nítido com o avançar da leitura é de irrealidade. Como se fossemos colocados dentro de um sonho que, aparentemente, não é nosso, mas que não conseguimos nos desvencilhar. Como bem apontou David Pringle, no livro Science Fiction: The 100 Best Novels (1985) – que incluiu este romance de Dick –, é como se o leitor sonhasse o sonho de outro, e dentro do seu contexto particular, se tornasse crível, mesmo com situações cada vez mais inverossímeis.

Dick apresentou dois títulos iniciais para Depois da Bomba: In Earth´s Diurnal Course e A Terran Odissey, mas acabou por concordar com a sugestão do prestigioso editor Donald Wollheim (1914-1990), numa alusão ao filme de sucesso da época, Doutor Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to StopWorrying and Love the Bomb; 1964), de Stanley Kubrick. E embora não seja intencional, pode ser visto como uma instigante especulação sobre as consequências de um mundo devastado pela guerra insanamente desejada pelo general louco interpretado por George C. Scott.

É a contribuição de Dick ao tema do pós-apocalipse nuclear, talvez o mais abordado pela FC durante a segunda metade do século XX, dado o grau de pesadelo próximo que se instaurou não só nos EUA, mas, em todo o mundo. Dick o faz à sua maneira, expondo principalmente, a desesperança e perturbação das pessoas, com efeitos também físicos sobre muitos deles. Vários personagens são mesmo passíveis de certa comiseração, num futuro que perdeu o sentido e, no qual, inclusive, o suicídio não provoque mais tanta perplexidade ou repúdio.

Depois da Bomba foi finalista do Prêmio Nebula em 1965, escrito no período tematicamente mais maduro de Philip K. Dick, a década de 1960, ao lado de outros romances tão misteriosos quanto fascinantes como, por exemplo, O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle; 1962), Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch; 1965), O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep; 1968) e Ubik (Ubik; 1969). Ora, todos eles foram publicados no Brasil, menos Depois da Bomba – que recebeu, inclusive uma segunda edição em Portugal, pela coleção Antecipação número 3, com o título de Os Sobreviventes –, numa ausência que chega a ser espantosa, dada sua relevância para a FC e para o conjunto da obra do autor.

Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

De ferro e de sal, Simone Saueressig

De ferro e de sal
, Simone Saueressig. 608 páginas. Novo Hamburgo: edição de autor, 2018. Ebook.

Asanegra é um adolescente em idade de ser vendido, por isso seu pai o leva até o mercado central da cidade fortificada de Brutmir, onde poderá encontrar o comprador certo para encaminhar o filho a uma profissão respeitável e lucrativa. E esse comprador acaba sendo o ferreiro Daskos que não tem filhos homens e pressente que precisa passar suas habilidades a um aprendiz. 
Satisfeito com o dinheiro que irá saldar suas muitas dívidas, o homem deixa o filho com Daskos e volta para sua terra, na região rural do distrito. Asanegra também está animado, pois escapou de ser comprado por algum tarado, o que não é incomum nesse tipo de negócio. O que ele não imaginava é que Daskos na verdade não é um homem sem filhos. Ele tem uma filha, a rabujenta Orí, que sempre quis conhecer a Forja onde o pai trabalha mas nunca pode porque é tabu que mulheres entrem lá. 
A Forja é uma instituição importante para Brutmir, uma vez que é onde se fabricam as armas e as barreiras de defesa da cidade contra o ataque do povo élfico, inimigos figadais dos homens desde que estes lhes tomaram a Torre de Amálgama, edificação que fica no centro de Brutmir e é sagrada para os elfos, que juraram retomá-la. Todo o trabalho na Forja só é possível com a ajuda dos Servidores, demônios domesticados que fazem a função de fornalhas de bancada, aquecendo o metal para ser modelado pelos ferreiros. Acontece que os Servidores enlouquecem de desejo se sentirem o cheiro das mulheres humanas e, no gozo do prazer, acabam por matá-las numa explosão autodestrutiva. 
Desse modo, a vida de Asanegra na casa de Daskos torna-se um inferno com as provocações e maldades de Orí, enciumada pelo privilégio do garoto em entrar na Forja e por ele ter a atenção do pai que, até então, só a ela pertencia.
Em outra parte da cidade, vive o estranho Sivo, homem poderoso e cheio de mistérios, chamado por todos de o Homem Santo. Sivo não é uma boa pessoa, pois está até o pescoço de ódio e ressentimento, e seu único desejo é destruir Brutmir e tudo o que ela representa. Para isso, vem articulando um plano de longo prazo, com detalhes que precisaram ser definidos com o cuidado de um relojoeiro. E a hora de colocar a máquina em funcionamento se aproxima pois, em breve, haverá uma conjunção rara de planetas que vai abrir caminho para o ataque definitivo dos elfos, algo em que ninguém em Brutmir acredita, pois os elfos estão distantes há muito tempo. Sivo se aproveita dessa situação para enfraquecer as defesas da cidade muralhada, bem como o seu exército que está decadente pelo ócio e pela corrupção. 
Este é, basicamente, o enredo de De ferro e de sal, romance de alta fantasia da escritora gaúcha Simone Sauressig, que o publicou em 2018 com recursos próprios através da plataforma de autoedição da Amazon. 
Trata-se de um texto longo, com mais de cem mil palavras e muita ação, especialmente em sua metade final, uma vez que a primeira metade do livro é dedicada a apresentar os muitos personagens, todos bem construídos, e a cidade murada de Brutmir, personagem principal da trama.
Alta fantasia não é uma novidade na produção da autora, que já apresentou outras obras no gênero, como a saga Os sóis da América (2013), o romance O jogo no tabuleiro (2009) e a duologia A noite da grande magia branca (1993)/A fotaleza de cristal (1988). A diferença que salta aos olhos para quem já conhece a ficção de Saueressig é o tom violento e cruel desta dramatização. Não que seus trabalhos anteriores não tivessem situações tensas e incômodas, inclusive isso foi bastante utilizado pela autora no romance de ficção científica B9 (2010) e em suas histórias curtas de horror, nas quais cenas sangrentas não são incomuns. Até mesmo a morte de personagens importantes nas tramas também está presente em obras anteriores. Porém, em De ferro e de sal, esse tom está definitivamente emaranhado à história, configurando um estilo diferenciado diante das peças acima citadas, como se Saueressig estivesse deliberadamente conduzindo sua ficção para um público mais maduro do que aquele ao qual foram dirigidos os trabalhos anteriores. Isso, somado ao curioso formato humorístico de sua coletânea mais recente, A noite dos insensatos (2023), demonstra o desejo de Saueressig em encontrar novos públicos e escapar do paradigma de autora de ficção juvenil. De ferro e de sal é certamente o ponto alto dessa estratégia e confima, mais uma vez, o estatus de Simone Saueressig  como um dos melhores autores de alta fantasia no Brasil.
Cesar Silva

