Babel
17 (Idem)/Estrela Imperial (Empire Star),
Samuel R. Delany. Capa: Frede Tizzot. Tradução: Petê Rissati.
280/120 páginas. São Paulo: Morro Branco Editora, 2019. Lançamentos
originais de 1966.
Em
meio à bem-vinda onda recente de publicação de FC estrangeira de
qualidade no Brasil, Babel
17 é um dos
lançamentos mais celebrados. Romance icônico da New Wave dos anos
1960, sempre esteve na lista de desejos dos fãs mais antigos da FCB.
Alguns não esperaram e leram em inglês mesmo; outros, como eu,
tiveram mais paciência e, finalmente, tem o prazer de ler o livro
nesta tradução da Morro Branco Editora.
E
é uma edição diferenciada, pois publica também a movimentada
novela Estrela
Imperial, atendendo um
antigo desejo do autor de ver as duas histórias juntas numa só
edição. Conforme veremos a seguir, Estrela
Imperial se situa
dentro do universo ficcional da história mais famosa, embora possa
ser lida de maneira independente. Chama a atenção também a
qualidade do projeto gráfico das capas e da diagramação, além de
uma pequena biografia do autor.
Babel
17 é a obra
mais conhecida de Samuel R. Delany, um dos escritores mais talentosos
e representativos da FC da segunda metade do século XX. Talvez o
fato de não ser oriundo
do ambiente mais tradicional dos fãs – à época ainda ligados à
Golden Age –, tenha
permitido
a ele maior liberdade temática e, sobretudo, estética, em se juntar
ao grupo de escritores que mudou radicalmente a feição do gênero,
com mais experimentação literária e a abordagem mais ousada de
temas como diversidade cultural, orientação sexual, drogas e
comportamentos sociais alternativos. Tudo isto está presente em
Babel 17.
Ler esta história, em seu devido contexto, nos ajuda a compreender
um pouco mais as mudanças de mentalidade da FC em meio às
revoluções culturais da década de 1960.
Em
um futuro indefinido a Terra faz parte da Aliança – uma coalizão
de povos extraterrenos que colonizou as galáxias mais próximas –,
e que está em guerra com Os Invasores, uma misteriosa raça
alienígena que nunca mostrou o rosto e o pouco que se sabe, vem de
suas naves, armas e tecnologias militares. A Terra sofreu sérios
revezes, por meio de embargos e isolamento, provocando crises
econômicas, surtos de doenças, fome desesperada, o que levou a
práticas de canibalismo. Delany ilustra com acuidade a degradação
através da miséria e da precariedade de recursos numa cidade
portuária de nosso planeta.
Neste
contexto em que, ao que parece, estamos perdendo a guerra, Rydra
Wong, a poeta mais popular das cinco galáxias habitadas, recebe de
um general a missão de desvendar o que vem a ser um estranho código
identificado nas ações dos invasores: Babel 17. Ela é convocada
não por ser talentosa e conhecida, mas por ter grande talento no
aprendizado rápido de línguas. Fala e compreende dezenas delas. Mas
Wong esconde um segredo ao qual nem ela quer admitir. Tem um leve
poder telepático, mas que quando se manifesta a faz se sentir mal,
com gagueira e náuseas, efeitos também de uma tragédia pessoal na
adolescência.
Os
militares desconfiam que Babel 17 esteja por trás de uma série de
atendados militares que estão atingindo as instalações da Aliança,
e o receio maior é que possa ter consequências imprevisíveis.
Desvendar este código passa a ser, então, uma tarefa estratégica
no conflito. Mas Rydra mostrará que Babel 17 é bem mais do que
isso.
Num
capítulo particularmente inspirado ela adentra o submundo boêmio da
cidade portuária para recrutar uma tripulação para a sua nave, que
deve partir para onde os militares acreditam que acontecerá o
próximo incidente. Acompanhada de um burocrata da alfândega, ela vê
uma luta livre, e conhece tipos muito estranhos, até para os padrões
desta época: pessoas com todo tipo de implantes e próteses,
alienígenas humanoides, e seres desincorporados. Sim, mortos que são
recuperados para a vida, ou por meio de uma conexão mental ou
fisicamente mesmo. Ou seja, dentro de determinadas situações, é
possível trazer o corpo e/ou a consciência de alguém à vida
novamente.
