sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A noite dos insensatos, Simone Saueressig

A noite dos insensatos e outras histórias bizarras
, Simone Saueressig. Novo Hamburgo: edição de autor, 2023. 

Houve um tempo em que os textos escritos pelos autores de fandom brasileiro de fc&f eram efetivamente lidos e causavam debates furiosos nas redes sociais analógicas da época, que aconteciam nas páginas dos fanzines que também veiculavam os textos em si. 
As redes digitais pareciam, a princípio, acenar com um acirramento desse tipo de debate, mas foi uma expectativa frustrada rapidamente na medida em que os autores abandonaram as discussões para evitar os melindres em seus seguidores. O encarregado de uma grande editora, hoje já fora do mercado, chegou a anunciar uma lista negra para os autores que fizessem comentários polêmicos nas redes. 
Portanto, é de se comemorar a iniciativa da fantasista gaúcha Simone Saueressig, que publicou com seus próprios recursos a coletânea A noite dos insensatos e outras histórias bizarras, com seis contos imprevisíveis e absolutamente fora do espaço de conforto da autora. 
Conhecida por sua ficção de viéz folclórico voltada principalmente para o público juvenil, Simone investe aqui em textos de forma e natureza totalmente diversos de suas características, com um forte conteúdo humorístico, quase sempre negro, e ataques declarados a comportamentos da sociedade brasileira recente. 
A coletânea tem apenas trinta e sete páginas, mas seu conteúdo é explosivo e de alta octanagem, que levou legiões de usuários das redes sociais a mover uma verdadeira campanha contra o volume, algo que não se via no fandom desde que as redes decidiram limar Monteiro Lobato da literatura brasileira. 
O conto título abre a antologia e é o mais longo da seleta. Trata-se de uma farsa engraçadíssima, um tipo de charge literária, sobre dois alienígenas que atuam em segredo na proteção do planeta Terra e decidem fazer uma visita não autorizada à uma região ao sul do Brasil em meio a campanha eleitoral de 2022. Sendo charge, o texto exige uma certa contextualização para fazer sentido, mas acredito que os brasileiros não terão problema com relação a isso. 
"Buraco de minhoca" narra o drama de uma dona de casa que tem em sua máquina de lavar roupas a extremidade de chegada de um buraco de minhoca de onde surgem todos os pés de meias perdidos no mundo.
"Pleonasmos" é uma narrativa metalinguística que surpreende porque a autora desrespeita sua própria filosofia de escrever corretamente e comete repetidos e deliberados pleonasmos, tudo a serviço do desfecho da história. 
"Infestação" é a história mais poética do conjunto, sobre uma jovem que passa a ser incomodada pela presença cada vez mais intensa de variados tipos de insetos em sua casa, prenúncio de importantes transformações na sua vida.
Em "A reforma" temos uma narrativa de horror, uma especialidade da autora. Durante uma reforma em sua residência, o pedreiro abre um buraco na parede que se transforma em uma gigantesca bocarra faminta. 
"Tsundoku" fecha o volume com a história de uma amante dos livros que compra muito mais do que consegue ler. A certa altura, os volumes começam a brotar expontaneamente até ocuparem toda a casa, que se torna então num labirinto de livros empilhados onde as pessoas desaparecem para sempre. 
Como se vê, a autora flerta com o modelo de fantasia de Murilo Rubião e Jorge Luis Borges, com textos curtos e poderosos que não permitem que o leitor fique impassível. Com exceção do conto título, todos os demais têm protagonistas femininas em meio ao cotidiano urbano, o que certamente deve significar alguma coisa importante.
O volume foi publicado apenas em formato virtual para leitores Kindle e pode ser adquirido aqui. Contudo, quem não tiver o dispositivo poderá ler o livro no aplicativo online da própria plataforma. 
Recomendo fortemente a leitura, por ser um ponto de virada na obra da autora, pelas discussões que suscita e porque é uma leitura bastante rápida. Dessa forma, mais gente pode entrar na discussão. Afinal, "A noite dos insensatos" é ou não proselitista? Não vou responder, mas que é divertidíssimo, lá isso é.
Cesar Silva

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O Mundo de Spock

 



O Mundo de Spock (Spock´s World), Diane Duane. Tradução: Ludmila de Souza. Capa: Vagner Vargas. 192 páginas. São Paulo: Aleph, sem data [anos 1990]. Lançamento original em 1988.

 

Apesar de ser um trekker há vários anos, com uma longa militância no fandom da série de TV, nunca fui entusiasta das novelizações. Em geral, e não só para Jornada nas Estrelas (Star Trek), acredito que elas pouco ou nada acrescentam ao conteúdo original do universo ficcional criado em outro formato, no caso da televisão e o cinema. Reconheço que é uma posição um pouco radical e talvez não se aplique tanto a esta série, com um padrão médio de qualidade elevado em qualquer meio de expressão artística.

