quarta-feira, 2 de julho de 2025

A Rainha do Ignoto



 

A Rainha do Ignoto, Emília Freitas. Capa: Erika Tani Azuma e Rodrigo Disperati. 350 páginas. São Paulo: Folha de S. Paulo, coleção Folha Clássicos da Literatura Luso-Brasileira, 2023. Lançamento original em 1899.

 

A publicação deste livro nesta coleção indica a chegada da autora ao centro principal da literatura brasileira. Pois há somente nomes canonizados como, por exemplo, Machado de Assis, Luís de Camões, Castro Alves, Eça de Queiroz, José de Alencar etc. Talvez sinal de tempos mais arejados e menos preconceituosos, já que a cearense Emília Freitas (1855-1908) escreveu um romance especulativo, entre a ficção científica e o fantástico sobrenatural.

Chama a atenção, de saída, inclusive, que ela mesma pede desculpas à comunidade literária, obviamente, masculina, pela ousadia de cometer uma obra como essa. Diz que não tem padrinho e reconhece que a protagonista pode ser vista como muito extravagante ou exagerada. Mas afirma que é isso que faz dela alguém que veio para abalar as certezas da realidade, talvez mudar um mundo tão cheio de injustiças.

O romance tem início com a volta do doutor Edmundo ao sertão do Ceará, após ter ido viajar pela Europa como prêmio por ter se formado advogado. Rapidamente ele vira o centro das atenções da comunidade local, simples em seus comportamentos e costumes, especialmente das jovens que esperam a oportunidade de casar e assim “ser alguém na vida”. Inclusive, a autora retrata com muita acuidade e verossimilhança o modo de vida das pessoas do interior, tão rotineiras, religiosas, com horizontes limitados ao mundo que os cerca, enfim, tão conservadores. Nesse aspecto, Emília aborda esta perspectiva principalmente do ponto de vista feminino: dos valores e anseios das jovens, voltadas aos afazeres domésticos, aos encontros sociais em igrejas e reuniões de famílias, e suas artimanhas para conseguir um homem, o único meio de lhes dar algum reconhecimento social e alguma liberdade do controle da família.

Nesse contexto, estas mulherzinhas do mundo privado não encantam ao cosmopolita Edmundo e ele fica fascinado ao saber de uma lenda local sobre uma misteriosa mulher que, a altas horas da noite, por vezes navega no rio Jaguaribe, entoando canções melancólicas. Para o povo ela é conhecida como A Funesta, e recomendam a Edmundo que a esqueça. Mas, claro, ele quer saber quem é essa figura em tudo diferente das outras mulheres do povoado.

Edmundo conhece Probo, que tem a fama de caçar onças, e presta serviços à mulher também chamada de A Rainha do Ignoto. Pois Probo lhe conta em detalhes o que sabe sobre ela, e Edmundo resolve partir numa jornada para saber mais. A Rainha possui três navios, tripulados só por mulheres, mas isso é só o início de suas descobertas. Disfarçado de uma mulher muda que serve como ordenança da Rainha, Edmundo sobe a bordo do Tufão e desembarca na Ilha do Nevoeiro – que não é vista por quem não sabe de sua existência – onde irá descobrir o Reino do Ignoto, governado pela rainha, a mulher que tanto o fascina. Aos poucos, ao descobrir os detalhes desta sociedade secreta de mulheres, o encanto pela pessoa da Rainha se transforma em espanto pela organização e os resultados deste reino.

Com suas naus, a Rainha e sua paladinas desembarcam de porto em porto, de cidade em cidade pelo Brasil afora para realizar suas missões de caridade e correção de injustiças. A rainha e suas seguidoras se utilizam do poder do hipnotismo para iludir as pessoas, fazendo-as ver coisas sugeridas por elas, bem como se comportar de acordo com seus objetivos, nada lembrando após o ocorrido. Pois o elemento principal de identificação desta obra com a FC está, justamente, na utilização dos poderes hipnóticos, muito em voga na segunda metade do século XIX, ao lado do espiritismo, que fará sua entrada num certo momento da história em tons mais sobrenaturais do que religiosos.

Como muitos antes e depois dele, este romance se utiliza do recurso da observação externa para analisar o comportamento alheio. No caso, o doutor Edmundo sobre a sociedade secreta. Mas como que em paralelo, e principalmente, por meio desta sociedade utópica, Emília expõe e critica as mazelas e iniquidades da realidade de sua época: o machismo e desvalorização da mulher, a pobreza e exploração social, o racismo, o sistema político excludente e autoritário, fazendo-a, além de abolicionista, uma defensora da república. Só faltou defender o voto feminino, inexistente no período em que viveu.

Por meio de ações concretas de ajuda e intervenção em situações de injustiça: como a cura de doenças, a recuperação da reputação de mulheres desonradas pelos homens, a caridade e ajuda financeira aos pobres, o consolo de quem perdeu entes queridos, a libertação de escravizados do julgo de um coronel cruel, a Rainha e suas paladinas tentam reparar, mesmo que pelas bordas e de maneira incógnita, as injustiças e tristezas, principalmente dos mais desvalidos e das mulheres.

Em uma época em que a mulher era relegada ao mundo doméstico (da casa para dentro), a intenção da autora é expor estas limitações e opressões, além de criticar também os valores de um mundo social cheio de injustiças. Mas pode-se identificar um limite, pois não vai ao ponto de emancipar a condição feminina ou apresentar alternativas mais concretas para uma sociedade mais justa, pois as justiceiras, como dito, agem de forma oculta, por meio de disfarces e uso da hipnose, e não denunciam publicamente os perpetradores das mazelas. É como se as injustiças fossem confrontadas – e superadas – no plano privado, ora o mesmo em que a mulher, de forma geral, vive e tem reproduzida sua condição inferior frente aos homens e seus valores dominantes.