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Novela

Novela
é uma série brasileira de fantasia e humor que estreou em 2023 na plataforma de streaming Amazon Prime. Foi criada e escrita por Valentina Castello Branco e Gabriel Esteves, com direção de Renata Pinheiro e Gigi Soares, e produção do Porta dos Fundos. 
Esta primeira temporada tem oito episódios e o elenco conta com nomes conhecidos da televisão, como Monica Iozzi, Miguel Falabela, Tarcísio Filho, Caio Menk, Herson Capri, Suzy Rego, Marcello Antony, Maria Bopp, entre outros, muitos deles interpretando dois ou até três papéis.
Claramente inspirada em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, Novela conta a história da roteirista iniciante Isabel (Monica Iozzi) que, no evento de estréia de sua primeira novela, Rebote do destino, descobre que seus créditos foram usurpados por seu mentor, o novelista decadente Lauro Valente (Miguel Falabela). Aturdida, Isabel vaga pelo estúdio e é sugada por um monitor, indo parar justamente no primeiro capítulo que acabava de ir ao ar. E o que é visto pelo público na televisão não é o que foi gravado pelo elenco, mas sim uma história metalinguística totalmente divergente, na qual a presença de Isabel subverte o enredo e transforma a vida de Lauro e do elenco da novela numa montanha russa imprevisível. 
Ao longo dos primeiros capítulos, Isabel conclui que o único modo de escapar da loucura na qual mergulhou é forçando o desfecho recorrente das histórias de Lauro Valente, fazendo a mocinha (ela mesma) e o galã se casarem pois, com o fim da história, acredita que voltará automaticamente para a realidade. 
Mas as interferências de Isabel fizeram a novela bater recordes de audiência e, pressionado pela direção da emissora e pelos anunciantes, Lauro terá que sustentar a farsa e esticar a novela, sem ter a menor ideia do que pode acontecer quando o próximo capítulo for ao ar. 
A série trabalha com muitas situações de bastidores da teledramaturgia, além de homenagear várias novelas e brincar com os cacoetes desse tipo de produção, com figurinos bizarros, situações esterotipadas e muito nonsense, como quando entram os intervalos comerciais e tudo se congela, exceto a própria Isabel. 
Novela vem somar um conjunto de boas ideias às séries brasileiras, um novo tipo de produto televisivo que tem investido em histórias fantásticas como Cidades invisíveis, Espectros, 3% e Vale dos esquecidos, e pode contribuir decisivamente para renovar o modelo tradicional das novelas da televisão brasileira.
Cesar Silva

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Prêmio Odisseia 2023

Criado em 2019, o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica homenageia os favoritos de um júri composto por escritores convidados, dentre uma relação de obras publicadas no ano anterior especificamente inscritas para o certame. 
A edição 2023 retomou a prática de anunciar seus vencedores em evento presencial, que aconteceu no último dia 8, durante o congresso Odisseia de Literatura Fantástica, em Porto Alegre.  
Os vencedores são: 
Projeto gráfico: A vida e as mortes de Severino Olho de DendêIan Fraser, Intrínseca;
Quadrinho fantástico: Os sussurros do caos rastejante, Fábio Yabu & Fred Rubim, Jambô;
Narrativa longa juvenil: A morte e a vida dos meninos lobosLucas de Melo Bonez, Boaventura;
Narrativa curta horror: "A devoradora", Juliana Cunha, em Notívagas, O Grifo;
Narrativa curta fantasia: "Serra minguante", João Mendes, em Mafagafo 5-1, Mafagafo;
Narrativa curta  ficção científica: "O cuco de Sumaúma", Simone Saueressig, em Multiverso Pulp 5, Avec;
Narrativa longa  horror: IrebuLarissa Brasil, independente;
Narrativa longa  fantasia: Ebálidas de Pseudo-Outis, Bruno Anselmi Matangrano, Arte e Letra;
Narrativa longa ficção científica: Mil placebosMatheus Borges, Uboro Lopes;
Artigo fantástico: "Pode a inteligência ser artificial? O que nos ensinam os robôs de Isaac Asimov", Rafael Eisinger Guimarães, em Leitura, curiosidade e imaginação: Refletindo sobre inteligência artificial, Pontes.
O informe oficial com todos os finalistas e os vencedores destacados, pode ser encontrado no site do evento, aqui.
Também foram distribuídos aos presentes exemplares o primeiro número da Revista Odisseia de Literatura Fantástica, publicação exclusiva editada por Duda Falcão. Em vinte páginas, traz históricos do evento e do Prêmio, a programação completa da edição 2023 e contos inéditos de Ana Lúcia Merege, Simone Saueressig e do editor. A versão digital da revista pode ser baixada aqui
Parabéns aos vencedores!

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Raízes do Amanhã

 



Raízes do Amanhã: 8 Contos Afrofuturistas, Waldson Souza, org. Capa: Nazura Santos. 219 páginas. São Paulo/Belo Horizonte: Gutenberg/Plutão, 2021.

 

O afrofuturismo é um movimento literário de caráter especulativo que busca a valorização e identidade do mundo a partir da realidade historicamente discriminada da raça negra. Foi assim nomeado em meados dos anos 1990 nos EUA, e tem entre seus principais autores os norte-americanos Samuel R. Delany e Octavia Butler (1947-2006). Talvez de forma surpreendente já tem uma quantidade de obras e autores brasileiros com alguma relevância. Por exemplo, os romances O Caçador Cibernético da Rua Treze (2017), de Fábio Kabral, O Céu Entre Mundos, de Sandra Menezes (2021) – vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2022 – e O Último Ancestral (2021), de Alê Santos, finalista do Jabuti. Isso além de eventos e publicações acadêmicas, o que evidencia ainda mais sua vitalidade desde a última década.