Nesse sentido, me chamou a atenção a afirmação do renomado crítico e escritor inglês de FC Adam Roberts, em seu ótimo livro A Verdadeira História da Ficção Científica (2018), de que O Mundo de Spock foi um dos melhores livros do gênero lançados em 1988.

Por si só esta afirmação seria impactante. Afinal, centenas de romances do gênero são lançados todos os anos nos EUA. E este, além do mais, nem é uma história original, mas derivada. Pois numa pesquisa rápida dos finalistas dos prêmios Hugo e Nebula daquele ano, vejo em que nível Roberts situou a história do planeta Vulcano: Do primeiro prêmio: Cyteen, C.J. Cherryh; Red Prophet, Orson Scott Card; Piratas de Dados (Islands in the Net), Bruce Sterling e Mona Lisa Overdrive, William Gibson. Do Nebula: Great Sky River, Gregory Benford; Falling Free; Louis MacMaster Bujould; Red Prophet, Orson Scott Card; Desert Cities of the Heart, Lewis Shiner; Drowning Towers, George Turner; O Livro do Novo Sol (The Urth of the New Sun), Gene Wolfe e, de novo, o romance de Gibson. Se este romance baseado no seriado se ombreia com estas obras, de fato merece ser lido.

O Mundo de Spock é ambientado no planeta Vulcano – que orbita a estrela 40 Eridani, situada a 16,5 anos-luz da Terra –, às voltas com um plebiscito polêmico que defende a saída do planeta da Federação Unida dos Planetas (FUP), após 180 anos. Ora, os vulcanos foram a segunda civilização extraterrestre contactada pelos humanos – depois dos andorianos, em meados do século XXI. Kirk, Spock e McCoy têm suas férias interrompidas para irem a Vulcano, onde são esperados para participarem dos debates prévios à votação. Também é chamado Sarek, o embaixador de Vulcano na Terra, e pai de Spock.

Mas qual a causa para uma decisão tão radical? Apesar de serem membros fundadores da FUP, historicamente, os vulcanos, de forma geral, nunca se sentiram plenamente integrados à entidade, em termos políticos e administrativos, com uma postura crítica sobre o viés imperialista dos humanos. Afora isso, sempre houve grupos minoritários em Vulcano descontentes com a presença numa entidade multiplanetária, por se considerarem superiores aos demais membros, devido ao seu passado pacifista e voltado à lógica. Assim, a convivência por um longo tempo com civilizações emotivas e agressivas, não seria racional e prejudicaria o desenvolvimento dos próprios vulcanos. Contudo, estes dois argumentos são bem desmontados, principalmente nos discursos de Kirk, McCoy e Spock. Primeiro porque os vulcanos poderiam se esforçar em defender seus pontos de vista no interior da FUP e usar de sua influência como um dos povos mais bem-sucedidos da galáxia. E em segundo, que estes pequenos grupos não eram novidade e nunca haviam se constituído como politicamente relevantes no interior da sociedade vulcana. O que havia mudado então?

A esta trama política intricada, a verdadeira riqueza da obra está nos capítulos que entremeiam esta controvérsia, com a história do planeta e do povo vulcano, desde os primórdios, em vários momentos de sua longa trajetória. De forma muito habilidosa, Diane Duane aprofunda o que é citado em muitos episódios das várias versões da série na TV, de que em sua origem os vulcanos eram muito agressivos e violentos. Viveram várias guerras, até mais terríveis que a dos próprios humanos. Inclusive, como consequência de uma delas, parte deles deixou o planeta e colonizou outro formando o Império Romulano. Isso é conhecido a partir do episódio da série clássica “Medida do Terror” (Balance of Terror”), e é só lembrado pela autora. Uma pena, pois poderia haver algum desdobramento interessante desse fato.

Em todo caso, neste contexto de guerras surge, eventualmente, um sábio que introduziu uma nova filosofia, baseado no controle das emoções e no agir de forma lógica em todas as situações, para vencer os problemas de forma racional e evitar, sobretudo, o medo do outro. Pois segundo ele, Surak, a fonte da instabilidade emocional viria na desconfiança e insegurança com relação ao semelhante. Era preciso vencer o medo, abrindo-se para o outro. Se despir de ilusões e fantasias, enxergar a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse. E a lógica seria a base de ação para tal postura de vida.

Talvez um aspecto menor da obra esteja, justamente, na justificativa concreta para a demanda pela secessão. Pois o doutor McCoy descobre, com a ajuda de Moira – uma inteligência artificial situada na Enterprise – que o movimento havia sido deflagrado por T´Pring, a noiva que havia sido prometida a Spock, mas que o havia recusado em nome de um amante, Stonn. Como visto no episódio da série clássica “Tempo de Loucura” (“Amok Time”), ela coloca Spock para duelar com Kirk, no intuito de se livrar de Spock. Ela consegue seu objetivo, mas fica frustrada quando descobre que foi enganada, já que, mesmo derrotado, Kirk só desmaiara e não morrera, como parecia, já que McCoy havia injetado no capitão o composto Triox. Então, T´Pring, agora viúva de Stonn e rica, resolve financiar os grupos xenófobos para se vingar de Spock e, por extensão, dos humanos em geral. Ora, criar um movimento político tão poderoso a partir de uma intenção de vingança? Me pareceu exagerado.