Formada
a tripulação Rydra parte com a Rymbaud
para o centro da galáxia, usando o salto de Specelli como uma
espécie de salto hiperespacial. Delany apenas se
utiliza de convenções do
gênero, sem se preocupar com detalhes. Pois, se estamos diante de
uma space opera
militar, na verdade o tema é apenas uma moldura externa para as
verdadeiras implicações do desenvolvimento do enredo. Isso porque o
grande interesse é no que é Babel 17 e que consequências trará,
antes de mais nada, para a própria protagonista.
Após
chegar a seu destino onde, espera-se que ocorra o próximo atentado,
Rydra descobre que Babel 17 é muito mais que um código militar, é
uma linguagem extremamente sofisticada, talvez pertencente à
civilização inimiga. Pois o contato com a língua permite uma
percepção diferente do pensamento e uma expansão da própria noção
de tempo. Tais possibilidades em Rydra Wong permitem que desenvolva
sua própria habilidade telepática, num nível jamais imaginado.
A
língua Babel 17 problematiza a condição de individualidade,
anulando o “eu” e incorporando uma noção mais coletiva, grupal
de existência. Pois Rydra compreende isso melhor quando conhece o
Carniceiro, um humanoide estranho, de origem desconhecida e que se
expressa, justamente, sem uma identificação individualizada. Será
mesmo com ele, que a poeta descobrirá todo o potencial de Babel 17,
e que consequências poderá trazer para sua própria ideia de
individualidade e lealdade à causa terrestre. Neste cenário, a
guerra em si é deixada num segundo plano. O que importa é a
consequência daqueles que tem contato e aprendem a interagir com a
estranha linguagem.
Babel
17 venceu o Prêmio
Nebula 1966 – num empate inédito com o também clássico Flores
para Algernon (Flowers
for Algernon), de
Daniel Keys – e foi finalista do Prêmio Hugo 1967. Se
insere de maneira inspirada no conjunto restrito de romances de FC
que tem na linguagem a grande força do enredo. Como, por exemplo, As
Linguagens de Pao (The
Languages of Pao,
1958), de Jack Vance; Tempo
de Mudança (A
Time of Changes,
1971), de Robert Silverberg, e The
Embedding (1973), de
Ian Watson.
“Penso,
logo existo”, diz o célebre cogito de René Descartes (1596-1650).
Mas para pensar precisamos de uma linguagem. Ela se insere na própria
estrutura prática e simbólica do pensamento, como e por que
pensamos e compreendemos a vida e o mundo. Em chave de FC, Delany
explora a premissa e suas possíveis consequências, ainda que tenha
ficado uma sensação de incompletude pois, afinal, a guerra não se
resolve e nem o destino de Rydra Wong. Em todo caso, é um romance
movimentado, com personagens interessantes e que não perde de vista
o entretenimento.
***
A
segunda história do livro é Estrela Imperial. Delany
gostaria que tivesse sido publicada junto com Babel 17, mas
isso só foi acontecer numa edição de 2001. Antes, ela foi
publicada de forma independente ou ao lado de outro romance A
Balada de Beta 2 (The Ballad of Beta 2) (1965), publicado
no Brasil nos anos 1970 pela coleção Fantastic n. 587, da editora
Tecnoprint.
Estrela
Imperial é uma
aventura agitada de space
opera infanto-juvenil.
Mas, assim como Babel
17, é mais do que
parece. O vínculo com o
romance
se dá pelo fato da
história ter sido escrita por um dos namorados de Rydra Wong. Uma
história popular comentada pelos personagens de Babel
17.
