O
Mundo de Spock (Spock´s World), Diane Duane. Tradução:
Ludmila de Souza. Capa: Vagner Vargas. 192 páginas. São Paulo: Aleph, sem data
[anos 1990]. Lançamento original em 1988.
Apesar de ser um trekker há
vários anos, com uma longa militância no fandom
da série de TV, nunca fui entusiasta das novelizações. Em geral, e não só para Jornada nas Estrelas (Star Trek), acredito que elas pouco ou
nada acrescentam ao conteúdo original do universo ficcional criado em outro
formato, no caso da televisão e o cinema. Reconheço que é uma posição um pouco radical
e talvez não se aplique tanto a esta série, com um padrão médio de qualidade
elevado em qualquer meio de expressão artística.
Nesse sentido, me chamou
a atenção a afirmação do renomado crítico e escritor inglês de FC Adam Roberts,
em seu ótimo livro A Verdadeira História
da Ficção Científica (2018), de que O
Mundo de Spock foi um dos melhores livros do gênero lançados em 1988.
Por si só esta afirmação
seria impactante. Afinal, centenas de romances do gênero são lançados todos os
anos nos EUA. E este, além do mais, nem é uma história original, mas derivada.
Pois numa pesquisa rápida dos finalistas dos prêmios Hugo e Nebula daquele ano,
vejo em que nível Roberts situou a história do planeta Vulcano: Do primeiro prêmio:
Cyteen, C.J. Cherryh; Red Prophet, Orson Scott Card; Piratas de Dados (Islands in the Net), Bruce Sterling e Mona Lisa Overdrive, William Gibson. Do Nebula: Great Sky River, Gregory Benford; Falling Free; Louis MacMaster Bujould; Red Prophet, Orson Scott Card; Desert Cities of the Heart, Lewis
Shiner; Drowning Towers, George Turner; O
Livro do Novo Sol (The Urth of the
New Sun), Gene Wolfe e, de novo, o romance de Gibson. Se este romance
baseado no seriado se ombreia com estas obras, de fato merece ser lido.
O
Mundo de Spock é ambientado no planeta Vulcano – que
orbita a estrela 40 Eridani, situada a 16,5 anos-luz da Terra –, às voltas com
um plebiscito polêmico que defende a saída do planeta da Federação Unida dos
Planetas (FUP), após 180 anos. Ora, os vulcanos foram a segunda civilização
extraterrestre contactada pelos humanos – depois dos andorianos, em meados do
século XXI. Kirk, Spock e McCoy têm suas férias interrompidas para irem a
Vulcano, onde são esperados para participarem dos debates prévios à votação.
Também é chamado Sarek, o embaixador de Vulcano na Terra, e pai de Spock.
Mas qual a causa para uma
decisão tão radical? Apesar de serem membros fundadores da FUP, historicamente,
os vulcanos, de forma geral, nunca se sentiram plenamente integrados à
entidade, em termos políticos e administrativos, com uma postura crítica sobre
o viés imperialista dos humanos. Afora isso, sempre houve grupos minoritários
em Vulcano descontentes com a presença numa entidade multiplanetária, por se
considerarem superiores aos demais membros, devido ao seu passado pacifista e
voltado à lógica. Assim, a convivência por um longo tempo com civilizações emotivas
e agressivas, não seria racional e prejudicaria o desenvolvimento dos próprios
vulcanos. Contudo, estes dois argumentos são bem desmontados, principalmente
nos discursos de Kirk, McCoy e Spock. Primeiro porque os vulcanos poderiam se
esforçar em defender seus pontos de vista no interior da FUP e usar de sua
influência como um dos povos mais bem-sucedidos da galáxia. E em segundo, que
estes pequenos grupos não eram novidade e nunca haviam se constituído como
politicamente relevantes no interior da sociedade vulcana. O que havia mudado então?
A esta trama política
intricada, a verdadeira riqueza da obra está nos capítulos que entremeiam esta
controvérsia, com a história do planeta e do povo vulcano, desde os primórdios,
em vários momentos de sua longa trajetória. De forma muito habilidosa, Diane
Duane aprofunda o que é citado em muitos episódios das várias versões da série
na TV, de que em sua origem os vulcanos eram muito agressivos e violentos.