Interessante também em O Mundo de Spock é que é mostrado que a lógica não é integralmente seguida pelos vulcanos em geral, o que eles chamam de o´thia. Na prática, muitos deles continuam a ter um comportamento próximo do humano, mas, ao que parece, dissimulam melhor, além de encampados com uma verdadeira mística em torno do que são esse povo estranho e fascinante. A estrutura social de Vulcano se constitui de Casas que unem famílias, em termos de história, descendência e alianças políticas e econômicas. Algumas das mais poderosas lideradas por matriarcas, como a da lendária T´Pal, descendente distante de Surak, e mentora de Sarek, o que, por extensão, nos leva até Spock. A cultura dos vulcanos, tal como desenvolvida, pode ser vista, de forma aproximada, grosso modo, com aspectos da filosofia hinduísta e da sociabilidade japonesa, também marcada, historicamente, por um certo desprendimento estoicista.

O Mundo de Spock foi o segundo escrito por Diane Duane, escritora norte-americana, com mais prestígio em séries originais de fantasia. Apesar disso, ela escreveu nove romances baseados na criação de Gene Roddenberry (1921-1991), e além deste também saiu no Brasil, Meu Inimigo, Meu Aliado (My Enemy, My Ally; 1984). Ambos, pela editora Aleph que, nos anos 1990, publicou, salvo engano, 24 novelizações, além de bons livros de referência sobre a série.

Não li os demais, mas arrisco a dizer que O Mundo de Spock deve ser um dos melhores – se não o melhor –, e Adam Roberts não deve estar errado em sua impactante afirmação. Afinal, é uma história que mostra com detalhes nunca mostrados, nem de perto nas várias séries televisivas, a complexidade social, cultural e filosófica de uma das civilizações alienígenas mais conhecidas e interessantes da FC. Para o trekker é obrigatório, mas deve interessar também quem curte cultura popular e ao fã e leitor de FC em geral. Pois, ao menos nesse caso, é uma novelização que acrescenta um conteúdo de valor à compreensão do universo ficcional.

Marcello Simão Branco

 

sábado, 19 de agosto de 2023

Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias

Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias
, Marco Rigobelli, org. 176 páginas. São Paulo: Draco, 2014. 