Uma situação esperada por toda a leitura é a descoberta do disfarce de Edmundo e, desta forma, a chance de uma altercação mais direta entre um homem ilustrado e uma mulher revolucionária. Mas, conforme a história transita entre uma aventura reparadora e outra, o advogado, embora simpático à causa, não se esforça nem para isso e menos ainda para se revelar diante de uma mulher pelo qual inicialmente, julgava-se, apaixonado. Falta ao romance não propriamente este encontro em si, mas uma cobrança mais direta, digamos assim, do comportamento masculino tão questionado.

Chama a atenção também o tema da morte. Pessoas (principalmente mulheres) morrem de dores de amor e ainda jovens. Há um sentimento de melancolia e certa morbidez a cercar praticamente todos os personagens, como se a morte fosse alguém muito próxima, em uma vida tão cheia de limitações. Talvez pelo fato de a própria expectativa de vida na época ser curta, entre 30 e 40 anos, mesmo para as pessoas que estavam na elite da sociedade. A morte era mais presente e próxima para quem vivia naquela época, talvez numa maneira que nos soe estranha nos dias de hoje.

A própria Emília não viveu até uma idade considerada avançada nos dias de hoje. Se foi aos 53 anos, acima da média da época, contudo. Além deste romance de FC&F – que na verdade foi seu último trabalho publicado – ela escreveu outro, O Renegado (1892), e a coletânea de poesias Canções do Lar (1891). Nascida na elite cearense – de pai militar –, ela atuou como professora em Fortaleza, colaborou com jornais literários e foi membro da Sociedade das Cearenses Libertadoras, o que ajuda a explicar suas ideias democráticas e feministas expostas em A Rainha do Ignoto.

Como disse antes, esta edição foi publicada por uma coleção de literatura luso-brasileira com autores mainstream, sendo Emília Freitas a maior novidade. Mas além esta singularidade, outra tem sido apontada também por alguns especialistas que estudam literatura brasileira, e mesmos uns poucos mais próximos da FC&F. De que este romance seria o ponto de partida da literatura especulativa brasileira. E especialmente saudado, como seria altamente justificado, por ter sido escrito por uma mulher, alguém à margem das decisões importantes da sociedade daquela época. Mas o caso é que se pode questionar o pioneirismo desta obra, pois outras foram escritas no país durante a segunda metade do século XIX e, lamento dizer, por homens, o que, obviamente, não é surpresa alguma. De forma rápida, só para dar alguns exemplos: Statira e Zoroastes, de Lucas José D´Alvarenga (1826), Páginas da História do Brasil Escritas no Ano 2000, de Joaquim Felício dos Santos (1868) e O Rei Fantasma, de Coelho Netto (1895), entre algumas outras. Claro que a falta deste alegado pioneirismo não tira a importância e os méritos da obra de Emília Freitas. Que se utilizou de elementos do fantástico para escrever uma obra de qualidade literária admirável e com conteúdo social e crítico muito à frente de seu tempo.

Marcello Simão Branco


segunda-feira, 2 de junho de 2025

Escala no Tempo



 

Escala no Tempo (The Door into Summer), Robert A. Heinlein. Tradução: Eurico da Fonseca. Capa: Lima de Freitas. 242 páginas. Lisboa: Livros do Brasil, coleção Argonauta n. 111. Lançamento original em 1957.

 

Quando Escala no Tempo foi publicado – de forma seriada em algumas edições da revista The Magazine of Fantasy and Science Fiction – Heinlein estava numa fase de ascensão comercial e de prestígio na FC. Pelo primeiro aspecto havia se tornado o primeiro autor do gênero a entrar na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times, com seus romances de aventura de FC infanto-juvenil. Por outro, havia acabado de receber o seu primeiro Prêmio Hugo, pelo divertido e inteligente romance Estrela Oculta (Double Star; 1957), publicado no Brasil pela Francisco Alves.

Escala no Tempo se passa em 1970, alguns anos depois da Guerra das Seis Semanas, um conflito nuclear localizado, mas que ainda assim, dizimou algumas regiões dos Estados Unidos, com a capital Washington destruída e sendo transferida para Denver, no estado do Colorado. Mas o romance apenas cita este evento que, no fim das contas, não deixou traumas profundos, com um recomeço economicamente próspero do país.

Nesse contexto, é que encontramos Dan Davis, um engenheiro, que com seu antigo colega de Exército, Miles Gentry, abre uma pequena empresa para construção de robôs para serviços domésticos. Completa a sociedade uma linda secretária, Belle Darkin, por quem Dan se apaixona. Em parte, sua ruína ocorre por isso, mas principalmente por ser um idealista em meio à maioria das pessoas que veem apenas na prosperidade material as razões mais importantes para viver. Pois Dan é passado para trás por seus dois parceiros, quando estes vendem a empresa sem consultá-lo. Além disso, Belle o trai e se casa secretamente com Miles, seu ex-melhor amigo. Desconsolado e deprimido ele resolve fugir, e se submeter ao sono frio: um processo de animação suspensa que permite que a pessoa seja congelada e reanimada posteriormente, num prazo estipulado. Dan não quer ir sozinho, contudo: quer levar consigo seu único amigo verdadeiro, seu gato Pete. Além disso, ele transfere, secretamente, suas ações à Frederica, (Ricky), enteada de Miles, uma adolescente por quem tem grande afeição.

O plano seria colocado em ação como ele havia planejado, mas Miles e Belle descobrem, e após ele ser sedado por eles, termina por reacordar 31 anos depois, em 2001, sem Pete e sem saber o destino de Rick. Mais do que se vingar dos dois traidores, Dan quer reaver seu gato e sua amiga. Mas como? O sono frio não permite um retorno ao passado. Após um início difícil na nova realidade, ele está empregado na mesma empresa que havia adquirido a sua, e pode, dessa forma, reaver suas plantas e projetos dos engenhos que ele havia criado – e se tornado grandes sucessos no mercado. Assim, ele estava quase resignado do seu destino, quando um de seus colegas de trabalho lhe diz que um cientista conseguiu criar uma máquina do tempo.