Mesmo assim, o nosso afrofuturismo continua nas bordas da visibilidade cultural mais ampla, se somando à luta em prol de uma maior pluralidade e reconhecimento, a exemplo da própria que a inspirou, a ficção científica.

Nesse sentido, é muito útil a publicação de uma coletânea como Raízes do Amanhã, por apresentar vários temas da causa negra a partir da perspectiva da FC. Além disso, um livro como esse enriquece também a própria FCB, por abrir o leque para novas visões sobre a nossa realidade. Isso porque, quase todas as histórias trabalham com a perspectiva de emancipação dos negros dentro de um contexto brasileiro. Justamente, um país com um passado e problemática racial tão dramática e ainda pendente em nossa contemporaneidade.

O conto que abre a coletânea é “Não tem Wi-fi no Espaço”, de G.G. Diniz. Num futuro indefinido, o Nordeste se separou do Brasil, e constituiu a República Federativa do Nordeste. Uma comunidade de negros vivendo em algo próximo do que foi um quilombo coloca em órbita um satélite, primeiro passo para a mudança para Marte. Um novo mundo, quiçá menos racista e desigual que o da Terra. Mas eles enfrentam problemas inevitáveis de perseguição, principalmente por uma empresa transnacional que quer ter exclusividade de oferta das altas tecnologias astronáuticas. Talvez o ponto fraco seja apresentar com realismo como uma comunidade miserável como essa pudesse manipular tecnologias tão avançadas, mas não desabona a leitura criticamente relevante e bem escrita.

“O Show tem que Continuar”, de Lavínia Rocha mostra, de certa forma, um caminho inverso. Isso porque, numa nave que, aparentemente orbita a Terra de forma incógnita, humanos, androides e IAs compartilham um projeto de interferir nas estruturas e práticas racistas, num local em especial, o Brasil, para poder mudar esta realidade em algo mais justo para todos. Contudo, a narrativa segue um plano algo superficial, e com uma conclusão incompleta e ingênua.

A terceira narrativa é uma das melhores do livro. “Sexta Dimensão”, de Stefano Volp, faz uma reflexão interessante sobre as possibilidades e o alcance do amor, em três camadas diferentes que se entrecruzam: um ser artificial – menos que humano –, o protagonismo negro e a homossexualidade. Muito ousado, embora o principal seja a colocação no primeiro plano o quanto de humano realmente existe em seres que, formal e tecnicamente, não o são. Principalmente quando expressam sentimentos tão pungentes, como o amor.

A noveleta seguinte me é particularmente cara: “Jogo Fora de Casa”, de Sérgio Motta. Isso porque, organizei em 1998 a antologia Outras Copas, Outros Mundos, a primeira a reunir histórias de FC com futebol. No início do século XXIII, o esporte mais popular é algo parecido, o futsol, mais parecido com o futebol de rua, que eu mesmo joguei quando era criança. Sem goleiro, delimitado por espaços fechados – muros, paredes ou casas –, como numa quadra. A história mostra a visita de Casa, um time pequeno, da periferia de São Paulo, e que se tornou o time sensação da temporada, ao ser campeão. Com isso, foi desafiado pelo vencedor do Sistema Solar. O texto alterna os acontecimentos da peleja, com a trajetória de dificuldades de superação dos jogadores do time terrestre. Mas, embora talvez não tenha sido a intenção do autor, a especulação sobre o que o futebol se tornou é mais interessante do que os comentários sociais que, embora relevantes, soam descolados e inverossímeis ao retratar uma realidade de hoje como quase que inalterada daqui há dois séculos.

“Recomeço”, de Kelly Nascimento foi, provavelmente, escrita durante a pandemia de Covid-19. Conta o drama do casal Helena e Alexandre, dois médicos que, além de terem de cuidar e lidar com as várias mortes de pacientes de uma pandemia que assola o planeta, enfrentam as perdas um do outro. O texto é forte, segura o interesse, mas se torna confuso e indefinido em seu desfecho.

O nível volta a subir com a noveleta “Segunda Mão”, de Petê Rissatti. Aqui à perspectiva negra se soma à da homossexualidade, numa história de contexto distópico. No relacionamento amoroso entre um jovem branco e um negro maduro, a questão que ainda incomoda é o racismo, preconceito mais difícil de ser superado do que o da homoafetividade. O negro faz parte de um grupo secreto de contestação da ordem autoritária – que tem um governo mundial, está presente na vida da pessoas o tempo todo e as faz tomar um remédio para “se sentirem felizes” –, e não é difícil imaginar que o desfecho da narrativa não será róseo: tanto no plano pessoal como no político.

A próxima história é “Tudo o que Transpor o Ar”, das irmãs Pétala e Isa Souza. É uma narrativa com tons épicos, com uma moldura espacial interessante, sobre a viagem de retorno do povo Irawó ao seu planeta natal, após uma diáspora de séculos. A premissa é boa, mas se perde no excesso descritivo e na ausência de dramaticidade.

O conto que fecha a coletânea é o melhor: “Com o Tempo em Volta do Pescoço”, de Waldson Souza, também organizador da obra. Numa história comum de viagem no tempo, o interessante é o contexto político e suas possíveis consequências. Isso porque Jamila, sobrinha de uma construtora de uma máquina do tempo, volta a 2098 para evitar a morte de Jorge Assis, um candidato negro à presidência do Brasil. Esse fato teria provocado, mesmo que no já distante 2300, o estabelecimento de uma ordem autoritária e miserável no Brasil, com a particularidade de as pessoas terem de comprar seu tempo para saírem de casa e usarem um colar de identificação no pescoço. Bem sinistro. Mas, ao voltar ao fim do século XXI, e permitir que o candidato negro vença a eleição presidencial, um novo mundo se desdobrou: democrático e próspero para todos, inclusive para a família negra de Jamila. Mas, por melhor que tenha sido a mudança, ela descobrirá que não tem lugar nesse mundo. Impactante.