Ficções fantásticas com temas esportivos não são comuns sequer nos mercados mais fortes do gênero, nem mesmo em outras artes além da literatura. Quadrinhos e cinema têm poucos exemplos, embora haja mais oferta de esportes fantásticos nos jogos eletrônicos, por motivos evidentes. Mas é curioso que exista tão pouco na literatura de ficção fantástica, quando é patente que é nela que o pioneirismo é geralmente praticado em todos os temas. 
No Brasil, até o final do século passado, só existia uma única antologia de contos fantásticos sobre esportes, o livro Outras copas, outros mundos, organizado por Marcello Simão Branco e publicado pela editora-fã Ano-Luz em 1998. Mais que uma seleta de contos esportivos, esse livro propunha que todos os contos tratassem especificamente de futebol, o esporte mais apreciado pelos brasileiros que, curiosamente, não tinha nenhum texto no gênero, nem aqui nem em qualquer outra parte do mundo. A experiência foi muito bem-sucedida, e dela emergiu ainda o importante projeto Intempol de Octávio Aragão, derivado de um dos textos publicados ali. Mas foi um péssimo agouro para o desempenho do esporte: naquele ano, o Brasil perdeu o Copa do Mundo na França num jogo algo vexatório contra a poderosa seleção francesa comandada por Zinedine Zidane, com os craques Ronaldo Fenômeno em pânico no campo, e Edmundo no banco. 
Talvez motivada pela nova edição brasileira da Copa do Mundo, a editora-fã paulista Draco decidiu retomar a ideia e apresentou em 2014 uma remontagem da antologia de 1998 sob o título Futebol: Histórias fantásticas de glória, paixão e vitórias, organizada por Marco Rigobelli, republicando alguns dos textos vistos naquela, somados a inéditos, num total de dez contos, incluindo um do próprio organizador. 
Dos autores republicados, Gerson Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi comparecem respectivamente com "Pátria de chuteiras" e "Sob o signo de Xoth", justamente os textos presentes na antologia de 1998. O primeiro narra a final de uma copa do mundo na realidade alternativa favorita do autor, na qual a república de Palmares, treinada por um ex-craque da seleção brasileira, disputa com o Brasil não apenas aquele campeonato, mas a hegemonia do esporte. Já o excelente texto de Orsi envereda pelo horror, política e corrupção na fictícia cidade de Açaraí. Fábio Fernandes, que também participou da antologia de 1998, aparece com o inédito "2010: O ano em que faremos contrato", um texto curto na forma de uma entrevista com um boleiro que participou de uma partida entre atletas terrestres e alienígenas na qual o que realmente estava em jogo era o intercâmbio de tecnologia. Esse conto acabou sendo profético, pois a seleção terrestre levou o sonoro chocolate de treze a zero. Voltaremos a isso mais adiante. 
Os demais autores comparecem com contos inéditos. Em "Boost", de Vinicius Lisboa, o futebol do futuro é praticado por atletas com reforço químico e o esporte se torna uma arena de violência explícita e morte, enquanto que em "O último grande craque", de Marcel Breton, são as próteses que desequilibram o espetáculo. Ambos os textos replicam o formato de entrevista visto no conto de Fernandes, o que torna a leitura um tanto enfadonha pela redundância da forma. 
"Jogo puro", de Diego Matioli, também começa com uma entrevista, mas ela só dura alguns parágrafos, para depois adotar uma narrativa mais tradicional, em terceira pessoa. O conto tem laivos apocalípticos na medida que acontece após o arrebatamento bíblico, além da presença de demônios vivendo em meio à humanidade. Também aparecem aqui alguns tipos de "melhorias" nos atletas, desta vez mais para superpoderes mutantes, mas o autor tem o mérito de escapar muito bem das armadilhas narrativas criadas pelos contos anteriores. 
"O último gol de Tião Canhoto", de Fabio Baptista, narra a história de um insuspeito craque do futebol varzeano que só atingia o estado de excelência quando sua amada Ritinha estava na torcida, uma mulher descrita como a mais feia do mundo. O conto não é ruim, mas a crueldade com que o autor trata da aparência da mulher cria tal constrangimento no leitor que eu não me surpreenderia se as leitoras protestassem fortemente contra ele. Fica aqui o meu protesto pessoal.
Sid Castro traz um sopro de ar fresco nesta sequência de histórias pesadas com o despretensioso "O rei do futebol". Não se trata do Pelé, mas de Arthur Friedenreich, que atuou no início da história do esporte no país, sendo o primeiro a atingir a marca dos mil gols convertidos na carreira. Outro diferencial do conto é a forma, apresentado como se fosse um jogo, com preliminar, primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e pós-jogo no vestiário. O conto tem uma ambientação steampunk e traz até algumas referências históricas muito bem-vindas para os fãs do esporte. Não sei se são verdades, mas se não forem, deveriam ser.
O melhor texto da antologia é "O último jogo", de Rodrigo Van Kampen, conhecido editor da extinta revista Trasgo. Uma pérola rara da ficção fantástica brasileira, na linha do realismo fantástico latino americano. Conta a história de um grupo de meninos que amam jogar bola no campinho da vila, que nem é um campo de verdade, pois tem árvores pelo meio e um formato desengonçado mas, para eles, é exatamente como um grande estádio. Ali eles se divertem fantasiando campeonatos nacionais e internacionais, mas a coisa fica mesmo séria quando, numa certa manhã, surge no campinho uma árvore antiga e enorme, e dela saem assustadores bichos-papões que desafiam os garotos para uma partida decisiva: se os meninos vencerem, eles vão embora mas, se perderem, serão devorados ali mesmo. Maravilhamento poderoso para encher de lágrimas os olhos de quem um dia fantasiou ser um craque da bola num campinho de terra. 
Fecha a seleção o texto "Nos gramados em cinzas da arena do abismo", de autoria do próprio organizador, Marco Rigobelli. Conta a história de um jogador que deve o sucesso de sua carreira a um pacto com o diabo. Mas, antes do fim do acordo, ele é convocado pelo cão para uma partida nas profundezas do inferno, com a promessa de, caso vença, ter sua alma libertada do contrato de perdição eterna. A ideia geral não é muito diferente da do conto anterior, mas não repete nem a ambientação, nem o estilo, nem o maravilhamento. Num erro de revisão, o autor chega a trocar o nome do protagonista. 
Publicada em meio a euforia de um tempo em que tudo parecia dar certo no Brasil, esta antologia acabou, mais uma vez, por chancelar o fracasso da seleção brasileira, desta vez com o vergonhoso sete a um contra a Alemanha na semifinal. Mas o que mais perturba é o deliberado apagamento da antologia de 1998, da qual o organizador até emprestou contos mas não se dignou a sequer citar no prefácio, sinal claro da desagregação pelo qual o fandom passou e ainda passa ao longo deste século. Não custava reconhecer o pioneirismo de Outras copas, outros mundos, e isso acrescentaria dignidade ao trabalho. Sem isso, tornou-se uma antologia oportunista, esquecida em meio aos fracassos do futebol brasileiro. 
Mas é sempre melhor olhar pelo ângulo favorável: valeu pelos bons textos publicados e por acrescentar mais alguns contos ao árido ambiente da fc&f esportiva nacional. 
— Cesar Silva

terça-feira, 15 de agosto de 2023

O dilema de Utterson

por Miguel Carqueija

Quando terminou de ler os dois relatos — o do amigo Dr. Lanyon e o do Dr. Henry Jekyll — o advogado Utterson estava suando frio, tomado de um pavor que nunca antes sentira em sua vida.

