Demónio
(Demon), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Sophie Penberthy Vinga. Capas: autorias
não identificadas. 200 e 245 páginas, respectivamente. Publicações
Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 118 e 119, 1986. Lançamento
original em 1984.
Neste romance
que conclui a Trilogia de Gaia, formada além de Demónio, por Titã (1979) - ler resenha aqui -, e Feiticeira (1980) - resenha aqui -, os eventos são retomados 20 anos depois de a
feiticeira Cirocco Jones – que originalmente havia sido a capitã da nave
terrestre Ringmaster –, haver se insurgido contra uma das versões da deusa
governante do mundo artificial, Gaia, para tentar recuperar a viabilidade de um
mundo com risco de destruição.
Mas a divindade ressurge e agora de forma
totalmente over: uma Marilyn Monroe
de 15 metros de altura – imagine isso! –, procurando dominar pela sedução e um poder
sobre-humano. Pois nessa nova encarnação, Gaia se esquivou de qualquer limite
ou bom-senso, voltada totalmente para sua megalomania em que procura
transformar seu próprio mundo num estúdio de cinema. Ela vê e revê
compulsivamente filmes e mais filmes norte-americanos, num festival de cinema
ininterrupto e itinerante no interior de uma fortaleza chamada Pandemonium,
onde também existe um exército poderoso a seu dispor.
Com isso, reencontramos Cirocco, a heroína
que pensava ter dado cabo das loucuras e crueldades de Gaia, mas que é chamada
novamente à ação para liderar uma nova e mais dramática resistência aos
caprichos e arbítrios da governante da roda artificial que orbita Saturno.
Cirocco é acompanhada nesta nova missão por alguns dos seus mais fiéis
companheiros, como os formidáveis titânides, seres centauróides criados por
Gaia e postos sob a responsabilidade de sua reprodução a cargo de Cirocco. O
que se tornou um encargo pesado demais para ela, numa espécie de maldição
lançada por Gaia por ela a ter desafiado. Além dos titãnides, velhos parceiros,
como Chris e Robin, além de novos com destaque, como Nova, filha de Robin e
Conal, que se torna uma espécie de guarda particular de Cirocco. Mas para além
da resistência em si, está em jogo a sobrevivência dos titânidades como espécie
e a chance de libertação de Cirocco: descobre-se que o pequeno Adam, o caçula
de Robin tem o poder necessário para garantir a sobrevivência dos titânidades.
Mas não só: eis que ressurge também a antiga tripulante e amante de Cirocco,
Gaby Plauget, com misteriosas aparições aparentemente sobrenaturais para
pessoas determinadas, principalmente, é claro, Cirocco, onde ela passa
informações valiosas sobre os passos de Gaia e como derrotá-la. Como se verá, o
próprio destino da trilogia estará conectado não só ao embate entre Cirocco e
Gaia, mas também ao que representará Gaby neste contexto.
Em sua loucura, ou verdadeira intenção de
poder desmedido, a deusa governante de Titã fomenta uma guerra nuclear na
Terra. Assim de amiga da humanidade torna-se a sua maior inimiga. Os humanos
sobreviventes, desesperados, emigram para o mundo dela, tornando-se explorados
de todas as maneiras. Passam a sobreviver na maior metrópole de Titã,
Bellinzona, onde reina o caos e a violência. Dividida em guetos, e sem lei
definida, toda a sorte de injustiças e iniquidades são cometidas, num autêntico
embrutecimento da condição humana. A ponto de bebês serem comercializados e
carne humana ser vendida no mercado central da cidade.
Pois este lugar se tornará estratégico
para a causa da resistência, quando é literalmente invadido e resgatado do caos
estimulado por Gaia. Cirocco, com uma força expedicionária de dezenas de
titãnides assume o poder, e restaura a lei, a ordem e um mínimo de decência e
humanidade. Por trás dessa ação está a intenção de formar um poderoso Exército
de centenas de milhares de homens para marchar em direção ao Pandemônio e
derrotar definitivamente Gaia e libertar o pequeno Adam, raptado pela
divindade.