Em seu conjunto Raízes do Amanhã é uma coletânea que serve como uma boa introdução ao nosso afrofuturismo, bem como o seu diálogo com a própria FCB. Que, por sinal, tem se espraiado em várias searas na terceira década do século XXI: comunidade queer, recortes regionalistas e este da raça negra, estruturalmente a mais carente e injustiçada da história do Brasil. Mas, se por um lado, estas correntes identitárias, por assim dizer, enriquecem a nossa FC e democratizam os pontos de vistas particulares, acentuam uma certa falta de projeto comum, o que tem tornado a FCB excessivamente fragmentada. É um novo desafio a ser enfrentado.

Marcello Simão Branco


sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A noite dos insensatos, Simone Saueressig

A noite dos insensatos e outras histórias bizarras
, Simone Saueressig. Novo Hamburgo: edição de autor, 2023. 

Houve um tempo em que os textos escritos pelos autores de fandom brasileiro de fc&f eram efetivamente lidos e causavam debates furiosos nas redes sociais analógicas da época, que aconteciam nas páginas dos fanzines que também veiculavam os textos em si. 
As redes digitais pareciam, a princípio, acenar com um acirramento desse tipo de debate, mas foi uma expectativa frustrada rapidamente na medida em que os autores abandonaram as discussões para evitar os melindres em seus seguidores. O encarregado de uma grande editora, hoje já fora do mercado, chegou a anunciar uma lista negra para os autores que fizessem comentários polêmicos nas redes. 
Portanto, é de se comemorar a iniciativa da fantasista gaúcha Simone Saueressig, que publicou com seus próprios recursos a coletânea A noite dos insensatos e outras histórias bizarras, com seis contos imprevisíveis e absolutamente fora do espaço de conforto da autora. 
Conhecida por sua ficção de viéz folclórico voltada principalmente para o público juvenil, Simone investe aqui em textos de forma e natureza totalmente diversos de suas características, com um forte conteúdo humorístico, quase sempre negro, e ataques declarados a comportamentos da sociedade brasileira recente. 
A coletânea tem apenas trinta e sete páginas, mas seu conteúdo é explosivo e de alta octanagem, que levou legiões de usuários das redes sociais a mover uma verdadeira campanha contra o volume, algo que não se via no fandom desde que as redes decidiram limar Monteiro Lobato da literatura brasileira. 
O conto título abre a antologia e é o mais longo da seleta. Trata-se de uma farsa engraçadíssima, um tipo de charge literária, sobre dois alienígenas que atuam em segredo na proteção do planeta Terra e decidem fazer uma visita não autorizada à uma região ao sul do Brasil em meio a campanha eleitoral de 2022. Sendo charge, o texto exige uma certa contextualização para fazer sentido, mas acredito que os brasileiros não terão problema com relação a isso. 
"Buraco de minhoca" narra o drama de uma dona de casa que tem em sua máquina de lavar roupas a extremidade de chegada de um buraco de minhoca de onde surgem todos os pés de meias perdidos no mundo.
"Pleonasmos" é uma narrativa metalinguística que surpreende porque a autora desrespeita sua própria filosofia de escrever corretamente e comete repetidos e deliberados pleonasmos, tudo a serviço do desfecho da história. 
"Infestação" é a história mais poética do conjunto, sobre uma jovem que passa a ser incomodada pela presença cada vez mais intensa de variados tipos de insetos em sua casa, prenúncio de importantes transformações na sua vida.
Em "A reforma" temos uma narrativa de horror, uma especialidade da autora. Durante uma reforma em sua residência, o pedreiro abre um buraco na parede que se transforma em uma gigantesca bocarra faminta. 
"Tsundoku" fecha o volume com a história de uma amante dos livros que compra muito mais do que consegue ler. A certa altura, os volumes começam a brotar expontaneamente até ocuparem toda a casa, que se torna então num labirinto de livros empilhados onde as pessoas desaparecem para sempre. 
Como se vê, a autora flerta com o modelo de fantasia de Murilo Rubião e Jorge Luis Borges, com textos curtos e poderosos que não permitem que o leitor fique impassível. Com exceção do conto título, todos os demais têm protagonistas femininas em meio ao cotidiano urbano, o que certamente deve significar alguma coisa importante.
O volume foi publicado apenas em formato virtual para leitores Kindle e pode ser adquirido aqui. Contudo, quem não tiver o dispositivo poderá ler o livro no aplicativo online da própria plataforma. 
Recomendo fortemente a leitura, por ser um ponto de virada na obra da autora, pelas discussões que suscita e porque é uma leitura bastante rápida. Dessa forma, mais gente pode entrar na discussão. Afinal, "A noite dos insensatos" é ou não proselitista? Não vou responder, mas que é divertidíssimo, lá isso é.
Cesar Silva

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O Mundo de Spock

 



O Mundo de Spock (Spock´s World), Diane Duane. Tradução: Ludmila de Souza. Capa: Vagner Vargas. 192 páginas. São Paulo: Aleph, sem data [anos 1990]. Lançamento original em 1988.

 

Apesar de ser um trekker há vários anos, com uma longa militância no fandom da série de TV, nunca fui entusiasta das novelizações. Em geral, e não só para Jornada nas Estrelas (Star Trek), acredito que elas pouco ou nada acrescentam ao conteúdo original do universo ficcional criado em outro formato, no caso da televisão e o cinema. Reconheço que é uma posição um pouco radical e talvez não se aplique tanto a esta série, com um padrão médio de qualidade elevado em qualquer meio de expressão artística.

Nesse sentido, me chamou a atenção a afirmação do renomado crítico e escritor inglês de FC Adam Roberts, em seu ótimo livro A Verdadeira História da Ficção Científica (2018), de que O Mundo de Spock foi um dos melhores livros do gênero lançados em 1988.