Jamais poderia ter imaginado a verdade: que o misterioso Edward Hyde era o mesmíssimo Dr. Jekyll, num desdobramento de personalidades que incluía a mudança da aparência corporal. Portanto, se Hyde morreu, Utterson também estava morto e o seu corpo jamais seria encontrado, pois o que restava era o corpo de Hyde.

Mas como podia ser isso? E os átomos, ou as células, a mais ou a menos?

As dificuldades científicas para acreditar naquilo tudo esbarravam, é claro, na lógica dos dois relatos, que desvendavam o mistério da relação Jekyll-Hyde. Porém, tudo isso ia para segundo plano diante do fator que se lhe afigurava mais grave daquele imbróglio. Ao se retirar, pelas dez da noite, da residência do Dr. Jekyll, o advogado prometera ao mordomo Poole que retornaria pela meia-noite, para então chamarem a polícia. Afinal, o dono da casa achava-se desaparecido e havia o cadáver de um suicida no laboratório.

O problema era justamente esse.

Em primeiro lugar a polícia é racionalista demais para acreditar que um ser humano se transforme em outra pessoa. Isso é coisa de contos de fadas, não da vida real. Por consequência os dois relatos não seriam aceitos mesmo se mostrados e examinados. Nenhum tribunal tampouco iria aceitar que Jekyll se transformasse em Hyde e vice-versa. Acreditar em coisas fantásticas é tabu.

Nem a imprensa daria crédito.

Assim, Utterson só conseguia enxergar um resultado para aquela tragédia: ele e Poole seriam responsabilizados criminalmente pelo desaparecimento e possível morte do Dr. Henry Jekyll. E poderiam ambos acabar no patíbulo.

Não adiantava fugir. O pesadelo estava apenas começando e só lhe restava erguer-se e retornar à residência de seu falecido amigo.

Cobrindo o rosto com as mãos, em desespero de causa, Utterson murmurou:

— O que eu faço agora, meu Deus?

Rio de Janeiro, 11 a 19 de agosto de 2022.

 

NOTA: Reli recentemente O médico e o monstro, ou, na tradução do original, O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson. E uma coisa que me intriga é a maneira inconclusa com que o romance termina, apenas com as transcrições dos dois documentos — do Dr. Lanyon e do Dr. Jekyll — esclarecendo o mistério. Fica em suspenso, portanto, a atitude posterior do Dr. Utterson, pois caberia a ele informar à polícia do suicídio do Sr. Hyde e desaparecimento do Dr. Jekyll. Mas aqui ocorre um terrível impasse, omitido por Stevenson e que eu me limito a mostrar sem buscar uma solução. Como explicar à polícia algo que a polícia não iria aceitar, mesmo com provas?

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Conto de Fadas

 



Conto de Fadas (Fairy Tale), Stephen King. Tradução: Regiane Winarski. Capa: Will Staehle. Ilustrações internas: Gabriel Rodriguez (capítulos ímpares e epílogo) e Nicolas Delort (capítulos pares). 623 páginas. Rio de Janeiro: Suma, 2022.

 

Talvez este seja o primeiro livro de Stephen King que eu comprei e li quase ao mesmo tempo do seu lançamento nos EUA. Isso porque a Suma, selo da Editora Schwarcz, foi mais rápida do que o habitual e o lançou no Brasil praticamente junto com o lançamento norte-americano. Outra curiosidade, que também talvez não interesse a você, leitor dessa resenha, é que esse foi o último livro que eu comprei na finada Livraria Cultura, em sua sede da capital paulista, duas semanas antes de sua falência. E por acaso, pois o livro, de forma estranha, estava esquecido num canto numa seção de livros usados da livraria, e com a metade do seu verdadeiro preço de capa.

Mas eu compraria o livro pelo valor que fosse. Afinal, é de Stephen King, um dos meus autores favoritos e do qual acompanho praticamente toda a sua carreira, desde meados dos anos 1970. E não preciso dizer que, claro, gostei demais da leitura, como pretendo comentar a seguir.

Conto de Fadas não é uma história de horror tradicional, de cunho mais sobrenatural, como na primeira fase de sua carreira, ou no estilo dark fantasy, que o tem caracterizado desde, pelos menos, o fim dos anos 1990. Contudo, o sobrenatural é explorado da perspectiva da magia. Sim, é um romance mais próximo de ser identificado com o gênero fantasia, embora de uma forma bem peculiar em se tratando de King.

Após a morte súbita e violenta da mãe, a vida do adolescente Charles Reade entra em crise. Não apenas pelo fato óbvio da perda, mas porque o pai se torna um alcoólatra. Charles meio que se perde, cometendo várias pequenas maldades, ao lado de um amigo de infância, de caráter bem questionável. Como, por exemplo, roubar as muletas de um idoso, deixando-o sem ter como andar. Em desespero pelo pai estar desempregado e cheio de dívidas, Charles faz uma promessa pessoal “ao seu Deus”, de que se ele se redimisse, seu pai reencontraria um rumo na vida.