Dan consegue contactar o cientista, agora aposentado, e descobre que o invento não foi tornado público, porque após algumas experiências bem-sucedidas com objetos, despachou um assistente 500 anos, sem saber se no passado ou no futuro. O sujeito simplesmente sumiu. Mas ele consegue finalmente convencer o Dr. Twitchell a deixá-lo usar a máquina, por sua conta e risco. Assim, Dan volta novamente a 1970, a algumas horas antes do que ocorrera da primeira vez, para tentar reescrever uma nova – e espera – feliz história. Poder finalmente, por meio de tantas tentativas, encontrar “a porta para o verão”.

É uma pena que a Argonauta não tenha traduzido o romance como A Porta para o Verão, pois a expressão é perfeita para descrever o sentido da história e o espírito dos personagens. A busca por uma saída de problemas ou situações aparentemente insolúveis, reabrindo a chance de recomeçar, por meio de um futuro mais luminoso. Contudo, a Editorial Caminho, também de Portugal, foi mais feliz e relançou a obra com o título de A Porta para o Verão, em seu número n. 41, em 1986.




Este romance de FC é eivado de um frescor de aventura absolutamente encantador, do melhor que a Golden Age produziu, mas com uma prosa acima da média. Desde o início este foi justamente o que chamou a atenção para Heinlein e o tornou rapidamente um dos mais prestigiados autores do campo: histórias altamente especulativas, mas calcadas numa sólida verossimilhança e com personagens ativos e relativamente complexos, num estilo de prosa dinâmico, moderno, muito objetivo. Escala no Tempo tem tudo isso, motivo pelo qual é sempre lembrado como um dos romances mais agradáveis da FC de Heinlein e dos anos 1950, uma década que estava num processo de transição para o que se desdobraria na New Wave, em meados dos anos 1960: uma FC mais estilosa, psicologicamente densa e politicamente contestadora.

Em certo sentido, o romance não começa como uma história de viagem no tempo no sentido convencional, mas usando o recurso da hibernação como forma de saltar para outra época. Contudo, a viagem ao passado acaba ocorrendo, embora eu tenha achado a solução um pouco forçada na trama, para que o protagonista pudesse reescrever como queria sua trajetória de vida. Mas, devido ao tom naïve e a simpatia de Dave, e principalmente de Pete – que gato adorável – isso não chega a comprometer a obra, ainda enriquecida com situações de paradoxo temporal tão confusos quanto intelectualmente estimulantes. Mas, no fundo, é um romance bastante sentimental, no qual a esperança por uma segunda chance é o ponto principal.

Mas, logo depois de The Door into Summer, Heinlein também daria uma guinada em sua carreira, ao enveredar por histórias marcadamente ideológicas e reacionárias, tornando-se mesmo para a posteridade, mais como um autor controverso, do que admirado por suas inegáveis qualidades de prosador e contador de histórias. Mesmo assim, ele publicou ao menos dois romances notáveis: Um Estranho numa Terra Estranha (Stranger in Strange Land; 1961) e Amor Sem Limites (Time Enough For Love: The Lives of Lazarus Long; 1973).

Assim, o século XX é concluído com Heinlein reconhecido entre os leitores de seu país, numa edição da revista Locus, como “o melhor escritor de FC de todos os tempos” – já nas duas enquetes feitas pelo meu fanzine Megalon (em 1991 e 1998) ele ficou em sexto lugar. Acredito que dificilmente ele seria eleito o primeiro na nossa época, marcada pela abertura da FC ao multiculturalismo e pressionada fortemente por movimentos identitários. O mais provável é que no universo da FC apenas os fãs mais ideologicamente à direita continuem a considerá-lo como seu autor preferido. Mesmo assim, numa amostra de como suas histórias são interessantes por si, houve uma adaptação cinematográfica recente de The Door into Summer em 2021, e produzida no Japão. O que só reforça que Heinlein deve ser lembrado e apreciado, essencialmente, por sua arte de contar histórias. O prazer da leitura deste livro só me comprovou isso, mesmo sendo uma pessoa que pensa bem diferente dele.

Marcello Simão Branco

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Pulp Fiction Portuguesa

 



    Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa: Os Melhores Contos do Séc. XX, organização e introduções de Luís Filipe Silva. Colaboração de Luís Corte Real. 416 páginas. São Pedro do Estoril: Saída de Emergência, coleção Bang!, n. 155, 2011.

 

    A ficção científica (FC) e gêneros semelhantes (como a fantasia, o horror, o policial, o western etc) se tornaram populares graças ao seu desenvolvimento em torno das pulp magazines. Sim, na primeira metade do século XX, a massificação do gênero ocorreu através da publicação de contos, noveletas e novelas em centenas de revistas, produzidas com papel barato, preços muito baixos e farta distribuição por todos os cantos dos Estados Unidos, inclusive em supermercados, farmácias, terminais rodoviários, além dos pontos tradicionais, como livrarias e bancas de jornais. Tiveram, além disso, um público cativo e definido, voltado para adolescentes. Tal entusiasmo, incentivou a popularização de vários temas e conceitos. Na FC, por exemplo, a exploração do espaço, os extraterrestres, robôs e cenários de fim de mundo –, escritos por uma maioria de autores também jovens, muitos deles leitores das próprias revistas. Isso criou toda uma comunidade em torno do gênero, conhecida como fandom. Tais características, por outro lado, identificaram a FC e afins, como pobres em termos de prosa e estilo, forjando preconceitos, que em certa medida, sobrevivem até hoje.

    Todo este movimento cultural – de base literária – foi forte no país de economia mais pujante, de maior mercado produtor e consumidor – daí a FC em especial ser vista, mesmo hoje por pessoas mais desavisadas, como uma manifestação da cultura norte-americana –, mas extrapolou suas fronteiras, seja exportando suas revistas, seja, de forma mais importante, ajudando a desenvolver a pulp fiction em outros países, principalmente na Europa. Mas com cada país adquirindo suas próprias especificidades, de acordo com suas culturas e sociedades.