Por si só esta afirmação seria impactante. Afinal, centenas de romances do gênero são lançados todos os anos nos EUA. E este, além do mais, nem é uma história original, mas derivada. Pois numa pesquisa rápida dos finalistas dos prêmios Hugo e Nebula daquele ano, vejo em que nível Roberts situou a história do planeta Vulcano: Do primeiro prêmio: Cyteen, C.J. Cherryh; Red Prophet, Orson Scott Card; Piratas de Dados (Islands in the Net), Bruce Sterling e Mona Lisa Overdrive, William Gibson. Do Nebula: Great Sky River, Gregory Benford; Falling Free; Louis MacMaster Bujould; Red Prophet, Orson Scott Card; Desert Cities of the Heart, Lewis Shiner; Drowning Towers, George Turner; O Livro do Novo Sol (The Urth of the New Sun), Gene Wolfe e, de novo, o romance de Gibson. Se este romance baseado no seriado se ombreia com estas obras, de fato merece ser lido.

O Mundo de Spock é ambientado no planeta Vulcano – que orbita a estrela 40 Eridani, situada a 16,5 anos-luz da Terra –, às voltas com um plebiscito polêmico que defende a saída do planeta da Federação Unida dos Planetas (FUP), após 180 anos. Ora, os vulcanos foram a segunda civilização extraterrestre contactada pelos humanos – depois dos andorianos, em meados do século XXI. Kirk, Spock e McCoy têm suas férias interrompidas para irem a Vulcano, onde são esperados para participarem dos debates prévios à votação. Também é chamado Sarek, o embaixador de Vulcano na Terra, e pai de Spock.

Mas qual a causa para uma decisão tão radical? Apesar de serem membros fundadores da FUP, historicamente, os vulcanos, de forma geral, nunca se sentiram plenamente integrados à entidade, em termos políticos e administrativos, com uma postura crítica sobre o viés imperialista dos humanos. Afora isso, sempre houve grupos minoritários em Vulcano descontentes com a presença numa entidade multiplanetária, por se considerarem superiores aos demais membros, devido ao seu passado pacifista e voltado à lógica. Assim, a convivência por um longo tempo com civilizações emotivas e agressivas, não seria racional e prejudicaria o desenvolvimento dos próprios vulcanos. Contudo, estes dois argumentos são bem desmontados, principalmente nos discursos de Kirk, McCoy e Spock. Primeiro porque os vulcanos poderiam se esforçar em defender seus pontos de vista no interior da FUP e usar de sua influência como um dos povos mais bem-sucedidos da galáxia. E em segundo, que estes pequenos grupos não eram novidade e nunca haviam se constituído como politicamente relevantes no interior da sociedade vulcana. O que havia mudado então?

A esta trama política intricada, a verdadeira riqueza da obra está nos capítulos que entremeiam esta controvérsia, com a história do planeta e do povo vulcano, desde os primórdios, em vários momentos de sua longa trajetória. De forma muito habilidosa, Diane Duane aprofunda o que é citado em muitos episódios das várias versões da série na TV, de que em sua origem os vulcanos eram muito agressivos e violentos. Viveram várias guerras, até mais terríveis que a dos próprios humanos. Inclusive, como consequência de uma delas, parte deles deixou o planeta e colonizou outro formando o Império Romulano. Isso é conhecido a partir do episódio da série clássica “Medida do Terror” (Balance of Terror”), e é só lembrado pela autora. Uma pena, pois poderia haver algum desdobramento interessante desse fato.

Em todo caso, neste contexto de guerras surge, eventualmente, um sábio que introduziu uma nova filosofia, baseado no controle das emoções e no agir de forma lógica em todas as situações, para vencer os problemas de forma racional e evitar, sobretudo, o medo do outro. Pois segundo ele, Surak, a fonte da instabilidade emocional viria na desconfiança e insegurança com relação ao semelhante. Era preciso vencer o medo, abrindo-se para o outro. Se despir de ilusões e fantasias, enxergar a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse. E a lógica seria a base de ação para tal postura de vida.

Talvez um aspecto menor da obra esteja, justamente, na justificativa concreta para a demanda pela secessão. Pois o doutor McCoy descobre, com a ajuda de Moira – uma inteligência artificial situada na Enterprise – que o movimento havia sido deflagrado por T´Pring, a noiva que havia sido prometida a Spock, mas que o havia recusado em nome de um amante, Stonn. Como visto no episódio da série clássica “Tempo de Loucura” (“Amok Time”), ela coloca Spock para duelar com Kirk, no intuito de se livrar de Spock. Ela consegue seu objetivo, mas fica frustrada quando descobre que foi enganada, já que, mesmo derrotado, Kirk só desmaiara e não morrera, como parecia, já que McCoy havia injetado no capitão o composto Triox. Então, T´Pring, agora viúva de Stonn e rica, resolve financiar os grupos xenófobos para se vingar de Spock e, por extensão, dos humanos em geral. Ora, criar um movimento político tão poderoso a partir de uma intenção de vingança? Me pareceu exagerado.

Interessante também em O Mundo de Spock é que é mostrado que a lógica não é integralmente seguida pelos vulcanos em geral, o que eles chamam de o´thia. Na prática, muitos deles continuam a ter um comportamento próximo do humano, mas, ao que parece, dissimulam melhor, além de encampados com uma verdadeira mística em torno do que são esse povo estranho e fascinante. A estrutura social de Vulcano se constitui de Casas que unem famílias, em termos de história, descendência e alianças políticas e econômicas. Algumas das mais poderosas lideradas por matriarcas, como a da lendária T´Pal, descendente distante de Surak, e mentora de Sarek, o que, por extensão, nos leva até Spock. A cultura dos vulcanos, tal como desenvolvida, pode ser vista, de forma aproximada, grosso modo, com aspectos da filosofia hinduísta e da sociabilidade japonesa, também marcada, historicamente, por um certo desprendimento estoicista.

O Mundo de Spock foi o segundo escrito por Diane Duane, escritora norte-americana, com mais prestígio em séries originais de fantasia. Apesar disso, ela escreveu nove romances baseados na criação de Gene Roddenberry (1921-1991), e além deste também saiu no Brasil, Meu Inimigo, Meu Aliado (My Enemy, My Ally; 1984). Ambos, pela editora Aleph que, nos anos 1990, publicou, salvo engano, 24 novelizações, além de bons livros de referência sobre a série.