Então, de forma fortuita, certo dia Charles ouve os latidos de uma velha cadela, ao passar pela casa mais estranha da pequena cidade de Sycamore, em Illinois, e ao pular o portão, vê que o dono, o solitário Sr. Bowditch caíra da escada e quebrara a perna. Charles o socorre e, conforme os dias passam, não só visita o ancião no hospital, como se envolve cada vez mais com ele, passando a ser o seu cuidador, depois do seu retorno à casa. Ao mesmo tempo seu pai faz terapia nos Alcóolicos Anônimos – graças à ajuda de um amigo –, arruma um emprego e, um pouco depois, abre seu próprio negócio. Ao que parece, o garoto Charles havia realizado sua promessa ao cuidar de Bowditch e se afeiçoar intensamente à Radar, a pastora alemã dele. Mas a verdadeira virada em sua vida ocorre quando ele descobre a fonte da boa vida de Bowditch: um cofre lotado com pequenas bolas de ouro. De onde teriam vindo?

Bowditch hesita em contar, e só o faz por meio de uma gravação, pouco antes de sofrer um ataque cardíaco e morrer. Mas Charles já desconfiava de onde vinham, pois nos fundos da casa havia um barracão com barulhos estranhos. Ele resolve investigar e descobre a entrada de um outro mundo. Do barracão se desce uma longa escada em espiral até chegar a um lugar com estrelas no céu e duas luas. Fascinado e assustado, Charles vai lá uma vez e resolve ocultar o segredo, mas por causa da Radar decide voltar para tentar salvá-la de suas muitas doenças que poderiam levá-la à morte. Aqui é interessante notar que King usa do recurso tradicional da fantasia de portas ou passagens que se escondem em ambientes familiares. O próprio autor já havia usado esse recurso antes – numa história de ficção científica – no seu monumental Novembro de 1963, quando o protagonista descobre uma porta numa lanchonete que o leva de volta aos anos 1960, em meio ao contexto que levou ao assassinato do presidente John Kennedy.

Charles e Radar, então, adentram no mundo chamado de Empis. Um reino movido por magia e não tecnologia e habitado por pessoas e animais fantásticos. Mas Empis é um mundo danado. A vegetação é rala e tomada por pragas, os animais são deficientes ou de tamanho exagerado, e a maioria das pessoas têm a pele cinzenta e deformações horríveis pelo corpo. Mas Charles conhece algumas pessoas adoráveis, como Dora, a consertadora de sapatos, e membros de uma antiga família real que foi destronada. Ele quer apenas cumprir sua missão e encontrar o relógio do sol, que vai permitir que Radar não só seja curada, mas rejuvenescida, seguindo a orientação do velho Bowditch que, ao passar por ele, viveu mais de um século, além de ter conseguido sua fortuna em ouro. Mas no caminho, a jornada de Charles vai se tornando muito perigosa, pois ele descobre que as noites são tomadas por temíveis lobos e os chamados soldados noturnos, zumbis que emitem raios de suas armas, entre outras monstruosidades deste mundo amaldiçoado.

Charles cumpre sua missão original, mas ao ser aprisionado na cidade real de Lilimar irá viver sua verdadeira aventura por sua vida e a própria segurança de nosso mundo, já que ele descobre, em meio a torturas e prisão num calabouço há centenas de metros abaixo da superfície, que o que causou o Mal a Empis foi a traição de Elder, o filho mais novo da família real de Gallien, após se aliar com o demônio que habita o Poço Profundo, que lhe concedeu poderes que o tornaram o novo rei, nem que com isso, matasse a maior parte da nobreza e levasse mortes e destruição a um mundo antes belo e próspero.

Como o leitor já deve ter notado, estamos diante de um enredo de conto de fadas, subgênero da fantasia, que trabalha certas características, como a jornada de um herói improvável, um reino em desgraça, seres míticos, poderes sobrenaturais e muita magia. King trabalha todos esses elementos com muita destreza, utilizando várias referências sobre histórias parecidas, e apresentando ao longo da narrativa várias associações com clássicos de fundo infantil, como João e o Pé de Feijão (1807), de Benjamin Tabart, e adultos, como Algo Sinistro Vem Por Aí (1962), de Ray Bradbury, além da vinculação com os Antigos de H.P. Lovecraft, na figura de Gogmagog, o monstro supremo que estaria por trás do mal liberado sobre Empis.

Nesse sentido, e pela própria autoconsciência do protagonista, King faz um experimento literário que poderia chamar de metaficcional. Ou seja, uma ficção própria, mas que dialoga e se referencia com outras, mas sem deixar de ter uma voz própria, dada a sua intensidade e habilidade narrativa. E este diálogo também ocorre por meio da problematização do próprio conteúdo do subgênero, ao recolocá-lo numa vertente mais horrorífica, como originalmente as histórias deste filão se desenvolviam, até serem modificadas para serem lidas por crianças num ambiente familiar, um movimento de revisionismo literário que tomou a cena no final do século XIX.