    Pois, nesse sentido, Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa imagina como poderia ter sido se tivesse havido um movimento semelhante no país. Isso porque, afora as características próprias do mercado editorial de Portugal, dificultou o desenvolvimento o fato do país ter passado por um período extenso de regime autoritário, 41 anos de 1933 a 1974, o que limitou as possibilidades de expressões artísticas e literárias mais livres.

    Em todo caso, não é que não tenha existido uma movimentação editorial de caráter pulp no país. Pois foram sim publicadas histórias pulps em revistas próprias por lá, por parte de alguns autores nacionais – como Diniz Machado e Roussado Pinto (este o nome verdadeiro de Ross Pynn, conhecido principalmente como antologista) –, boa parte deles com pseudônimos estrangeiros, e principalmente com material traduzido do exterior, principalmente dos Estados Unidos. Aliás, no Brasil ocorreu um processo semelhante, já a partir dos anos 1930, principalmente através de revistas pulps que publicaram em sua maioria contos de autores estrangeiros, mas também quase sempre com alguns brasileiros em cada edição. em especial entre as décadas de 1930 e 1970 – títulos como Mistérios, Meia-Noite, Galáxia 2000, entre outros. Mas talvez principalmente este fenômeno tenha ganhado uma feição particular em nosso país, com a publicação de livrinhos de bolso escritos por brasileiros com o nome de pseudônimos anglófonos. Tanto é que tivemos entre nós, R.F. Luchetti (1930-2024), que publicou centenas de obras como essas, sendo justamente considerado o Rei do Pulp Brasileiro.

    Desta forma, temos com esta antologia quase que um exercício de história literária alternativa. Num trabalho excepcional de pesquisa e criatividade, que em certos momentos de tão intensa, me deixou em dúvida sobre sua veracidade integral –, Luís Filipe Silva, apresenta, contextualiza e narra várias histórias com o melhor de uma possível ficção pulp lusitana.

    É uma antologia de ficção e não-ficção quase que em pé de igualdade, pois o esmero, a competência e a paixão são visíveis em cada página da obra. O livro contém uma introdução geral e mais treze histórias, quase todas noveletas, escritas por nomes que se mostram tão críveis que se chega a pensar se eles de fato teriam existido.

    O artigo de abertura é uma deliciosa análise crítica e biográfica sobre as origens e trajetória da pulp fiction de Portugal, com os principais temas, autores, editores e revistas. A seguir temos os relatos ficcionais propriamente ditos e quase tão interessantes quanto eles são os textos de apresentação de cada um dos autores, suas vidas e obras. Inclusive com as fotos deles e delas. Cheguei até a pesquisar no google estes nomes, mas sem sucesso.  Afinal, quem seriam de fato essas pessoas? Talvez um vislumbre do universo paralelo em que viveram?

    Cada história também foi impressa no livro de forma fac-similada, isto é, com a reprodução da versão original como publicada em uma dada revista. Mas há algumas delas inéditas, sendo, então, reproduzidas, na forma original em que foram escritas. Particularmente curioso é o caso de “A Noite do Sexo Fraco”, de Ludovico Bombarda – um pseudônimo –, com o texto apresentado com trechos censurados pela censura da ditadura de Salazar, principalmente concernentes ao regime político e ao erotismo. Tudo isso acrescenta ainda mais realismo à proposta.

    Todas as histórias são assinadas por nomes de destaque do movimento pulp lusitano como, por exemplo, Ruy de Fialho (autor de “O Segundo Sol”), A.M.P. Rodriguez (pseudônimo de um autor desconhecido, com “Pena de Papagaio”), Marcelo Augusto Galvão (este um brasileiro, que assina como Maxwell Gun, “Horror em Sangre de Cristo”), Tiago Rosa (com “O Inconsciente”), a estrela Ana Sofia Casaca (com “Noites Brancas), ela que também foi esposa de António Assunção, o principal editor do movimento, quase que um Campbell português.

    Praticamente todos os principais gêneros da pulp fiction estão representados nesta antologia: aventuras de guerra (“O Segundo Sol”), de horror (“A Expedição dos Mortos”, “O Inconsciente”, “Noites Brancas”), de crime (“Valente”), fantasia épica (“A Noite do Sexo Fraco” e “O Amaldiçoado de Ish-Tar”), e uma peculiaridade temática característica da cultura portuguesa. Aventuras além-mar, com histórias saborosas como “A Ilha”, “O Sentinela e O Mistério da Aldeia dos Pescadores”, “Horror em Sangre de Cristo” e “Pirata por um Dia”,

    As histórias são de alto nível, quase que num contraponto à qualidade média baixa dos contos pulps tradicionais. Destaco em especial a neolovecraftiana “A Ilha” (de João Domingues), “Horror em Sangre de Cristo” (de Maxwell Gunn), “O Amaldiçoado de Ish-Tar” (de Artur de Carvalho”), “O Inconsciente” (de Tiago Rosa) e “Noites Brancas” (de Ana Sofia Casaca). Poderiam ser selecionadas para antologias do melhor que a ficção de gênero curta luso-brasileira já produziu. Sem favor algum.

    Mas, afinal, quem seriam os autores das histórias? Luís Filipe Silva revela numa entrevista ao jornal português Público que os nomes dos verdadeiros autores das histórias estão dispersos pelo livro, normalmente nas próprias biografias. Que as histórias teriam sido selecionadas a partir de um concurso literário. Mas até onde pesquisei não houve notícia de um concurso como esse. Cheguei até a pensar que o autor fosse o próprio organizador. Enfim, trata-se de uma grande brincadeira de adivinhação, mas que, no fim das contas, não é tão importante, mas sim a qualidade da obra.

    Senti falta apenas da FC, que é, como dito no começo, o gênero mais praticado na pulp fiction. Talvez os portugueses não a apreciassem tanto? É possível, mas no fim das contas, esta tarefa é delegada ao último texto da antologia, a novela “Mais do Mesmo”, de autoria de um certo Roger C. Bester, um norte-americano radicado em Portugal que assinava suas histórias como João Barreiros. Uma piada interna com um dos mais importantes autores da ficção científica portuguesa.

