terça-feira, 18 de julho de 2023

Prêmio Le Blanc 2023

No dia 14 de julho, em evento presencial no Sesc São João de Meriti, no Rio de Janeiro, foram anunciados os vencedores da edição de 2023 do Prêmio Le Blanc, voltado a apontar os melhores do ano anterior em animação, jogos, histórias em quadrinhos e literatura fantástica. 
A apuração foi realizada em duas etapas: uma consulta popular pela internet indicou três finalistas em cada categoria, dentre os quais o ganhador foi definido por um juri de especialistas. 
Os vencedores de 2023 são:
Romance: A roda de Deus, Leonel Caldela, Jambô.
Coletânea: Assombros, Zé Wellington, Draco.
História em quadrinhos independente: Ovelha negra, Carlos Felipe Figueiras & B. Horn, Tapas.
História em quadrinhos: Sussurros do caos rastejante, Fábio Yabu & Fred Rubim, Jambô.
Série de tiras: Edifício Celeste, Thiago Krening.
Série de animação: Turma da Mônica, Cartoon Network, Mauricio de Sousa Produções & Split Studio.
Curta animado: Coelhitos e gambazitas, Thomas Larson.
Curta animado independente: Eu nunca contei a ninguém, Douglas Duan.
Longa animado: A lasanha assassina, Ale McHaddo.
Animação publicitária: Abertura de novela Cara e Coragem, Leonardo Fleury & Luciana Jordão.
Game eletrônico: Fobia – St. Dinfna hotel, Pulsatrix Studios.
RPG: O cordel do reino do sol encantado, Pedro Borges, New Order.
Criado em 2018, o Prêmio Le Blanc é organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 
O nome é uma homenagem à André LeBlanc (1921-1998), haitiano radicado no Brasil com uma extensa e importante obra no campo da ilustração editorial.
A relação com todos os finalistas de cada categoria pode ser conferida aqui.

