Raízes
do Amanhã: 8 Contos Afrofuturistas, Waldson Souza, org.
Capa: Nazura Santos. 219 páginas. São Paulo/Belo Horizonte: Gutenberg/Plutão,
2021.
O afrofuturismo é um movimento
literário de caráter especulativo que busca a valorização e identidade do mundo
a partir da realidade historicamente discriminada da raça negra. Foi assim
nomeado em meados dos anos 1990 nos EUA, e tem entre seus principais autores os
norte-americanos Samuel R. Delany e Octavia Butler (1947-2006). Talvez de forma
surpreendente já tem uma quantidade de obras e autores brasileiros com alguma
relevância. Por exemplo, os romances O
Caçador Cibernético da Rua Treze (2017), de Fábio Kabral, O Céu Entre Mundos, de Sandra Menezes
(2021) – vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2022 – e O Último Ancestral (2021), de Alê
Santos, finalista do Jabuti. Isso além de eventos e publicações acadêmicas, o
que evidencia ainda mais sua vitalidade desde a última década.
Mesmo assim, o nosso afrofuturismo
continua nas bordas da visibilidade cultural mais ampla, se somando à luta em
prol de uma maior pluralidade e reconhecimento, a exemplo da própria que a
inspirou, a ficção científica.
Nesse sentido, é muito
útil a publicação de uma coletânea como Raízes
do Amanhã, por apresentar vários temas da causa negra a partir da
perspectiva da FC. Além disso, um livro como esse enriquece também a própria
FCB, por abrir o leque para novas visões sobre a nossa realidade. Isso porque,
quase todas as histórias trabalham com a perspectiva de emancipação dos negros
dentro de um contexto brasileiro. Justamente, um país com um passado e
problemática racial tão dramática e ainda pendente em nossa contemporaneidade.
O conto que abre a coletânea
é “Não tem Wi-fi no Espaço”, de G.G. Diniz. Num futuro indefinido, o Nordeste
se separou do Brasil, e constituiu a República Federativa do Nordeste. Uma
comunidade de negros vivendo em algo próximo do que foi um quilombo coloca em
órbita um satélite, primeiro passo para a mudança para Marte. Um novo mundo,
quiçá menos racista e desigual que o da Terra. Mas eles enfrentam problemas
inevitáveis de perseguição, principalmente por uma empresa transnacional que
quer ter exclusividade de oferta das altas tecnologias astronáuticas. Talvez o
ponto fraco seja apresentar com realismo como uma comunidade miserável como
essa pudesse manipular tecnologias tão avançadas, mas não desabona a leitura
criticamente relevante e bem escrita.
“O Show tem que
Continuar”, de Lavínia Rocha mostra, de certa forma, um caminho inverso. Isso
porque, numa nave que, aparentemente orbita a Terra de forma incógnita,
humanos, androides e IAs compartilham um projeto de interferir nas estruturas e
práticas racistas, num local em especial, o Brasil, para poder mudar esta
realidade em algo mais justo para todos. Contudo, a narrativa segue um plano
algo superficial, e com uma conclusão incompleta e ingênua.
A terceira narrativa é
uma das melhores do livro. “Sexta Dimensão”, de Stefano Volp, faz uma reflexão
interessante sobre as possibilidades e o alcance do amor, em três camadas
diferentes que se entrecruzam: um ser artificial – menos que humano –, o
protagonismo negro e a homossexualidade. Muito ousado, embora o principal seja
a colocação no primeiro plano o quanto de humano realmente existe em seres que,
formal e tecnicamente, não o são. Principalmente quando expressam sentimentos
tão pungentes, como o amor.
