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sábado, 17 de janeiro de 2015

Laços de sangue, Richelle Mead


Bloodlines: Laços de sangue (Bloodlines), Richelle Mead. 432 páginas. Tradução de Ana Ban. Editora Companhia das Letras, selo Seguinte. São Paulo, 2013.

Não há dúvida que a grande contribuição de Gengis Khan para a cultura ocidental moderna foi a inspiração para o mito do vampiro. O medo das barbaridades creditadas ao conquistador de "além das florestas" circulava à boca pequena nos saraus e espalhou-se pela sociedade, logo assumindo um caráter mitológico ainda mais assustador, como é comum entre o povo inculto. Se até animais comuns da natureza viram feras antropófagas no imaginário popular, nem é preciso imaginar o que Khan virou: ele foi o protótipo do vampiro, mais tarde trabalhado por artistas que lhe deram feições mais europeias e requintadas, aproveitando outros personagens. O vampiro ficou cheio de charme, embora ainda aterrador.
Contudo, autores modernos esforçaram-se em tirar do mito os seus contornos mais tenebrosos, no que foram muito bem sucedidos diga se de passagem. A atual imagem de memória dos vampiros foi devidamente processada e homogenizada, e não oferece risco maior para os seres viventes do que aqueles que já corremos nas mãos de nossos iguais.
A escritora norte americana Richelle Mead é uma dessas autoras "amantes dos vampiros", como ela mesma nomeia a protagonista no primeiro romance da série BloodlinesLaços de sangue, lançamento recente da editora Companhia das Letras através do selo Seguinte, com tradução de Ana Ban. O romance é sequência direta da série bestseller Academia de vampiros, também publicada no Brasil.
A mitologia vampírica de Richelle Mead baseia-se nas ações de uma sociedade secreta chamada de Alquimistas, cuja função é manter o segredo da existência dos vampiros na sociedade. Tal como 'homens de preto', os Alquimistas limpam a sujeira dos vampiros, divulgando versões plausíveis para explicar o rastro de mortes que eles geralmente deixam.
Os vampiros, por sua vez, são divididos em duas linhagens. Os Morois são suficientemente civilizados para viver em meio a sociedade humana e, apesar de terem alguns poderes sobrenaturais e não sofrerem das tradicionais limitações dos vampiros clássicos – podem sair ao Sol, tomar banho, aparecem nos espelhos e nas fotografias, envelhecem normalmente e podem até se reproduzir sexualmente –, são apresentados como criaturas irresponsáveis e frágeis, que precisam da tutela tantos dos alquimistas quanto dos dampiros, lutadores descendentes do cruzamento entre Morois e humanos, conhecidos como Guardiões.
Por terem um importante valor político, os Morois também precisam ser protegidos dos seus 'primos', os Strigois, raça degenerada, sádica e violenta, que se alimenta tantos de humanos quanto de Morois. Os Strigoi são mais parecidos com o mito tradicional, ferozes, perigosos e imortais.
Sydney Sage é uma jovem alquimista recém saída da adolescência, que é requisitada por seus superiores para fazer a proteção da linda, magra e pálida Jill Mastrano, princesa Moroi que precisa ser mantida a salvo de uma conspiração política que pretende assassiná-la. Para isso, ambas são enviadas incógnitas para um colégio interno em Palm Springs, região ensolarada que deve manter os Strigois relativamente à distância. Junto a elas vai o guardião Eddie Castile, dampiro destemido, hábil e totalmente dedicado à Jill.
Contudo, Palm Springs é a área de vigilância do Alquimista canastrão Keith Darnell, com quem Sidney tem uma relação pouco afetuosa. E a princesa terá que ser levada pelo menos uma vez por semana para se alimentar de sangue humano na residência de uma família Moroi na cidade, onde moram o velho meio gagá Clarence Donahue, seu filho Lee – que tem uma certa queda por Jill – e o misterioso e fútil Adrian Ivashkov.
Enquanto Sidney tenta cumprir o papel de babá de Jill, uma série de eventos suspeitos começam a se revelar, como a moda de tatuagens que dá estranhos poderes aos estudantes do grande colégio, assassinatos sucessivos de garotas Morois e o bulling que Jill começa a sofrer por conta de sua aparência invulgar, entre outros problemas da vida acadêmica.
Richelle Mead monta, assim, o cenário para uma história de aventura tipicamente adolescente, com um pouco de ação, um pouco de romance, um pouco de mistério e absolutamente nada do horror que aparentemente sugere. Os vampiros de Mead são belos, glamourosos, relaxados e positivos, mais até que os próprios humanos com quem Sidney parece ter muita dificuldade de se relacionar. A temida ameaça Strigoi praticamente não se apresenta em Laços de sangue, com apenas uma breve participação no trecho final.
O estilo narrativo é suave e naturalista, sendo a maior parte mostrada em forma de diálogo. Mesmo com pouquíssimas cenas de ação, a história se desenvolve com agilidade e suas 430 páginas podem ser lidas em poucas horas. A apresentação do livro é confortável e elegante, com relevos na capa, corpo do texto amplo no miolo em papel pólen soft, que deixa o volume bem leve, apesar da considerável quantidade de páginas.
Em suma, Laços de Sangue é uma história de vampiros perfeitamente recomendável para leitores jovens e, principalmente, para aqueles não gostam de terror: pesadelos não fazem parte do pacote.
Cesar Silva

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Tabuleiro dos deuses, Richelle Mead