domingo, 16 de julho de 2023

Território Lovecraft, Matt Ruff

Território Lovecraft
(Lovecraft country), Matt Ruff. Tradução de Thais Paiva, 354 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Há algum tempo, mais exatamente em 2017, o escritor e tradutor Fábio Fernandes, em seu podcast Terra Incógnita, publicou uma série de episódios sobre uma onda neolovecraftiana na fc&f americana, e um dos títulos que destacou foi justamente Lovecraft country. Foi a primeira vez em que ouvi falar do livro e de Matt Ruff, seu autor. Fernandes teceu efusivos elogios à obra e recomendou que os editores brasileiros dessem uma chance a ele.
É claro que não foi o singelo podcast que Fernandes, ainda que se considere a significativa influência de seu editor no fandom, que levou a editora Intrínseca a publicar o livro no Brasil. Isso só aconteceu quando a HBO Max anunciou a produção de uma série inspirada no livro, o que é um apelo irresistível aos editores brasileiros quando se trata de livros de fc&f. Por isso, não foi surpresa quando o livro apareceu nas lojas virtuais, em edição de luxo e capa dura. Não que o título não mereça: provavelmente foi o melhor livro de fc&f publicado no país em 2020 e certamente um dos cinco melhores da segunda década deste século.
O mais interessante é que não se trata de um livro lovecraftiano, como seria de se imaginar. Os escritores profissionais sabem muito bem que qualquer autor fã saberia imitar o estilo démodé de Lovecraft. Trata-se de um texto enxuto e potente, mas a leitura é sofrida por conta do tema; o estilo é bastante contemporâneo, ainda que toda a ação esteja localizada em algum momento dos anos 1950. Trata-se de um romance fix-up, formado por contos e novelas autônomos possivelmente publicados em separado, reunidos por um arco geral que lhes dá unidade dramática.
Conta a história de uma família de homens e mulheres pretos num Estados Unidos da América em que o racismo e a segregação racial são praticados com anuência do poder público. Um dos veteranos, chamado de George, mantém a publicação de uma espécie de fanzine turístico, o Guia de Viagem do Negro Precavido, para que as pessoas pretas possam transitar pelo país com alguma segurança. Para isso, viaja continuamente e enfrenta os perigos de caminhos ainda não experimentados, de modo a registrar os lugares em que o povo preto pode se alimentar e se hospedar sem o risco de ser assassinado. Oito história e um epílogo compõem o volume, cada uma focaliza um dos membro da família, embora os demais também participem com maior ou menor significado.
"Território Lovecraft" é a novela que abre o volume. Cumpre com louvor a apresentação dos personagens e do ambiente geral. Nela, acompanhamos Atticus, um jovem que retorna sua cidade natal e encontra Montrose, a quem chama de pai, desaparecido. Acompanhado de George e da jovem Letitia, embarcam no velho woody da família com destino ao condado de Ardhan, em pelo "Território Lovecraft", uma região perigosa para os negros. Lá, se depararam com Caleb Braithwhite, jovem branco muito misterioso, além de um grupo de homens brancos que praticam uma espécie de culto, a qual chamam de "Filosofia Natural", cujo ritual exige a participação de um dos nossos ousados viajantes e influirá no futuro de toda a família.
"A casa assombrada dos sonhos" focaliza as irmãs Letitia e Ruby, que compram por uma bagatela um antigo casarão no qual pretendem implantar uma pousada para negros. O problema é que o casarão está localizado em um bairro majoritariamente habitado por brancos racistas. E não só: a mansão era, no passado, residência de Hiran Winthrop, figurão da Filosofia Natural cujo fantasma nada amistoso assombra o lugar.
"O livro de Abdulah" é uma espetacular aventura ao estilo de Indiana Jones. Caleb Braithwhite está de posse do Livro dos Dias, que registra a vida dos membros da família durante o período da escravidão e é um documento importante para que eles possam obter uma polpuda indenização. Mas Caleb só o devolverá em troca do Livro dos Nomes, compêndio mágico que está escondido no subterrâneo do Museu de História Natural. Atticus, George, Montrose e alguns amigos embarcam nessa perigosa missão sobrenatural para garantir a devolução do tesouro roubado da família.
"Hyppolita perturba o universo" é a melhor história do volume, na minha opinião. E isso é um mérito enorme porque todas as histórias do livro são excelentes. Hippolita, a mãe de Letitia e Ruby, é uma mulher de vida agitada e de muita personalidade. É astrônoma, viaja sozinha e é colaboradora do Guia. Seu passatempo favorito é visitar observatórios astronômicos pelos EUA, principalmente aqueles em que não poderia entrar. E o observatório que ela quer invadir desta vez fica numa propriedade particular pertencente a Hiran Winthrop (sim, o fantasma da mansão de Letitia). Ela vai descobrir, da maneira mais surpreendente possível, que aquele não é um observatório como os demais, pois ele mostra as estrelas "bem" de perto.
"No ano-novo, Ruby acordou branca". Esta é a frase que abre o conto "Jekil em Hyde Park", no qual Ruby consegue realizar seu maior desejo, que é arrumar emprego numa loja de departamentos muito elegante. Mas ela só consegue isso graças a um feitiço que o sedutor Caleb Braithwhite lhe ensina.
"A casa Narrow" é uma história de viagem no tempo nada convencional, na qual Montrose é convencido por Braithwhite a recuperar cadernos antigos com anotações de Hiran Winthrop que aparentemente já foram destruídos. Para isso, ele terá de fazer uma pequena viagem a casa de um certo Sr. Narrow.
"Horace e o boneco do diabo" é de longe o texto mais assustador do volume, no qual Horace, o membro mais caçula da família, tem de enfrentar uma maldição mortal que Braithwhite lança sobre ele.
"A marca de Caim" apresenta o desfecho emocionante do combate entre os nossos protagonistas e o aparentemente invencível Braithwhite e seus asseclas, com muita ação, violência, tiroteios e magia negra, é claro.
O texto está repleto de referências e citações ao universo nerd, a literatura fantástica e até aos jogos de RPG, que não são gratuitas nem derrubam a suspensão da incredibilidade como geralmente ocorre nesses casos. Pelo contrário, em Território Lovecraft, todas as citações são elementos fundamentais das histórias, que não poderiam ser contadas da mesma forma sem elas.
Comparando-se o texto original com a adaptação produzida pela HBO Max, é possível dizer que esta é bastante fiel ao romance mas está longe de ter a mesma qualidade. O livro de Ruff é muito superior à versão audiovisual, que tomou liberdades para outra conclusão, alterou personagens, fundiu histórias, ignorou outras e inventou coisas que nem estão no livro. Algumas das melhores narrativas do original ficaram de fora, outras foram tão alteradas que mal é possível reconhecê-las, além de colocar o pobre Atticus numa situação ambígua e frágil que nada tem a ver com o personagem original. Sem falar na limagem das deliciosas citações, bem como da relevante questão metalinguística, proposta logo às primeiras páginas, sobre o modo contraditório como uma pessoa preta se relaciona com a ficção científica, gênero de tradição evidentemente racista.
Recomendo a leitura do texto original de Ruff. Quem só viu o seriado não recebeu o melhor de Território Lovecraft.
Cesar Silva