Não li os demais, mas arrisco a dizer que O Mundo de Spock deve ser um dos melhores – se não o melhor –, e Adam Roberts não deve estar errado em sua impactante afirmação. Afinal, é uma história que mostra com detalhes nunca mostrados, nem de perto nas várias séries televisivas, a complexidade social, cultural e filosófica de uma das civilizações alienígenas mais conhecidas e interessantes da FC. Para o trekker é obrigatório, mas deve interessar também quem curte cultura popular e ao fã e leitor de FC em geral. Pois, ao menos nesse caso, é uma novelização que acrescenta um conteúdo de valor à compreensão do universo ficcional.

Marcello Simão Branco

 

sábado, 19 de agosto de 2023

Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias

Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias
, Marco Rigobelli, org. 176 páginas. São Paulo: Draco, 2014. 

Ficções fantásticas com temas esportivos não são comuns sequer nos mercados mais fortes do gênero, nem mesmo em outras artes além da literatura. Quadrinhos e cinema têm poucos exemplos, embora haja mais oferta de esportes fantásticos nos jogos eletrônicos, por motivos evidentes. Mas é curioso que exista tão pouco na literatura de ficção fantástica, quando é patente que é nela que o pioneirismo é geralmente praticado em todos os temas. 
No Brasil, até o final do século passado, só existia uma única antologia de contos fantásticos sobre esportes, o livro Outras copas, outros mundos, organizado por Marcello Simão Branco e publicado pela editora-fã Ano-Luz em 1998. Mais que uma seleta de contos esportivos, esse livro propunha que todos os contos tratassem especificamente de futebol, o esporte mais apreciado pelos brasileiros que, curiosamente, não tinha nenhum texto no gênero, nem aqui nem em qualquer outra parte do mundo. A experiência foi muito bem-sucedida, e dela emergiu ainda o importante projeto Intempol de Octávio Aragão, derivado de um dos textos publicados ali. Mas foi um péssimo agouro para o desempenho do esporte: naquele ano, o Brasil perdeu o Copa do Mundo na França num jogo algo vexatório contra a poderosa seleção francesa comandada por Zinedine Zidane, com os craques Ronaldo Fenômeno em pânico no campo, e Edmundo no banco. 
Talvez motivada pela nova edição brasileira da Copa do Mundo, a editora-fã paulista Draco decidiu retomar a ideia e apresentou em 2014 uma remontagem da antologia de 1998 sob o título Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, organizada por Marco Rigobelli, republicando alguns dos textos vistos naquela, somados a inéditos, num total de dez contos, incluindo um do próprio organizador. 
Dos autores republicados, Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi comparecem respectivamente com "Pátria de chuteiras" e "Sob o signo de Xoth", justamente os textos presentes na antologia de 1998. O primeiro narra a final de uma copa do mundo na realidade alternativa favorita do autor, na qual a república de Palmares, treinada por um ex-craque da seleção brasileira, disputa com o Brasil não apenas aquele campeonato, mas a hegemonia do esporte. Já o excelente texto de Orsi envereda pelo horror, política e corrupção na fictícia cidade de Açaraí. Fábio Fernandes, que também participou da antologia de 1998, aparece com o inédito "2010: O ano em que faremos contrato", um texto curto na forma de uma entrevista com um boleiro que participou de uma partida entre atletas terrestres e alienígenas na qual o que realmente estava em jogo era o intercâmbio de tecnologia. Esse conto acabou sendo profético, pois a seleção terrestre levou o sonoro chocolate de treze a zero. Voltaremos a isso mais adiante. 
Os demais autores comparecem com contos inéditos. Em "Boost", de Vinicius Lisboa, o futebol do futuro é praticado por atletas com reforço químico e o esporte se torna uma arena de violência explícita e morte, enquanto que em "O último grande craque", de Marcel Breton, são as próteses que desequilibram o espetáculo. Ambos os textos replicam o formato de entrevista visto no conto de Fernandes, o que torna a leitura um tanto enfadonha pela redundância da forma. 
"Jogo puro", de Diego Matioli, também começa com uma entrevista, mas ela só dura alguns parágrafos, para depois adotar uma narrativa mais tradicional, em terceira pessoa. O conto tem laivos apocalípticos na medida que acontece após o arrebatamento bíblico, além da presença de demônios vivendo em meio à humanidade. Também aparecem aqui alguns tipos de "melhorias" nos atletas, desta vez mais para superpoderes mutantes, mas o autor tem o mérito de escapar muito bem das armadilhas narrativas criadas pelos contos anteriores. 
"O último gol de Tião Canhoto", de Fabio Baptista, narra a história de um insuspeito craque do futebol varzeano que só atingia o estado de excelência quando sua amada Ritinha estava na torcida, uma mulher descrita como a mais feia do mundo. O conto não é ruim, mas a crueldade com que o autor trata da aparência da mulher cria tal constrangimento no leitor que eu não me surpreenderia se as leitoras protestassem fortemente contra ele. Fica aqui o meu protesto pessoal.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra. 
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista. 
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro. 
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional. 
— Cesar Silva

terça-feira, 15 de agosto de 2023

O dilema de Utterson

Quando terminou de ler os dois relatos — o do amigo Dr. Lanyon e o do Dr. Henry Jekyll — o advogado Utterson estava suando frio, tomado de um pavor que nunca antes sentira em sua vida.

Jamais poderia ter imaginado a verdade: que o misterioso Edward Hyde era o mesmíssimo Dr. Jekyll, num desdobramento de personalidades que incluía a mudança da aparência corporal. Portanto, se Hyde morreu, Utterson também estava morto e o seu corpo jamais seria encontrado, pois o que restava era o corpo de Hyde.

Mas como podia ser isso? E os átomos, ou as células, a mais ou a menos?

As dificuldades científicas para acreditar naquilo tudo esbarravam, é claro, na lógica dos dois relatos, que desvendavam o mistério da relação Jekyll-Hyde. Porém, tudo isso ia para segundo plano diante do fator que se lhe afigurava mais grave daquele imbróglio. Ao se retirar, pelas dez da noite, da residência do Dr. Jekyll, o advogado prometera ao mordomo Poole que retornaria pela meia-noite, para então chamarem a polícia. Afinal, o dono da casa achava-se desaparecido e havia o cadáver de um suicida no laboratório.