Uma
nave sofre um acidente e cai em Rhys, um satélite de um planeta
joviano em órbita de Tau Ceti. Um jovem nativo chamado Cometa Jo
encontra os destroços, e dois sobreviventes. Um deles, antes de
morrer, pede que ele leve uma mensagem para a Estrela Imperial. O
outro sobrevivente é Jóia, um tritoviano que assume uma forma
cristalizada. Ao assumir esta forma se torna possível que visualize
vários pontos de vista ao mesmo tempo. E a partir desta habilidade
Jóia é quem conta a história como narrador onisciente.
Entediado
e sem perspectivas num lugar em que a economia se baseia na extração
e exportação de um minério que serve como fonte de energia para as
naves interestelares, Jo parte em sua jornada, inseguro, sem saber o
teor da mensagem a ser entregue, nem a quem, e com que propósito.
A
bordo de uma nave como auxiliar de serviços gerais, ele passa a ter
como tutora uma mulher, Sam Severina, rica e sábia, que lhe ensinará
línguas e cultura geral para torná-lo menos ´simplexo´e mais
´complexo´, até chegar a ser uma pessoa ´multiplexa´. Não fica
claro o que significa cada conceito, mas sugere algo próximo de
deixar de ser uma pessoa de hábitos mais convencionais para outros
mais abertos à diversidade e maturidade. Ao que parece, essencial
para que possa cumprir sua missão e viver plenamente pela galáxia.
Não deixa de ser uma alusão ao processo de amadurecimento da vida
adolescente até a adulta, e uma postura mais plural e tolerante com
relação ao outro.
A
galáxia vive a tirania da Estrela Imperial. Destrói civilizações
que se opõe ao seu poder e escraviza outras. Entre elas estão as
LLL, criaturas construtoras, hábeis em elaborar cidades e
ecossistemas inteiros. Servem de força de trabalho ao império. E
como Jo irá descobrir a mensagem a ser entregue está ligada à
libertação das
LLL e à sucessão do trono, entre o Príncipe Nactor e sua jovem
irmã, escondida numa nave militar do império.
A
certa altura, contudo, a perspectiva linear é abandonada, e Jóia
revela acontecimentos do antes e do depois do cumprimento da missão
de Cometa Jo. O
desfecho se conecta ao
início, numa estrutura de tempo circular e síncrona. Em certo
sentido me pareceu um pouco confuso e mentalmente trabalhoso, pois é
solicitado ao leitor que repense várias situações da história,
numa perspectiva totalmente nova. É Jóia
mesmo que afirma que cabe ao leitor o desafio de desvendar as
relações de causa e efeito. Mesmo assim, este é o diferencial da
narrativa em relação a soluções mais convencionais. Não se
poderia esperar menos de um autor como Samuel R. Delany, e ele estava
certo: Babel 17
e Estrela Imperial
não se ligam apenas do ponto de vista metalinguístico e
ficcional, mas também em
seu estilo e nas situações multivariadas
de cada trama.
A publicação mais recente de Samuel
R. Delany no Brasil antes deste volume foi o conto "Para Sempre, e Gomorra"!, na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, organizada por Braulio Tavares (Imã Editora, 2011). Mas já havia sido publicado nas décadas de 1960
e 1970, com cinco livros, todos de bolso. Primeiro com Prisioneiros
das Chamas (La Selva, coleção Espacial, n. 2) (1964), A
Cidade dos Mil Sóis (Rio Gráfica, coleção Galáxia, n. 19)
(1967), Metagaláxia (Editorial Bruguera, coleção FC, n. 29)
(1971), As Torres de Toron (Editorial Bruguera, coleção FC,
n. 44) (1972), a novela “Linhas de Força” (Antologia de
Ficção Científica n. 3, Editora Globo/RS) (1973) e o já
citado A Balada de Beta-2. Em língua portuguesa, Babel 17
já havia sido publicado, em Portugal, pelo Círculo de Leitores n.
20, em 1989. Mas estas duas histórias do volume da Morro Branco
estavam inéditas no Brasil. Nesse sentido, podem permitir ao leitor
brasileiro dos anos 2000 descobrir Delany, um dos autores mais
talentosos da FC norte-americana dos anos 1960 até os dias de hoje.
–– Marcello
Simão Branco