Viveram várias guerras, até mais terríveis que a dos próprios humanos. Inclusive,
como consequência de uma delas, parte deles deixou o planeta e colonizou outro
formando o Império Romulano. Isso é conhecido a partir do episódio da série
clássica “Medida do Terror” (Balance of Terror”), e é só lembrado pela autora.
Uma pena, pois poderia haver algum desdobramento interessante desse fato.
Em todo caso, neste
contexto de guerras surge, eventualmente, um sábio que introduziu uma nova filosofia,
baseado no controle das emoções e no agir de forma lógica em todas as
situações, para vencer os problemas de forma racional e evitar, sobretudo, o
medo do outro. Pois segundo ele, Surak, a fonte da instabilidade emocional
viria na desconfiança e insegurança com relação ao semelhante. Era preciso
vencer o medo, abrindo-se para o outro. Se despir de ilusões e fantasias,
enxergar a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse. E a
lógica seria a base de ação para tal postura de vida.
Talvez um aspecto menor
da obra esteja, justamente, na justificativa concreta para a demanda pela
secessão. Pois o doutor McCoy descobre, com a ajuda de Moira – uma inteligência
artificial situada na Enterprise – que o movimento havia sido deflagrado por
T´Pring, a noiva que havia sido prometida a Spock, mas que o havia recusado em
nome de um amante, Stonn. Como visto no episódio da série clássica “Tempo de
Loucura” (“Amok Time”), ela coloca Spock para duelar com Kirk, no intuito de se
livrar de Spock. Ela consegue seu objetivo, mas fica frustrada quando descobre
que foi enganada, já que, mesmo derrotado, Kirk só desmaiara e não morrera,
como parecia, já que McCoy havia injetado no capitão o composto Triox. Então,
T´Pring, agora viúva de Stonn e rica, resolve financiar os grupos xenófobos
para se vingar de Spock e, por extensão, dos humanos em geral. Ora, criar um
movimento político tão poderoso a partir de uma intenção de vingança? Me
pareceu exagerado.
Interessante também em O Mundo de Spock é que é mostrado que a
lógica não é integralmente seguida pelos vulcanos em geral, o que eles chamam
de o´thia. Na prática, muitos deles continuam a ter um comportamento próximo do
humano, mas, ao que parece, dissimulam melhor, além de encampados com uma
verdadeira mística em torno do que são esse povo estranho e fascinante. A
estrutura social de Vulcano se constitui de Casas que unem famílias, em termos
de história, descendência e alianças políticas e econômicas. Algumas das mais
poderosas lideradas por matriarcas, como a da lendária T´Pal, descendente
distante de Surak, e mentora de Sarek, o que, por extensão, nos leva até Spock.
A cultura dos vulcanos, tal como desenvolvida, pode ser vista, de forma
aproximada, grosso modo, com aspectos da filosofia hinduísta e da sociabilidade
japonesa, também marcada, historicamente, por um certo desprendimento
estoicista.
O
Mundo de Spock foi o segundo escrito por Diane Duane,
escritora norte-americana, com mais prestígio em séries originais de fantasia.
Apesar disso, ela escreveu nove romances baseados na criação de Gene
Roddenberry (1921-1991), e além deste também saiu no Brasil, Meu Inimigo, Meu Aliado (My Enemy, My Ally; 1984). Ambos, pela
editora Aleph que, nos anos 1990, publicou, salvo engano, 24 novelizações, além
de bons livros de referência sobre a série.
Não li os demais, mas
arrisco a dizer que O Mundo de Spock
deve ser um dos melhores – se não o melhor –, e Adam Roberts não deve estar
errado em sua impactante afirmação. Afinal, é uma história que mostra com
detalhes nunca mostrados, nem de perto nas várias séries televisivas, a
complexidade social, cultural e filosófica de uma das civilizações alienígenas
mais conhecidas e interessantes da FC. Para o trekker é obrigatório, mas deve interessar também quem curte
cultura popular e ao fã e leitor de FC em geral. Pois, ao menos nesse caso, é
uma novelização que acrescenta um conteúdo de valor à compreensão do universo
ficcional.
—Marcello Simão Branco
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