O problema era justamente esse.

Em primeiro lugar a polícia é racionalista demais para acreditar que um ser humano se transforme em outra pessoa. Isso é coisa de contos de fadas, não da vida real. Por consequência os dois relatos não seriam aceitos mesmo se mostrados e examinados. Nenhum tribunal tampouco iria aceitar que Jekyll se transformasse em Hyde e vice-versa. Acreditar em coisas fantásticas é tabu.

Nem a imprensa daria crédito.

Assim, Utterson só conseguia enxergar um resultado para aquela tragédia: ele e Poole seriam responsabilizados criminalmente pelo desaparecimento e possível morte do Dr. Henry Jekyll. E poderiam ambos acabar no patíbulo.

Não adiantava fugir. O pesadelo estava apenas começando e só lhe restava erguer-se e retornar à residência de seu falecido amigo.

Cobrindo o rosto com as mãos, em desespero de causa, Utterson murmurou:

— O que eu faço agora, meu Deus?

— Miguel Carqueija

Rio de Janeiro, 11 a 19 de agosto de 2022.

 

NOTA: Reli recentemente O médico e o monstro, ou, na tradução do original, O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. E uma coisa que me intriga é a maneira inconclusa com que o romance termina, apenas com as transcrições dos dois documentos — do Dr. Lanyon e do Dr. Jekyll — esclarecendo o mistério. Fica em suspenso, portanto, a atitude posterior do Dr. Utterson, pois caberia a ele informar à polícia do suicídio do Sr. Hyde e desaparecimento do Dr. Jekyll. Mas aqui ocorre um terrível impasse, omitido por Stevenson e que eu me limito a mostrar sem buscar uma solução. Como explicar à polícia algo que a polícia não iria aceitar, mesmo com provas?

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Conto de Fadas

 



Conto de Fadas (Fairy Tale), Stephen King. Tradução: Regiane Winarski. Capa: Will Staehle. Ilustrações internas: Gabriel Rodriguez (capítulos ímpares e epílogo) e Nicolas Delort (capítulos pares). 623 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2022.

 

Talvez este seja o primeiro livro de Stephen King que eu comprei e li quase ao mesmo tempo do seu lançamento nos EUA. Isso porque a Suma, selo da Editora Schwarcz, foi mais rápida do que o habitual e o lançou no Brasil praticamente junto com o lançamento norte-americano. Outra curiosidade, que também talvez não interesse a você, leitor dessa resenha, é que esse foi o último livro que eu comprei na finada Livraria Cultura, em sua sede da capital paulista, duas semanas antes de sua falência. E por acaso, pois o livro, de forma estranha, estava esquecido num canto numa seção de livros usados da livraria, e com a metade do seu verdadeiro preço de capa.

Mas eu compraria o livro pelo valor que fosse. Afinal, é de Stephen King, um dos meus autores favoritos e do qual acompanho praticamente toda a sua carreira, desde meados dos anos 1970. E não preciso dizer que, claro, gostei demais da leitura, como pretendo comentar a seguir.

Conto de Fadas não é uma história de horror tradicional, de cunho mais sobrenatural, como na primeira fase de sua carreira, ou no estilo dark fantasy, que o tem caracterizado desde, pelos menos, o fim dos anos 1990. Contudo, o sobrenatural é explorado da perspectiva da magia. Sim, é um romance mais próximo de ser identificado com o gênero fantasia, embora de uma forma bem peculiar em se tratando de King.

Após a morte súbita e violenta da mãe, a vida do adolescente Charles Reade entra em crise. Não apenas pelo fato óbvio da perda, mas porque o pai se torna um alcoólatra. Charles meio que se perde, cometendo várias pequenas maldades, ao lado de um amigo de infância, de caráter bem questionável. Como, por exemplo, roubar as muletas de um idoso, deixando-o sem ter como andar. Em desespero pelo pai estar desempregado e cheio de dívidas, Charles faz uma promessa pessoal “ao seu Deus”, de que se ele se redimisse, seu pai reencontraria um rumo na vida.

Então, de forma fortuita, certo dia Charles ouve os latidos de uma velha cadela, ao passar pela casa mais estranha da pequena cidade de Sycamore, em Illinois, e ao pular o portão, vê que o dono, o solitário Sr. Bowditch caíra da escada e quebrara a perna. Charles o socorre e, conforme os dias passam, não só visita o ancião no hospital, como se envolve cada vez mais com ele, passando a ser o seu cuidador, depois do seu retorno à casa. Ao mesmo tempo seu pai faz terapia nos Alcóolicos Anônimos – graças à ajuda de um amigo –, arruma um emprego e, um pouco depois, abre seu próprio negócio. Ao que parece, o garoto Charles havia realizado sua promessa ao cuidar de Bowditch e se afeiçoar intensamente à Radar, a pastora alemã dele. Mas a verdadeira virada em sua vida ocorre quando ele descobre a fonte da boa vida de Bowditch: um cofre lotado com pequenas bolas de ouro. De onde teriam vindo?

Bowditch hesita em contar, e só o faz por meio de uma gravação, pouco antes de sofrer um ataque cardíaco e morrer. Mas Charles já desconfiava de onde vinham, pois nos fundos da casa havia um barracão com barulhos estranhos. Ele resolve investigar e descobre a entrada de um outro mundo. Do barracão se desce uma longa escada em espiral até chegar a um lugar com estrelas no céu e duas luas. Fascinado e assustado, Charles vai lá uma vez e resolve ocultar o segredo, mas por causa da Radar decide voltar para tentar salvá-la de suas muitas doenças que poderiam levá-la à morte. Aqui é interessante notar que King usa do recurso tradicional da fantasia de portas ou passagens que se escondem em ambientes familiares. O próprio autor já havia usado esse recurso antes – numa história de ficção científica – no seu monumental Novembro de 1963, quando o protagonista descobre uma porta numa lanchonete que o leva de volta aos anos 1960, em meio ao contexto que levou ao assassinato do presidente John Kennedy.