Alguns aspectos, em particular, chamam a
atenção neste livro: primeiro a ausência da nomeação do mundo como Titã. Neste
terceiro livro se menciona Gaia, como a deusa e como o próprio mundo, como este
fosse uma extensão da divindade. Me pareceu confuso, mas certamente Gaia
aprovaria. Em segundo lugar, Varley desenvolve alguns temas candentes como
paralelos ao contexto principal, mas os larga meio que pelo caminho, como se
fossem pontas soltas. Exemplos temos em relacionamentos promissores, mas sem
continuidades, e principalmente o pós-holocausto nuclear terrestre que tornaria
a história ainda mais dramática se fosse mais integrado à trama geral. Teria
pensado o autor em desenvolvê-los posteriormente, como novos episódios,
transformando a trilogia numa série? Só ele mesmo poderia responder, mas o fato
é que ficaram pelo caminho no prosseguimento de sua obra. E me incomodou a
vinculação cultural de Gaia à cultura cinematográfica norte-americana, como se
representasse toda a Terra. Todas as citações e referências são de estúdios,
filmes e artistas do seu próprio país, num chauvinismo que destoa do contexto
que se mostrou tão arrojado em outras áreas, como a da liberdade de
comportamento, sexual, principalmente, como poucas vezes visto na FC.
Como nota o leitor, Demónio – com acento circunflexo, pois foi assim que foi grafado na
edição lusitana –, é uma história extremamente movimentada, a que oferece mais
sequências de ação e conflitos em toda a trilogia. Mas, de certa forma, este
plano maior do enredo se mostra muito previsível – ao contrário, principalmente
de Feiticeira, talvez o mais
surpreendente deles –, como se quase suas 400 e poucas páginas se justificassem
para o inevitável embate final entre Cirocco e Gaia. Nesse sentido, os dramas
pessoais, mais particulares, vistos nos dois primeiros livros, não recebem o
mesmo tratamento dramático, tornando a conclusão da saga menos intimista, ainda
que reserve um belo sentimento de libertação.
Em seu devido contexto, contudo, A
Trilogia de Gaia se constitui numa das iniciativas de construção de mundo mais
interessantes e complexas da ficção científica, que talvez não receba mais
reconhecimento por não haver obtido a mesma continuidade de publicação e popularidade
de obras semelhantes como, por exemplo, a portentosa série Duna (1965-1985), de Frank Herbert (1920-1986), levada ao cinema e
depois à TV e que foi trabalhada pelo autor por 20 anos, enquanto Varley
abordou o seu universo ficcional por apenas cinco. Em todo caso, é possível
encontrar na internet sites e blogs de fãs apaixonados pela trilogia,
a ponto de reproduzir mapas de Titã – o que senti falta num mundo descrito com
tantas minúcias – e da própria estrutura da roda giratória. Sensacional.
Os três livros foram publicados em
Portugal, na saudosa coleção FC Europa-América, mais ou menos nos mesmos anos
dos lançamentos originais, e merecem ser lançados de forma inédita aqui no
Brasil. Como nos últimos anos têm ocorrido uma certa recuperação do tempo
perdido, com o lançamento de obras inéditas dos anos 1970 e 1980, se algum
editor mais engajado estiver a ler esta resenha, considere seriamente a
possibilidade de trazer ao nosso país estes três livros fascinantes.
Pois John Varley, seu criador, é um dos
mais inteligentes e provocativos autores surgidos no cenário da FC nas últimas
décadas do século passado, com um hábil equilíbrio entre a aventura e momentos
de sense of wonder, rigor científico
e ricas especulações sobre o destino da humanidade, a partir de uma visão mais
aberta e contestadora dos valores tradicionais, em especial do mundo ocidental.
—Marcello Simão Branco