segunda-feira, 3 de julho de 2023

O Beijo Antes do Sono

 


O Beijo Antes do Sono, Fausto Cunha. Capa: Salvio Negreiros. 119 páginas. São Paulo: Artenova, 1974.

 

Fausto Cunha (1923-2004) foi uma figura importante da literatura brasileira, nas décadas de 1960 e 1970, e se estendermos sua contribuição à FC, também à década de 1980, aqui na figura de editor. Mais conhecido entre a comunidade de FCB como um dos principais autores da Primeira Onda, nomeada por ele de “Geração GRD”, transitou entre a crítica literária, a ficção e a edição, com talento e marcas próprias, a partir de uma perspectiva humanista e intimista. Aliás, uma tendência característica dos autores desse período.

Publicou de sua lavra quatro livros de FC, as coletâneas Noites Marcianas (1960) e O Dia da Nuvem (1980), a novela infanto-juvenil O Lobo do Espaço (1977) e este O Beijo Antes do Sono, seu único romance.

Num período contemporâneo, mas indefinido, duas amigas de infância vão passar alguns dias numa fazenda da família de uma delas. Ambas estão em crise com seus casamentos, mas aguardam a chegada dos maridos para breve. Brígida é mais bonita e expansiva, ainda que com períodos de certa confusão e melancolia. Débora, parece ser mais racional e prática, mas não resiste muito quando confrontada aos seus problemas, principalmente emocionais e sexuais. O que as duas compartilham de mais valioso é a intimidade, como se o verdadeiro casal fosse o delas. Apesar de terem personalidades distintas, compartilham sonhos e segredos, embora estejam ambas num momento incerto de suas vidas.

Neste livro estes dramas interiores são potencializados pelo contato com a força vital da natureza: as estrelas à noite, a terra, os animais domesticados, a água – com rios e chuvas –, as árvores, plantas e pássaros. O intimismo meio que se entremeia, em momentos inspirados da narrativa, com motivos e eventos da natureza.

Mas em meio a este contexto existencial e primal, há um elemento de desestabilização sobre a vida das duas: Phom. Um ser indefinido que surge, ora para Brígida – que parece ser sua preferida –, ora para Débora. O contato e relação dele com as duas é incerto e intenso e avança para o crescente erotismo e a consumação sexual. O estranho é que quando ele não está presente, ambas se entregam aos seus problemas conjugais e psicológicos como se Phom não existisse. Mas mesmo quando ele surge – voando, se materializando, quase sempre à noite –, soa como estranho, quase como inexplicável para aquela que não está a ter o contato com ele. Vira uma espécie de segredo oculto entre as duas. Mas quem seria Phom?