    Os Anos de Ouro da Pulp Fiction Portuguesa é um livro que recebi de presente do próprio Luís Filipe Silva, pouco depois de seu lançamento. Ficou anos parado na estante, mas recomendo que o leitor que o tiver em mãos não espere tanto tempo. O livro, por tudo que já comentei, é uma verdadeira declaração de amor ao pulp e aos gêneros nele praticados. Uma das obras mais criativas e inteligentes que já li há muito tempo, e que se coloca como uma obra-prima da criação literária da FC&F em língua portuguesa.

    Publicada pela pequena editora Saída de Emergência – como só poderia ser um projeto fora do comum como esse –, é um livro raro e quase desconhecido do fandom brasileiro – e merece ser descoberto. Tal como a história da História do que poderia ter sido.

Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Silo

Por volta de dez mil pessoas vivem em uma torre subterrânea de cento e quarenta andares totalmente isolada da superfície. O complexo é autônomo, reciclando seu próprio oxigênio e água, e produzindo alimentos e energia para toda a população. Tudo isso porque a atmosfera do planeta é mortal para os seres humanos: um simples vazamento poderia trazer a morte para todos. Logo, a única alternativa para a continuidade da vida é manterem-se isolados dentro da torre. 
Décadas antes, um grupo de rebeldes se revoltou e tentou abrir caminho a força para a superficie. A revolta foi contida, mas abalou as relações político-sociais na torre. Desde então, dissidentes que manifestem o desejo de sair recebem permissão para isso desde que se comprometam a limpar a lente da câmera que vigia continuamente a superfície. Porém, todos morreram após alguns minutos de caminhada no exterior. Em todas as vezes, a população a torre assistiu aquelas breves jornadas na esperança de que, finalmente, a pessoa sobrevivesse. Mas isso nunca aconteceu.
Para que a população não aumente, a reprodução é mantida sob controle, e só alguns casais, a cada ano, obtém permissão para gerar filhos. Quando o xerife da torre e sua esposa conquistam essa benção e a alegria de ter um filho parece finalmente ser uma realidade, algo dá errado: a gravidez não se consolida e a mulher, uma importante técnica de TI, começa a desconfiar de que existe algum tipo de conspiração na torre. Isso a coloca em contato com um engenheiro que acredita ser possível obter informações do passado a partir de relíquias tecnológicas ilegais dos tempos pré-torre, para descobrir o que houve com o mundo e encontrar um modo de retornar para a vida na superfície em segurança. A investigação vai colocar em movimento uma série de ações dramáticas que podem por toda a torre em risco. 
Essa é a premissa da série de tv Silo, inspirada na série de romances do escritor americano Hugh Howey – que conta com três volumes: Silo (Wool), Ordem (Shift) e Legado (Dust), publicados no Brasil pela Intrínseca. A série de tv é produzida por Graham Yost e está em exibição desde 2023 no sistema de streaming Apple TV+, e recentemente estreou sua segunda temporada. É estrelada por Rebecca Ferguson, Rashida Jones, David Oyelowo, Common, Harriet Walter, Avi Nash, Rick Gomez Chinaza Uche e Tim Robbins, ator veterano que também assina a produção. 
A primeira temporada tem dez episódios muito bem produzidos, com cenografia deslumbrante e uma narrativa repleta de mistérios instigantes que vão se complicando a cada novo episódio. A história dialoga de perto com pelo menos dois clássicos da ficção científica: Plano Sete (Level 7, 1959), do escritor israelense Mordecai Roshwald, e A cidade dos asfixiados (La cité des asphyxiés, 1937), do escritor francês Régis Messac. Mas cada uma das histórias têm méritos próprios e valem ser conhecidas. 
Claro que nem tudo é perfeito em Silo. Muitas coisas são mostradas superficialmente, sem que se dedique o mínimo de tempo para explicar como aquilo tudo é possível. A tecnologia, em tudo similar a algo saido dos anos 1990, está em uso há mais de um século e continua funcionando perfeitamente. Mas, do mesmo modo que as histórias de ficção científica espacial não explicam como as naves podem fazer ruídos no vácuo do espaço, é preciso fazer vista grossa para tais inconsistências. Afinal, o que importa são os dramas humanos que se desenrolam ali. Mas algumas coisas são difíceis de ignorar.
Para dar um gostinho, veja aqui o trailer promocional da primeira temporada da série. Os quatro primeiros episódios estão disponíveis no pacote de assinatura da tv a cabo Now, da operadora Claro.
— Cesar Silva

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Nebulosa

 



Nebulosa, André Cáceres. Capa e projeto gráfico: Matéria-Prima Editorial. 330 páginas. São Paulo: Editora Patuá, coleção Futuro Infinito, 2021.

 

Num futuro distante e indefinido a humanidade está espalhada pela galáxia ao habitar 108 mundos. Sim, mais de uma centena. E todos eles governados, pelo menos formalmente, por um deles, o centro político do Império, chamado de Nebulosa. Em meio a este universo de trilhões de seres humanos, um deles descobre uma maneira de prever estatisticamente eventos futuros. Esta é a mola propulsora que dá início a esta aventura de space-opera.

Talvez um leitor mais experiente de FC já tenha intuído que estamos diante de uma estrutura bem parecida ao da série “Fundação”, de Isaac Asimov (1920-1992). De fato, poderia dizer que é um romance bem asimoviano, ainda que não se limite a isso. Quem descobre um meio de prever o futuro através de equações matemáticas é Dédalo, um jovem aprendiz de uma universidade no distante planeta de Agro-IV. Ora, Dédalo seria uma espécie de Hari Seldon mais jovem – o cientista de Asimov –, e a nova ciência que cria, a cliodinâmica, uma versão menos ambiciosa da psico-história. Pois esta prevê a queda do império e elabora, em segredo, um plano para reconstruí-lo. Já a cliodinâmica é mais sutil e modesta: prevê apenas que o imperador Ninrod II sofrerá um atentado.

