segunda-feira, 1 de julho de 2024

Titã




 Titã (Titan), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Maria Nóvoa. Capa do volume 1: Ron Walotsky. Capa do volume 2: Tim White. 164 e 159 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 92 e 95, 1985. Lançamento original em 1979.

 

John Varley surgiu como um dos talentos mais promissores da FC norte-americana em meados dos anos 1970. Estreou em 1974 com o conto “Picnic on Nearside”, em The Magazine of Fantasy and Science Fiction e obteve grande prestigio com seu romance de estreia, Ofiúco, o Aviso (The Ophiucchi Hotline; 1977) – publicado pela coleção FC Europa-América, número 15. Com eles sobressaiu qualidades, como a habilidade na renovação de conceitos tradicionais do gênero (como as viagens interestelares e a colonização humana do espaço), sem parecer repetitivo e bem informado sobre o estado da arte do conhecimento científico em áreas diversas, como a clonagem e a inteligência artificial, além de apresentar personagens com valores e comportamentos não convencionais. Tudo isso transparece em Titã, romance de ficção científica hard, mas que usa o modelo para extrapolá-lo num sentido ousado e transformador.

Quando a DSV Ringmaster, uma nave tripulada chega nos arredores de Saturno para uma missão científica de exploração de algumas de suas luas, descobre um satélite novo, mas que, na verdade, não é natural. Os tripulantes, comandados por Cirocco “Rocky” Jones constatam que é semelhante a uma roda, com cabos em direção a um centro. Assim, não se trata da lua Titã, mas de um corpo novo que é nomeado provisoriamente de Themis, justamente um dos titãs da mitologia grega, que também nomeia várias outras luas de Saturno.

Ao se aproximar da estrutura, a nave terrestre é subitamente atraída e destruída, e os astronautas são como que tragados para o subsolo do satélite. Isso porque Themis, posteriormente renomeado de Gaia – a edição lusitana traduziu como “Geia”, mas adoto aqui o nome mais conhecido do conceito –, apesar de ter uma estrutura toroidal é inteiramente preenchido por densas florestas, montanhas, rios e vales. A denominação faz sentido, pois o satélite é uma estrutura alienígena concebida para comportar vida, criada a partir de um ser muito poderoso, quase um Deus, embora como ele mesmo reconhecerá, gerado a partir do que chamou de “os construtores”. Uma espécie alienígena ainda mais antiga e poderosa que, segundo ele, desapareceu da galáxia.

A comandante Jones e os demais tripulantes, como a astrônoma Gaby Plauget, as físicas clones April e Agosto, o piloto Eugene Springfield, o médico Calvin Greene e o engenheiro Bill, reaparecem em pontos distantes de Gaia com a sensação de terem sido devorados e regurgitados para a superfície, cada um deles com sentimentos próprios e apavorantes do que passaram. Jones, em particular, é uma das que menos sofreu transformações dessa experiência traumática. Isso porque, os demais saem com suas personalidades muito alteradas, alguns de maneira irrecuperável.

Jones reencontra Gaby e a seguir Calvin, que reaparece a bordo de um ser gigantesco semelhante a um dirigível, chamado de Assobio, porque se comunica através de sons sibilantes com outros seres de Gaia, que ele conduz em troca de alimentos trazidos pelos outros habitantes. Pois Calvin é capaz de se comunicar com Assobio, torna-se parte do modo de vida do ser, e decide abandonar a missão, para contrariedade de Jones.




Em sua jornada por respostas, Jones, Gaby e Bill – que perdeu parte de sua memória –, encontram uma espécie parecida com centauros, chamada de titânides, no qual todos têm a forma feminina, embora alguns com órgão sexual masculino. Eles conseguem entender os humanos, mas se comunicam por meio de cantos. Jones e os demais, têm de se esforçar para cantar para se comunicar com eles. Mas após certa estranheza e dificuldade inicial, se adaptam. Assim, ficam sabendo que os seres vivem em guerra com outros alados chamados de anjos. Que surgem do alto e os atacam de forma inesperada, razão pela qual estão sempre alertas.

Muito impactada após um ataque devastador dos anjos à vila dos titânides, Jones promete ao seu líder arbitrar um possível acordo de paz. Mas na verdade, o que a comandante busca é a fonte de poder deste mundo, já que os titânides lhe revelaram que existe a entidade central citada acima, que lhes deu a vida e conduz este mundo, chamado por eles, justamente, de Gaia. Assim, Jones, Gaby e Gene abandonam a vila e partem em busca de respostas e possível ajuda para voltar à Terra.  Contudo, nessa jornada de cerca de 600 quilômetros de altura, escalando árvores e montanhas, em meios a súbitas mudanças de temperatura – do calor ao frio extremo – novos desafios e transformações estarão adiante das duas – Gene se perde no meio do caminho, após atacar sexualmente a ambas, numa fúria em parte provocada pelas transformações pelo qual passou quando tragado sob a superfície –, até o eventual contato com a entidade que criou as formas de vida nesta estrutura orbital.

Como se vê, Varley constrói um mundo extremamente imaginativo e cheio de energia. A cada capítulo, o leitor tem diante de si, uma aventura intensa e repleta de surpresas. Tanto no nível macro, do enredo, como do comportamento dos próprios personagens, em parte também sob o impacto deste mundo incrível. Neste sentido, chama a atenção a liberalidade sexual dos personagens, com Cirocco Jones e Gaby se tornando amantes, além da comandante também se envolver com Bill, e as irmãs Agosto e Abril viverem uma relação incestuosa, aqui já antes da chegada às cercanias de Saturno. Num certo momento da narrativa, também há o consumo de cocaína, tudo isso muito provocativo no cenário conservador da FC norte-americana, mesmo com Varley surgindo no contexto pós-new wave e dos contestadores anos 1960. Outro aspecto interessante que foge do padrão é o protagonismo feminino, com a história sendo conduzida de fato por mulheres, além do próprio mundo ter, de uma certa forma, uma dimensão feminina, como na exposição de duas de suas espécies, os titânides e os anjos, além da própria entidade que governa o mundo toroidal.

E os leitores e os críticos norte-americanos gostaram, pois Titã venceu o Prêmio Locus de 1980 e foi finalista dos dois principais prêmios da FC norte-americana, o Nebula em 1979 e o Hugo em 1980. É de fato seu livro mais popular e, conforme o final já sugeria com o destino surpreendente da comandante Cirocco Jones, deu ensejo a mais duas sequências: Feiticeira (Wizard; 1980) – coleção FC Europa-América, números 87 e 89 – e Demônio (Demon; 1984) – coleção FC Europa-América 118 e 119 – constituindo a chamada Trilogia de Gaia.

Para quem gosta de uma FC com uma estrutura hard competente, personagens vivos e atuantes, e um sentido de aventura apurado, Titã é uma das melhores pedidas, e ainda permeado por momentos de sense of wonder na melhor tradição do gênero. Grande livro.

Marcello Simão Branco

 

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