Um anjo, um ser sobrenatural da natureza, uma espécie de vampiro, um extraterrestre? Mas Phom não é uma criação totalmente nova do autor, pois é possível estabelecer conexão com ao menos dois contos que ele publicou na coletânea Noites Marcianas: “Chamavam-me de Monstro” e “61 Cygni”. No primeiro, temos o alienígena Blixt, um ser do planeta Ghrh, que se apossa e se transforma em qualquer outra forma material, orgânica ou inorgânica. E em “61 Cygni”, uma mulher solitária tem contato com uma criatura simbionte, semelhante a Blixt. Ora, os dois elementos estão presentes: o alienígena e uma mulher! Desta forma, Phom deveria ser uma extensão do desenvolvimento do conceito. Mas, infelizmente, Cunha não se interessa em esclarecer, ou ao menos explorar um pouco mais sobre o elemento que é, afinal, o condutor de maior interesse da narrativa. E em certo ponto dela, ocorre o que poderia ser chamado de uma ruptura, pois o comportamento de ambas se torna psicologicamente e fisicamente muito alterado. Passam a ter ideias insanas e assassinas, desejos sexuais insólitos e engordam demais. Muito provavelmente grávidas do ser misterioso?




O Beijo Antes do Sono foi adaptado ao cinema como Amor Voraz (1984), pelo prestigioso diretor Walter Hugo Khouri (1929-2003). Ele é conhecido por seus filmes existencialistas e intimistas, que procura desvendar mistérios e obsessões da psique humana, talvez principalmente a masculina, como no seu personagem infeliz e solitário Marcelo, que se sucede em vários filmes. Mas em Amor Voraz o foco são as nuances e as complexidades femininas, um gênero humano, diria, mais misterioso. Afinal, a mulher teria uma relação mais sutil com os âmagos da realidade, por ser capaz de gerar uma vida, podendo, assim, talvez ser mais afeita à capacidade de lutar pela sobrevivência e transmitir o amor. Enfim, estou a divagar, mas é que tudo isso fica mais evidente no filme do que no livro. Neste, após a tal da ruptura a história perde mesmo seu rumo, com uma parte final em que os eventos perdem inteligibilidade, concluindo com uma estranha discussão teológica descolada do que parecia ser a proposta inicial da obra.

Mas talvez o mais curioso é que não o romance, mas o filme é claramente identificado com a FC, pois a personagem, interpretada por Vera Fisher – que seria a Brígida –, se comunica com Phom por telepatia, e fica a saber que ele vem de um planeta distante muitos anos-luz da Terra, e que ele germinou sob a água, após milhares de anos. Adquiriu a forma humana e deve voltar ao seu lar – numa viagem de luz – para comunicar se o nosso planeta é adequado à vida deles. Ora, há mesmo semelhanças aqui com outros filmes de FC como, por exemplo, ET, o Extraterrestre (1982) e Star Man: O Homem das Estrelas (1984). Ora, é irônico que um autor de FC escreve uma obra que insinua, mas não assume ser do gênero, e um diretor que nunca teve ligação alguma com ele, produz uma obra do tipo. E bem interessante.

O Beijo Antes do Sono, ganhou uma edição em Portugal, pela editora Bertrand, em 1976, mas, de fato, quase nunca é lembrado entre aqueles poucos que leem e pesquisam sobre a nossa FC. De Fausto Cunha se fala principalmente de As Noites Marcianas, de fato seu melhor livro. É um romance interessante, embora não desenvolva plenamente as potencialidades temáticas que seriam afeitas ao gênero, tornando-se desequilibrado em seu final. Mesmo assim, vale a pena ser conhecido.

Marcello Simão Branco