A jornada de Charles Reade, mesmo contada de forma retrospectiva e em primeira pessoa, não faz com que deixemos de sentir aflição e temor por seu destino e de Radar. A cada página virada, ambos se veem em situações de perigo e, ao mesmo tempo, estranhos encantamentos. No fundo é uma história de expiação, mais que de redenção, num adolescente que foi obrigado a amadurecer mais rápido do que deveria, em virtude dos infortúnios súbitos de sua vida.

Conto de Fadas é uma das histórias mais à vontade de King. Mas isso não a torna menos impactante. O sentimento é talvez de emoção, mais pela aventura do que pelo terror, embora, como dito, a trama seja norteada pelo malefício causado ao mundo de Empis. Que, afinal, o que seria? Um mundo paralelo ao nosso? Um portal que leva a outro ponto do Universo? King não explora muito essas premissas, se concentrando mais na construção do mundo em si e suas próprias regras e valores.

Em suma, esta é a história de conto de fadas particular de King, e em que ele trabalha e explora vários dos conceitos do subgênero. Mas que, sobretudo, proporciona ao leitor, uma das experiências de entretenimento mais marcantes de redenção e arrebatamento. Que livro estranho e fascinante.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 18 de julho de 2023

Prêmio Le Blanc 2023

No dia 14 de julho, em evento presencial no Sesc São João de Meriti, no Rio de Janeiro, foram anunciados os vencedores da edição de 2023 do Prêmio Le Blanc, voltado a apontar os melhores do ano anterior em animação, jogos, histórias em quadrinhos e literatura fantástica. 
A apuração foi realizada em duas etapas: uma consulta popular pela internet indicou três finalistas em cada categoria, dentre os quais o ganhador foi definido por um juri de especialistas. 
Os vencedores de 2023 são:
Romance: A roda de Deus, Leonel Caldela, Jambô.
Coletânea: Assombros, Zé Wellington, Draco.
História em quadrinhos independente: Ovelha negra, Carlos Felipe Figueiras & B. Horn, Tapas.
História em quadrinhos: Sussurros do caos rastejante, Fábio Yabu & Fred Rubim, Jambô.
Série de tiras: Edifício Celeste, Thiago Krening.
Série de animação: Turma da Mônica, Cartoon Network, Mauricio de Sousa Produções & Split Studio.
Curta animado: Coelhitos e gambazitas, Thomas Larson.
Curta animado independente: Eu nunca contei a ninguém, Douglas Duan.
Longa animado: A lasanha assassina, Ale McHaddo.
Animação publicitária: Abertura de novela Cara e Coragem, Leonardo Fleury & Luciana Jordão.
Game eletrônico: Fobia – St. Dinfna hotel, Pulsatrix Studios.
RPG: O cordel do reino do sol encantado, Pedro Borges, New Order.
Criado em 2018, o Prêmio Le Blanc é organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas (PPGMC) da Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF). 
O nome é uma homenagem à André LeBlanc (1921-1998), haitiano radicado no Brasil com uma extensa e importante obra no campo da ilustração editorial.
A relação com todos os finalistas de cada categoria pode ser conferida aqui.

domingo, 16 de julho de 2023

Território Lovecraft, Matt Ruff

Território Lovecraft
(Lovecraft country), Matt Ruff. Tradução de Thais Paiva, 354 páginas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