A noveleta seguinte me é
particularmente cara: “Jogo Fora de Casa”, de Sérgio Motta. Isso porque,
organizei em 1998 a antologia Outras
Copas, Outros Mundos, a primeira a reunir histórias de FC com futebol. No
início do século XXIII, o esporte mais popular é algo parecido, o futsol, mais
parecido com o futebol de rua, que eu mesmo joguei quando era criança. Sem
goleiro, delimitado por espaços fechados – muros, paredes ou casas –, como numa
quadra. A história mostra a visita de Casa, um time pequeno, da periferia de
São Paulo, e que se tornou o time sensação da temporada, ao ser campeão. Com isso,
foi desafiado pelo vencedor do Sistema Solar. O texto alterna os acontecimentos
da peleja, com a trajetória de dificuldades de superação dos jogadores do time
terrestre. Mas, embora talvez não tenha sido a intenção do autor, a especulação
sobre o que o futebol se tornou é mais interessante do que os comentários
sociais que, embora relevantes, soam descolados e inverossímeis ao retratar uma
realidade de hoje como quase que inalterada daqui há dois séculos.
“Recomeço”, de Kelly
Nascimento foi, provavelmente, escrita durante a pandemia de Covid-19. Conta o
drama do casal Helena e Alexandre, dois médicos que, além de terem de cuidar e
lidar com as várias mortes de pacientes de uma pandemia que assola o planeta,
enfrentam as perdas um do outro. O texto é forte, segura o interesse, mas se
torna confuso e indefinido em seu desfecho.
O nível volta a subir com
a noveleta “Segunda Mão”, de Petê Rissatti. Aqui à perspectiva negra se soma à
da homossexualidade, numa história de contexto distópico. No relacionamento
amoroso entre um jovem branco e um negro maduro, a questão que ainda incomoda é
o racismo, preconceito mais difícil de ser superado do que o da
homoafetividade. O negro faz parte de um grupo secreto de contestação da ordem
autoritária – que tem um governo mundial, está presente na vida da pessoas o
tempo todo e as faz tomar um remédio para “se sentirem felizes” –, e não é
difícil imaginar que o desfecho da narrativa não será róseo: tanto no plano
pessoal como no político.
A próxima história é
“Tudo o que Transpor o Ar”, das irmãs Pétala e Isa Souza. É uma narrativa com
tons épicos, com uma moldura espacial interessante, sobre a viagem de retorno
do povo Irawó ao seu planeta natal, após uma diáspora de séculos. A premissa é
boa, mas se perde no excesso descritivo e na ausência de dramaticidade.
O conto que fecha a
coletânea é o melhor: “Com o Tempo em Volta do Pescoço”, de Waldson Souza,
também organizador da obra. Numa história comum de viagem no tempo, o
interessante é o contexto político e suas possíveis consequências. Isso porque
Jamila, sobrinha de uma construtora de uma máquina do tempo, volta a 2098 para
evitar a morte de Jorge Assis, um candidato negro à presidência do Brasil. Esse
fato teria provocado, mesmo que no já distante 2300, o estabelecimento de uma
ordem autoritária e miserável no Brasil, com a particularidade de as pessoas
terem de comprar seu tempo para saírem de casa e usarem um colar de
identificação no pescoço. Bem sinistro. Mas, ao voltar ao fim do século XXI, e
permitir que o candidato negro vença a eleição presidencial, um novo mundo se
desdobrou: democrático e próspero para todos, inclusive para a família negra de
Jamila. Mas, por melhor que tenha sido a mudança, ela descobrirá que não tem
lugar nesse mundo. Impactante.
Em seu conjunto Raízes do Amanhã é uma coletânea que serve
como uma boa introdução ao nosso afrofuturismo, bem como o seu diálogo com a
própria FCB. Que, por sinal, tem se espraiado em várias searas na terceira
década do século XXI: comunidade queer,
recortes regionalistas e este da raça negra, estruturalmente a mais carente e
injustiçada da história do Brasil. Mas, se por um lado, estas correntes
identitárias, por assim dizer, enriquecem a nossa FC e democratizam os pontos
de vistas particulares, acentuam uma certa falta de projeto comum, o que tem
tornado a FCB excessivamente fragmentada. É um novo desafio a ser enfrentado.
—Marcello Simão Branco
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