Dédalo é levado até o líder político, e vira uma espécie de amuleto para servir de oráculo ou trunfo a ser utilizado pelo imperador, ou por quem tomar posse do garoto. Isso porque, no fundo, não seria preciso prever matematicamente a possibilidade do imperador sofrer um atentado, já que o regime imperial carece de legitimidade e impõe-se pelo terror em vários dos planetas, provocando, assim, reações de guerrilhas e planos conspiratórios para enfraquecê-lo ou derrubá-lo.

Talvez para explicar as várias fontes de contestação é que o romance tem sua ação intercalada em cenários diferentes, liderados por personagens específicos. Além de Dédalo, temos a guerreira Aurora, do planeta Opel-A; Ícaro, filho rebelde do imperador, e Leon Suçuaruna, outro filho de líder político, este do mundo de Riverão, que outrora liderava o império, mas foi politicamente destronado e mantém sua nobreza apenas na aparência, totalmente endividado e dependente dos favores de outras realezas e grupos mercenários.

Ao longo de dezenas de capítulos curtos, os planos e aventuras destes e outros vários personagens se sobrepõe de forma gradativa, como é comum nesta estrutura de romance em mosaico. E o que sobressai é menos o caráter subjetivo dos personagens, e mais as estratégias para obtenção de poder. É principalmente uma história de conspirações palacianas, mas movimentadas o suficiente para prender o interesse, ainda que algumas situações e reviravoltas ocorram de forma repentina e superficial.

A base asimoviana do livro pode ser identificada também na vinculação de Nebulosa com o planeta de Trantor, centro do império de “Fundação”. Além disso, pelo fato da humanidade ter se expandido Via-Láctea afora e perdido a noção de sua própria origem, considerada uma lenda. Mas também como, em algum momento, Asimov recorra a uma explicação para isso, em Nebulosa haverá um contexto favorável ao encontro da origem inicial da humanidade. Mas também como em “Fundação”, a humanidade estaria só no universo. Ou ao menos haveria um segredo com relação a uma possibilidade em contrário.

Embora Cáceres não seja o primeiro a se inspirar em Asimov para construir seu universo ficcional, chama a atenção, pois o Bom Doutor nunca teve uma influência importante nos escritores brasileiros de FC, historicamente mais próximos de Bradbury, Clarke e Lovecraft.

Em Nebulosa, o conhecimento científico é desqualificado e tido como potencialmente subversivo. Os cientistas são vistos como bruxos e perseguidos como se fizessem parte de uma seita. O que predomina é a forma de conhecimento mágico ou místico, ainda que isso não seja muito explorado e não fique claro como que uma civilização toda baseada na tecnologia de viagens espaciais com velocidade de dobra – inspirada aqui na série Jornada nas Estrelas (Star Trek) – possa desconsiderar o conhecimento que possibilita isso.

Outra questão subjacente se relaciona à questão do limite ou mesmo existência do livre-arbítrio – também colocada em questão na psico-história de “Fundação”. Embora pouco desenvolvida no contexto das tramas palacianas, receberá uma explicação probabilística que segue o Bom Doutor, no que diz respeito à maior precisão da previsão sobre o comportamento de agrupamentos coletivos do que na vida particular de um indivíduo.

Ainda que, em si, quase estejamos diante de um romance de homenagem, esta abordagem respeitosa de fã, não torna a leitura desinteressante, porque Cáceres escreve bem, os diálogos e as situações são ágeis e, o principal: suas descrições dos vários planetas são belas e inspiradas. Provavelmente, ele teve ter pesquisado bastante, não apenas em histórias de FC, mas na já farta literatura astronômica sobre os exóticos e surpreendentes exoplanetas.

Este não é o primeiro livro do jornalista André Cáceres, que já havia publicado a distopia Cela 108 (2015), além de alguns outros textos esparsos, mas talvez seja seu trabalho mais ambicioso, mesmo tendo por base um outro autor, um clássico da FC. Embora Nebulosa entretenha, acredito que o autor pode mais, principalmente se tiver uma voz mais própria, como demonstrou no conto “Esperando o Dono”, vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2024.

Marcello Simão Branco

 

terça-feira, 18 de março de 2025

Carta de Sailor Moon a Batman

Prezado Senhor Batman:

Venho por meio desta responder ao seu amável convite para que nós, Sailors, ingressemos na Liga da Justiça.

É um convite honroso e agradeço de coração, falando também em nome de minhas companheiras.

Entretanto, lamento mas devo declinar deste convite, por amável que seja. Todas nós decidimos de comum acordo, na reunião que fizemos: Marte, Júpiter, Vênus, Mercúrio e eu própria.

É que, Batman, existe entre nós e vocês uma grande diferença de métodos e até de conceitos. Para começar, vocês são a Liga da Justiça, ou seja, defendem a Justiça, o que é muito bonito e salutar. No entanto falta um elemento importante: o Amor.

Porque nós, as Sailors, proclamamos que lutamos pelo Amor e pela Justiça, assim mesmo, colocando o Amor na frente. Vocês nem mencionam o Amor, que dirá colocá-lo em primeiro lugar. E afinal, pode a verdadeira Justiça ser feita sem o Amor?

Sim, Batman. Veja bem, existe um curioso raciocínio que assim diz: de tanto combater monstros você acaba virando um monstro.

Não estou afirmando que vocês são monstros mas talvez estejam a meio caminho disso.

A reputação que vocês têm é dúbia, e muitas imagens os mostram com esgares raivosos, punhos fechados, membros retesados, como se vocês só vivessem para lutar. Quanto ao amor, é virtude que vocês sequer mencionam, que dirá colocar como lema.

Vocês vivem num mundo tenebroso, cinzento. Nós temos do mundo, da vida, uma visão mais alegre, de cor azul 💙, amarela, cor-de-rosa, sabemos sorrir com efusão. Sabemos nos divertir e nos ocupar com os pequenos problemas das pessoas, e até dos animais.