O mercado internacional de literatura fantástica é uma bem-vinda novidade no Brasil. Como colônia cultural, o País sempre recebeu os produtos dessa indústria de forma irregular, em descompasso com os mercados estrangeiros melhor estabelecidos. Os romances chegavam por aqui com décadas de atraso, se chegavam, de forma que não se notavam suas peculiaridades sazonais de modo tão evidente quanto hoje.
Diferente da tradição local, em que o sucesso editorial depende apenas do carisma da pessoa do autor, a indústria editorial internacional pulsa ao ritmo dos bestsellers.
Quando o grande sucesso mundial era uma história de fantasia infantil (a série Harry Potter), surgiram dezenas de versões genéricas de maior ou menor qualidade. Nenhuma delas ombreou esse campeão de vendas, mas faturaram bem ou, pelo menos, o suficiente para justificar os investimentos das editoras. Em seguida, testemunhamos, já em primeira mão, o fenômeno da chiclit vampírica (a saga Crepúsculo), que detonou uma nova onda de lançamentos similares que, depois de algum tempo, acabou derivando para a chiclit erótica, afastando-se do mercado de fc&f.
O que se percebe é que existe uma corrida constante em busca do novo fenômeno comercial das livrarias. Atualmente, experimentamos o frenesi editorial pela ficção dita distópica, colocada em foco a partir do sucesso da série Jogos vorazes.
Cabe aqui um parêntesis. Apesar do sucesso de Jogos vorazes, o termo "ficção científica", gênero ao qual o romance inegavelmente pertence, foi desprezado em favor de "ficção distópica", que tem textura de novidade, "só que não", como dizem os jovens. Desde as suas origens, a ficção científica é movida pela tensão entre os polos utopia-distopia; este é o motor do gênero. Praticamente toda a produção do gênero pode ser dividida entre esses dois polos, com um avassalador predomínio da distopia, é claro, que é muito mais dramática e divertida. Dessa forma, que me perdoem os fãs, não vou evitar aqui o termo ficção científica, porque isso não faz nenhum sentido. Queiram ou não, ficção distópica nada mais é que um modo esnobe de dizer ficção científica. Fecha parêntesis.
Aos poucos, surgem no Brasil mais e mais títulos explorando a ficção científica, que andava em crise desde os anos 1980. Em 2012, a fc mostrou sinais de recuperação e voltou a crescer em 2013, assumindo a segunda posição na tríade 'fantasia-fc-horror'. Dentre os muitos romances surgidos no nicho, destaco Tabuleiro dos deuses, lançamento da Editora Companhia das Letras através do selo Paralela, primeiro volume da série A era de X, de autoria da norte-americana Richelle Mead, bastante conhecida entre os fãs de horror pela extensiva e bem sucedida série Academia dos vampiros. Temos aqui um bom exemplo de uma seguidora que superou a referência original.
A história de Tabuleiro dos deuses gira em torno da investigação de uma série de assassinatos de características ritualistas que assolam a República da América do Norte Unida (RANU), estado fechado e supertecnológico, ilha de progresso e conforto em meio ao caos econômico e climático que se abateu sobre o mundo. O governo da RANU praticamente aboliu a criminalidade a partir do controle genético e da implementação de um estado policial extremamente controlador. Contudo, ao perceber-se incapaz de identificar os criminosos, o governo decide convocar um de seus cidadão mais inteligentes, Justin March, que há quatro anos fora expulso do país por motivos misteriosos. Desde então, Justin reside no Panamá, lugar decadente e violento como é, enfim, qualquer lugar fora da RANU.
Para repatriá-lo, é convocada a pretoriana Mae Koskinen, supersoldado federal que, equipada com o mais avançado conjunto de recursos biotecnológicos de combate, é praticamente uma arma viva, característica que faz os pretorianos temidos por todos os cidadãos do mundo. Apesar dos implantes e do rigoroso treinamento, Mae está psicologicamente abalada pela morte de seu antigo amante, o que a torna especialmente vulnerável aos encantos de Justin, um canalha viciado em entorpecentes lícitos e ilícitos, com o histórico de manipular as pessoas para obter o que deseja.
Contudo, o que ninguém sabe é que Justin não é apenas inteligente, observador e desprezível. Ele está em contato direto com entidades sobrenaturais, os Corvos, seres incorpóreos que com ele dialogam mentalmente todo o tempo. E que a relação entre Justin e Mae vai muito além do amor – que logo vira ódio – e do sexo. Mae é uma espécie de gatilho que pode desencadear os eventos que permitirão que antigas divindades retomem o senhorio do planeta. Isso seria apenas uma singela história de fadas se a RANU não tivesse uma rigorosa política de repressão religiosa, que não permite que qualquer filosofia gnóstica prospere, controle este que cabia justamente a Justin executar.
Aos poucos, a autora vai revelando as peças que permitem ao leitor ter uma percepção maior desse mundo do futuro, assolado pela desigualdade social e pela carência de recursos, do misterioso histórico de Justin e da importância de Mae dentro desse intrincado plano cósmico.
Como se percebe por este rápido esboço, Tabuleiro dos deuses é muito mais sofisticado que Jogos vorazes, com um conjunto de personagens extremamente bem construídos, ambíguos e imprevisíveis, um ambiente mais rico e plausível, além de uma especulação procedente que une o impacto das tecnologias frente a uma discussão teológica relevante, a partir de um interessante blend de fantasia, cyberpunk e pós-humanismo, repercutindo a ficção científica pós-moderna tão pouco publicada por aqui, com generosas doses de sensualidade sem descambar para o apelativo.
Tabuleiro dos deuses é um livro que agrada ao leitor exigente que busca uma fc emocionalmente invasiva, de traços arrojados e texto maduro, que não opta pelo óbvio e ou pelo convencional. Altamente recomendável.
— Cesar Silva