Conheci o texto de Connie Willis no periódico Isaac Asimov Magazine (carinhosamente chamada de IAM), publicação tradicional nos EUA que teve 25 edições no Brasil nos anos 1990, pela editora Record. Ao lado de monstros da ficção científica recente, como Charles Sheffield, Kim Stanley Robinson, James Tiptree Jr., Geoffrey Landis, Bruce Sterling, Judit Moffet, George R. R. Martin e Lucius Sheppard, entre outros, Connie Willis era autora frequente e seus textos sempre interessantes e contundentes, como a novela “O último dos Winnenbagos” – publicado na edição número 11 de abril de 1991 e ganhador dos prêmios Hugo e Nebula –, sobre um casal idoso em viagem nas estranhas estradas do uma América futurista. Willis é uma das autoras mais premiadas de sua geração, com nada menos que sete Nebulas e onze Hugos no currículo (e contando).
Connie Willis é, então, uma paixão do passado. Se alguém diz que há uma nova história dela no mercado, meu coração já começa a bater mais forte. Ler Willis hoje é como voltar no tempo e reviver a emoção de ler uma IAM inédita. Velhos tempos.
Interferências, romance de 2016 traduzido no Brasil em 2018 pela Companhia das Letras no selo Suma, é o segundo romance de Connie Willis no Brasil. O anterior foi O livro do juízo final, publicado pela mesma editora em 2017 e resenhado aqui. Fiquei um pouco receoso de que Connie não tivesse acertado a mão em Interferências, pois ouvi opiniões que davam conta de que esta não seria uma história de ficção científica, a especialidade da autora. Mesmo assim, confiava que o talento literário de Willis não me decepcionaria. Eu estava certo e as opiniões, erradas, é claro.
A história acompanha a confusão que se torna a vida de Briddey Flanningan, jovem executiva de uma indústria de celulares que aceita o pedido de Trent, seu noivo e chefe na empresa, para realizarem com um importante cirurgião da moda o implante de um tipo de chip cerebral que permitirá ao casal compartilhar as emoções um do outro e, dessa forma, ter uma relação mais intensa e transparente. Muitos casais felizes atestam as vantagens do procedimento, que é um tipo de prova de amor nesse futuro próximo, sendo uma operação simples e corriqueira, sem riscos à saúde. Mas essa não é a opinião de um dos colegas de Briddey, o engenheiro de desenvolvimento C.B., mais conhecido nos corredores da empresa como “Corcunda de Notre Dame” devido ao seu aspecto desengonçado e anti-social, sempre isolado em sua oficina no subsolo. C.B. usa todos os seus piores argumentos para demover Briddey de sua decisão pelo implante, apela até para um discurso de terror explícito dando exemplos de cirurgias aparentemente simples que levaram os pacientes a óbito, mas a jovem está convencida do amor de Trent e briga com C.B., pois acredita ele está com ciúmes e tentando sabotar seu sonho de conto de fadas.
Depois de uma verdadeira operação de guerra para evitar as fofocas no trabalho e as invasivas mulheres de sua família irlandesa, Briddey e Trent internam-se secretamente no hospital para receber o implante. Tudo vai bem até que a anestesia passa e Briddey descobre que alguma coisa deu muito errado com a cirurgia: em vez de sentir as ondas de amor emanadas por Trent, começa a ouvir em sua mente a voz de C.B., com quem agora têm um vínculo telepático. E isso é muito mais que um inconveniente, pois o que Trent vai pensar quando souber que sua amada tem com o “Corcunda de Notre Dame” uma ligação mais íntima que com ele próprio? Mas isso é só o início dos problemas de Briddey, pois o seu dom telepático pode colocar em perigo não só a si, mas a toda sua família, que é disfuncional mas a qual ela ama sinceramente.
A história tem, em boa parte, o tom de uma comédia romântica, e em alguns momentos iniciais realmente lembra o enredo do longa-metragem Do que as mulheres gostam (What women want, 2000). Mas é só superficialmente, porque Interferências tem um panorama efetivamente de ficção científica, com muitas teorias voando por todos os lados, com direito a conspirações e cientistas malucos que tornam a narrativa uma verdadeira montanha-russa. O tom humorístico é delicioso e raro tanto no trabalho de Willis – que geralmente é dramático – quanto no gênero da ficção científica de modo geral. Uma peça literária valiosa portanto.
E as epígrafes que abrem cada capítulo são um charme à parte, transcrevendo frases inspiradoras de filmes, seriados de tv e livros como Graça infinita, Artemis Fowl, Alice no País das Maravilhas, O jardim secreto e outros, que fazem o delírio dos fãs de citações.
Por tudo isso, Interferências é um livro que pode ser lido com prazer tanto pelo leitor veterano, fã de ficção científica, como também pelo leitor não especializado no gênero, incluindo aquele que acredita não gostar dele. Porque, no fim das contas, Connie conseguiu com louvor fazer aquilo que muitos perseguem sem sucesso: escreveu uma ficção científica para quem não gosta de ficção científica. E isso é um feito e tanto.
— Cesar Silva
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