Não acreditamos em resolver tudo na força bruta.

Afinal, Deus nos deu um mundo e um universo tão belos. Lutamos não só pelo amor ❤️, mas com amor e creia, nunca duvidamos ser este o caminho certo.

Antes de combater o mal, proteger o bem. Proteger os bons e se possível, purificar os maus.

Por isso peço que entenda, Senhor Batman, não duvidamos das suas boas intenções, mas estaríamos desvirtuando os nossos ideais se nos unissemos a vocês. Somos por demais diferentes. E creia, aqui no Japão somos amadas pelo que somos.

Com nosso afetuoso abraço

 

Sailor Moon

Em nome da equipe Sailor

 

Tóquio 🗼, 14 de março de 2025.

 

P.S.

Em tempo, eu não sei escrever tão bem (rs). A nossa intelectual, a Mercúrio, deu uma força para a carta sair bem escrita. Ela sempre é muito legal.


Nota: Sailor Moon, criada por Naoko Takeushi (Japão) em 1991. Batman criado por Bob Kane (EUA) em 1939.

segunda-feira, 3 de março de 2025

Histórias de Dez Mundos

 


Histórias de Dez Mundos (Tales of Ten Worlds), Arthur C. Clarke. Tradução: Théa Fonseca. Capa: Rolf Gunther Braun. 184 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. Lançamento original de 1962.

 

Faltava este. Nos anos 1980 adquiri todos os quatorze os livros de Arthur C. Clarke publicados pela editora Nova Fronteira nesta época. A maioria no supermercado Carrefour, da Marginal Pinheiros, zona sul da capital paulista. Ao acompanhar meus pais na compra mensal aproveitava e levava um livro. Mas, não sei bem porque, este era o único que eu ainda não havia lido. E lá se foram tantos anos. Mas, segue minhas impressões sobre a coletânea.

Histórias de Dez Mundos reúne parte das histórias curtas escritas pelo autor durante o final dos anos 1950 e início dos anos 1960. São quinze histórias, a maioria de contos, mas inclui duas histórias mais longas, a noveleta “A Morte e o Senador” e a novela “A Estrada para o Mar".

O conto de abertura é “Recordo-me da Babilônia” (I Remember Babylon; 1960). O que chama a atenção é que é narrado pelo próprio Clarke, ele mesmo personagem dos acontecimentos. Talvez possa ser chamado de uma história de autoficção, mas difícil saber se os fatos narrados realmente aconteceram na vida do autor. Numa festa na embaixada soviética em Sri Lanka (onde ele vivia na época), ele conhece um produtor de TV que diz que se baseou em sua concepção do satélite geoestacionário para criar um programa de TV que seria transmitido de um satélite na altura do Oceano Pacífico, fora do alcance de possível tentativa de censura por parte do governo dos EUA. Ora, claramente é uma história tecnologicamente superada e que vale mais pela ênfase provavelmente biográfica.

A história seguinte é a primeira de uma série daquilo que podemos chamar de uma “problem story”: ou seja, normalmente, um astronauta é subitamente desafiado por um acidente em sua nave ou local onde está situado e tem de resolver o problema no limite de sua sobrevivência. Pois “Verão em Ícaro” (Summertime in Icarus; 1960) conta o drama de um astronauta que tem sua pequena cápsula avariada próximo a Mercúrio. Ele não tem como consertá-la a tempo da luz do Sol incidir de forma letal e tem de contar com a sorte de receber ajuda da missão baseada no asteroide Ícaro. O mais interessante é a forma realista e intensa como o drama é narrado. Angustiante.

As próximas quatro variam sobre o mesmo tema: “Fora do Berço, em Órbita para Sempre” (Out of the Cradle, Endlessing Orbiting; 1959), “Quem Está Aí?” (Who´s There?; 1958), “Ódio” (Hate; 1961) e “No Interior do Cometa” (Into the Comet; 1960). As duas últimas são as mais interessantes. “Ódio” sobre uma missão de resgate de um satélite artificial no fundo do mar, com um contexto de vingança política dos tempos da Guerra Fria, e “No Interior do Cometa”, em que uma nave enviada para o núcleo do cometa sofre uma pane no seu computador, deixando poucas chances de sobrevivência aos tripulantes. Ambas com um nível de suspense bem efetivo. A junção destas cinco histórias com temas parecidos pode dar a impressão de que se tornam repetitivas, mas somadas ganham força e servem como uma espécie de referência sobre os acidentes inesperados que podem ocorrer fora da Terra, mostrando toda a fragilidade tanto dos instrumentos como, sobretudo, dos seres humanos.

As três histórias seguintes são apenas curiosidades: “Uma Doméstica Diferente” (Na Ape About the House; 1962), “O Nascer de Saturno” (Saturn Rising; 1961) e “Um Clarão na Noite” (Let There Be Light; 1957). A primeira sobre a chegada de um chimpanzé geneticamente modificado para trabalhar como empregado doméstico, mas que revela outros talentos. A segunda sobre um empresário que quer inaugurar o primeiro hotel em Titã, lua de Saturno, e a terceira sobre um astrônomo amador que, ao ser traído pela mulher, elabora um plano ousado para se livrar dela definitivamente. Nesta última, como curiosidade adicional temos a presença do contador de causos Harry Purvis, que narra a história de vingança com sua verve de humor irônico, tão ao modo britânico e que revela a surpreendente faceta humorística de Clarke, que pode ser conferido em outras histórias desta linha na coletânea Contos da Taberna (Tales from the White Hart; 1957) – publicada pela Francisco Alves em 1976). Mas, em resumo, nestas três histórias as coisas não saem como inicialmente planejadas.

A próxima história, a noveleta “A Morte e o Senador” (Death and the Senator; 1961) vai no sentido inverso. Aqui o tom é de resignação e melancolia, quando um político poderoso, o senador Stelman, possível candidato à Presidência dos EUA em 1976 – ano do festejado bicentenário da independência do país –, recebe a notícia de que seu coração está a falhar e ele tem poucos meses de vida.