Charles e Radar, então, adentram no mundo chamado de Empis. Um reino movido por magia e não tecnologia e habitado por pessoas e animais fantásticos. Mas Empis é um mundo danado. A vegetação é rala e tomada por pragas, os animais são deficientes ou de tamanho exagerado, e a maioria das pessoas têm a pele cinzenta e deformações horríveis pelo corpo. Mas Charles conhece algumas pessoas adoráveis, como Dora, a consertadora de sapatos, e membros de uma antiga família real que foi destronada. Ele quer apenas cumprir sua missão e encontrar o relógio do sol, que vai permitir que Radar não só seja curada, mas rejuvenescida, seguindo a orientação do velho Bowditch que, ao passar por ele, viveu mais de um século, além de ter conseguido sua fortuna em ouro. Mas no caminho, a jornada de Charles vai se tornando muito perigosa, pois ele descobre que as noites são tomadas por temíveis lobos e os chamados soldados noturnos, zumbis que emitem raios de suas armas, entre outras monstruosidades deste mundo amaldiçoado.

Charles cumpre sua missão original, mas ao ser aprisionado na cidade real de Lilimar irá viver sua verdadeira aventura por sua vida e a própria segurança de nosso mundo, já que ele descobre, em meio a torturas e prisão num calabouço há centenas de metros abaixo da superfície, que o que causou o Mal a Empis foi a traição de Elder, o filho mais novo da família real de Gallien, após se aliar com o demônio que habita o Poço Profundo, que lhe concedeu poderes que o tornaram o novo rei, nem que com isso, matasse a maior parte da nobreza e levasse mortes e destruição a um mundo antes belo e próspero.

Como o leitor já deve ter notado, estamos diante de um enredo de conto de fadas, subgênero da fantasia, que trabalha certas características, como a jornada de um herói improvável, um reino em desgraça, seres míticos, poderes sobrenaturais e muita magia. King trabalha todos esses elementos com muita destreza, utilizando várias referências sobre histórias parecidas, e apresentando ao longo da narrativa várias associações com clássicos de fundo infantil, como João e o Pé de Feijão (1807), de Benjamin Tabart, e adultos, como Algo Sinistro Vem Por Aí (1962), de Ray Bradbury, além da vinculação com os Antigos de H.P. Lovecraft, na figura de Gogmagog, o monstro supremo que estaria por trás do mal liberado sobre Empis.

Nesse sentido, e pela própria autoconsciência do protagonista, King faz um experimento literário que poderia chamar de metaficcional. Ou seja, uma ficção própria, mas que dialoga e se referencia com outras, mas sem deixar de ter uma voz própria, dada a sua intensidade e habilidade narrativa. E este diálogo também ocorre por meio da problematização do próprio conteúdo do subgênero, ao recolocá-lo numa vertente mais horrorífica, como originalmente as histórias deste filão se desenvolviam, até serem modificadas para serem lidas por crianças num ambiente familiar, um movimento de revisionismo literário que tomou a cena no final do século XIX.

A jornada de Charles Reade, mesmo contada de forma retrospectiva e em primeira pessoa, não faz com que deixemos de sentir aflição e temor por seu destino e de Radar. A cada página virada, ambos se veem em situações de perigo e, ao mesmo tempo, estranhos encantamentos. No fundo é uma história de expiação, mais que de redenção, num adolescente que foi obrigado a amadurecer mais rápido do que deveria, em virtude dos infortúnios súbitos de sua vida.

Conto de Fadas é uma das histórias mais à vontade de King. Mas isso não a torna menos impactante. O sentimento é talvez de emoção, mais pela aventura do que pelo terror, embora, como dito, a trama seja norteada pelo malefício causado ao mundo de Empis. Que, afinal, o que seria? Um mundo paralelo ao nosso? Um portal que leva a outro ponto do Universo? King não explora muito essas premissas, se concentrando mais na construção do mundo em si e suas próprias regras e valores.

Em suma, esta é a história de conto de fadas particular de King, e em que ele trabalha e explora vários dos conceitos do subgênero. Mas que, sobretudo, proporciona ao leitor, uma das experiências de entretenimento mais marcantes de redenção e arrebatamento. Que livro estranho e fascinante.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 18 de julho de 2023

Prêmio Le Blanc 2023

No dia 14 de julho, em evento presencial no Sesc São João de Meriti, no Rio de Janeiro, foram anunciados os vencedores da edição de 2023 do Prêmio Le Blanc, voltado a apontar os melhores do ano anterior em animação, jogos, histórias em quadrinhos e literatura fantástica. 
A apuração foi realizada em duas etapas: uma consulta popular pela internet indicou três finalistas em cada categoria, dentre os quais o ganhador foi definido por um juri de especialistas. 
Os vencedores de 2023 são:
Romance: A roda de Deus, Leonel Caldela, Jambô.
Coletânea: Assombros, Zé Wellington, Draco.
História em quadrinhos independente: Ovelha negra, Carlos Felipe Figueiras & B. Horn, Tapas.
História em quadrinhos: Sussurros do caos rastejante, Fábio Yabu & Fred Rubim, Jambô.
Série de tiras: Edifício Celeste, Thiago Krening.
Série de animação: Turma da Mônica, Cartoon Network, Mauricio de Sousa Produções & Split Studio.
Curta animado: Coelhitos e gambazitas, Thomas Larson.
Curta animado independente: Eu nunca contei a ninguém, Douglas Duan.
Longa animado: A lasanha assassina, Ale McHaddo.
Animação publicitária: Abertura de novela Cara e Coragem, Leonardo Fleury & Luciana Jordão.
Game eletrônico: Fobia – St. Dinfna hotel, Pulsatrix Studios.
RPG: O cordel do reino do sol encantado, Pedro Borges, New Order.
Criado em 2018, o Prêmio Le Blanc é organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 
O nome é uma homenagem à André LeBlanc (1921-1998), haitiano radicado no Brasil com uma extensa e importante obra no campo da ilustração editorial.
A relação com todos os finalistas de cada categoria pode ser conferida aqui.