O interessante é que a doença terminal dá a ele a chance de rever suas atitudes perante a vida, dando mais valor às coisas simples e se reaproximando da família, em especial dos seus netos. Mas ainda há uma esperança quando os rivais soviéticos se dispõe a levá-lo à sua estação orbital que contém um sofisticado hospital para tratamento de doenças ainda incuráveis na Terra. Mas tal convite expõe uma de suas decisões do passado, quando ajudou a vetar uma verba para que a Nasa pudesse fazer o mesmo tipo de investimento. Então, que decisão ele tomará?

É uma boa história, publicada posteriormente na antologia Election Day 2084: Science Fiction Stories About the Politics of the Future, organizada por Isaac Asimov e Martin H. Greenberg e que me serviu de inspiração para organizar Assembleia Estelar: Histórias de Ficção Científica Política, publicada pela Devir em 2011. A história do Clarke só não foi publicada por causa do custo dos direitos autorais envolvidos.

As duas próximas são também semelhantes ao mostrarem aspectos pontuais da exploração dos dois planetas mais próximos da Terra. “A Corrida do Tempo” (Trouble with Time; 1960) e “Antes do Éden” (Before Eden; 1961). A primeira sobre o roubo de uma estátua encontrada em Marte e a segunda sobre a descoberta de uma estranhíssima forma de vida em Vênus, uma espécie de planta rastejante. Mas a ironia, terrível no caso, se revela no final, depois dos astronautas deixarem o planeta com restos de lixo. Ótima história.

Já a próxima foi uma verdadeira descoberta. “Um Ligeiro Caso de Insolação” (A Slight Case of Sunstroke”; 1958) relata a vinda de um estrangeiro a um país da América do Sul, Perívia, para negociar a venda de alguns produtos junto a militares que governam de forma ditatorial. Mas o vendedor tem poucos momentos para tratar os detalhes da transação que, ao que parece envolve propina e contrabando –, pois os perivianos estão envolvidos num esperado confronto futebolístico com o país rival, Paragura. Menos que as estratégias táticas e técnicas, vale mais as formas como o árbitro será comprado.

Pois o conto transcorre durante a peleja, com seus detalhes e polêmicas, a principal delas quando a polícia age para conter uma confusão generalizada nas arquibancadas lotadas do estádio, usando um tipo de espelho que, ao refletir a luz do sol, causa uma tragédia.

Apesar de apresentar um contexto um pouco estereotipado dos sul-americanos da época, o conto tem mérito próprio pela desenvoltura com que Clarke narra os detalhes da partida, mostrando conhecimento do esporte bretão – afinal, Clarke era inglês. Mas jamais podia imaginar que ele havia escrito um conto de FC tendo como pano de fundo o esporte mais popular do mundo. Organizei minha própria antologia sobre o tema, Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998) sem conhecimento disso e, antes tarde do que nunca, só soube disso décadas depois.

“Meu Cão Protetor” (Dog Star); 1962) é o conto a seguir e tem um pé no sobrenatural, embora o personagem se esforce em racionalizar o fenômeno. No caso, o repentino despertar de um sonho com Laika, sua cadela falecida, segundos antes de um abalo sísmico no observatório lunar. Pois anos antes, ela, ainda jovem, o havia alertado de um terremoto em São Francisco, salvando sua vida pela primeira vez.

A novela “A Estrada para o Mar” (The Road to the Sea; 1950) foi publicada bem antes das anteriores, mas fecha o volume. É uma história fascinante, com algumas das melhores ideias que fizeram de Arthur C. Clarke um gigante da FC: a relação da humanidade com a Terra, o desabrochar de um destino cósmico e a consciência de pertencimento a este universo, para além de seu berço natal. Mas que deixa o legado de um sentimento de perda e melancolia ao abandoná-lo.

Há milhares de anos alguns exploradores deixam a Terra para tentar colonizar as estrelas. Um caminho que se imaginava sem volta. Em nosso planeta muitas eras se passaram e o comportamento e os valores da própria humanidade foram se alterando: de uma forma de vida mais técnica e materialista, baseadas nas grandes metrópoles, ocorreu uma lenta, mas inexorável transição para estilos de vida mais simples e despojados de conforto, com um convívio social mais solidário e uma integração quase total com a natureza. Das antigas civilizações sobraram apenas ruínas e histórias que, com o longo tempo, se tornaram lendas.

E é onde encontramos o jovem Brant, que vive na pacata vila de Chaldis. Com o receio de perder sua namorada para outro, resolve peregrinar algumas semanas até a vila esquecida e abandonada de Shastar com o objetivo de trazer um presente para ela e demonstrar seu amor. Mas Brant mal poderia imaginar que, imerso à sua exploração pelas ruínas de uma das últimas das grandes cidades, receberia uma visita absolutamente desconcertante daqueles que haviam emigrado há tanto tempo. E com consequências decisivas para si e os demais últimos habitantes da Terra.

“A Estrada para o Mar” tem um enredo ótimo, mas vale ainda mais pela maneira como é contada: um misto de nostalgia pelo passado e dúvidas pelo porvir, ainda mais com todas as incertezas envolvidas. É mesmo de se estranhar que uma história tão boa como essa não seja citada entre suas melhores. Pois não só pode como deve ser incluída nesta relação. Se insere no contexto altamente virtuoso de sua produção do início dos anos 1950 e jamais alcançado novamente.

Em suma, Histórias de Dez Mundos é a terceira das coletâneas publicadas pela editora Nova Fronteira, ao lado de O Outro Lado do Céu (1984) (The Other Side of the Sky; 1958) e Sobre o Tempo e as Estrelas (1978) (Of Time and Stars: The Worlds of Arthur C. Clarke; 1972). No conjunto as três reúnem o melhor de sua ficção curta dos anos 1950 e início dos 1960. Mas se em comparação Histórias de Dez Mundos é a menos boa, contém algumas pérolas, e a última história um clássico, que justifica a leitura do livro como um todo.

Marcello Simão Branco