Há algum tempo, mais exatamente em 2017, o escritor e tradutor Fábio Fernandes, em seu podcast Terra Incógnita, publicou uma série de episódios sobre uma onda neolovecraftiana na fc&f americana, e um dos títulos que destacou foi justamente Lovecraft country. Foi a primeira vez em que ouvi falar do livro e de Matt Ruff, seu autor. Fernandes teceu efusivos elogios à obra e recomendou que os editores brasileiros dessem uma chance a ele.
É claro que não foi o singelo podcast que Fernandes, ainda que se considere a significativa influência de seu editor no fandom, que levou a editora Intrínseca a publicar o livro no Brasil. Isso só aconteceu quando a HBO Max anunciou a produção de uma série inspirada no livro, o que é um apelo irresistível aos editores brasileiros quando se trata de livros de fc&f. Por isso, não foi surpresa quando o livro apareceu nas lojas virtuais, em edição de luxo e capa dura. Não que o título não mereça: provavelmente foi o melhor livro de fc&f publicado no país em 2020 e certamente um dos cinco melhores da segunda década deste século.
O mais interessante é que não se trata de um livro lovecraftiano, como seria de se imaginar. Os escritores profissionais sabem muito bem que qualquer autor fã saberia imitar o estilo démodé de Lovecraft. Trata-se de um texto enxuto e potente, mas a leitura é sofrida por conta do tema; o estilo é bastante contemporâneo, ainda que toda a ação esteja localizada em algum momento dos anos 1950. Trata-se de um romance fix-up, formado por contos e novelas autônomos possivelmente publicados em separado, reunidos por um arco geral que lhes dá unidade dramática.
Conta a história de uma família de homens e mulheres pretos num Estados Unidos da América em que o racismo e a segregação racial são praticados com anuência do poder público. Um dos veteranos, chamado de George, mantém a publicação de uma espécie de fanzine turístico, o Guia de Viagem do Negro Precavido, para que as pessoas pretas possam transitar pelo país com alguma segurança. Para isso, viaja continuamente e enfrenta os perigos de caminhos ainda não experimentados, de modo a registrar os lugares em que o povo preto pode se alimentar e se hospedar sem o risco de ser assassinado. Oito história e um epílogo compõem o volume, cada uma focaliza um dos membro da família, embora os demais também participem com maior ou menor significado.
"Território Lovecraft" é a novela que abre o volume. Cumpre com louvor a apresentação dos personagens e do ambiente geral. Nela, acompanhamos Atticus, um jovem que retorna sua cidade natal e encontra Montrose, a quem chama de pai, desaparecido. Acompanhado de George e da jovem Letitia, embarcam no velho woody da família com destino ao condado de Ardhan, em pelo "Território Lovecraft", uma região perigosa para os negros. Lá, se depararam com Caleb Braithwhite, jovem branco muito misterioso, além de um grupo de homens brancos que praticam uma espécie de culto, a qual chamam de "Filosofia Natural", cujo ritual exige a participação de um dos nossos ousados viajantes e influirá no futuro de toda a família.
"A casa assombrada dos sonhos" focaliza as irmãs Letitia e Ruby, que compram por uma bagatela um antigo casarão no qual pretendem implantar uma pousada para negros. O problema é que o casarão está localizado em um bairro majoritariamente habitado por brancos racistas. E não só: a mansão era, no passado, residência de Hiran Winthrop, figurão da Filosofia Natural cujo fantasma nada amistoso assombra o lugar.
"O livro de Abdulah" é uma espetacular aventura ao estilo de Indiana Jones. Caleb Braithwhite está de posse do Livro dos Dias, que registra a vida dos membros da família durante o período da escravidão e é um documento importante para que eles possam obter uma polpuda indenização. Mas Caleb só o devolverá em troca do Livro dos Nomes, compêndio mágico que está escondido no subterrâneo do Museu de História Natural. Atticus, George, Montrose e alguns amigos embarcam nessa perigosa missão sobrenatural para garantir a devolução do tesouro roubado da família.
"Hyppolita perturba o universo" é a melhor história do volume, na minha opinião. E isso é um mérito enorme porque todas as histórias do livro são excelentes. Hippolita, a mãe de Letitia e Ruby, é uma mulher de vida agitada e de muita personalidade. É astrônoma, viaja sozinha e é colaboradora do Guia. Seu passatempo favorito é visitar observatórios astronômicos pelos EUA, principalmente aqueles em que não poderia entrar. E o observatório que ela quer invadir desta vez fica numa propriedade particular pertencente a Hiran Winthrop (sim, o fantasma da mansão de Letitia). Ela vai descobrir, da maneira mais surpreendente possível, que aquele não é um observatório como os demais, pois ele mostra as estrelas "bem" de perto.
"No ano-novo, Ruby acordou branca". Esta é a frase que abre o conto "Jekil em Hyde Park", no qual Ruby consegue realizar seu maior desejo, que é arrumar emprego numa loja de departamentos muito elegante. Mas ela só consegue isso graças a um feitiço que o sedutor Caleb Braithwhite lhe ensina.
"A casa Narrow" é uma história de viagem no tempo nada convencional, na qual Montrose é convencido por Braithwhite a recuperar cadernos antigos com anotações de Hiran Winthrop que aparentemente já foram destruídos. Para isso, ele terá de fazer uma pequena viagem a casa de um certo Sr. Narrow.
"Horace e o boneco do diabo" é de longe o texto mais assustador do volume, no qual Horace, o membro mais caçula da família, tem de enfrentar uma maldição mortal que Braithwhite lança sobre ele.
"A marca de Caim" apresenta o desfecho emocionante do combate entre os nossos protagonistas e o aparentemente invencível Braithwhite e seus asseclas, com muita ação, violência, tiroteios e magia negra, é claro.
O texto está repleto de referências e citações ao universo nerd, a literatura fantástica e até aos jogos de RPG, que não são gratuitas nem derrubam a suspensão da incredibilidade como geralmente ocorre nesses casos. Pelo contrário, em Território Lovecraft, todas as citações são elementos fundamentais das histórias, que não poderiam ser contadas da mesma forma sem elas.
Comparando-se o texto original com a adaptação produzida pela HBO Max, é possível dizer que esta é bastante fiel ao romance mas está longe de ter a mesma qualidade. O livro de Ruff é muito superior à versão audiovisual, que tomou liberdades para outra conclusão, alterou personagens, fundiu histórias, ignorou outras e inventou coisas que nem estão no livro. Algumas das melhores narrativas do original ficaram de fora, outras foram tão alteradas que mal é possível reconhecê-las, além de colocar o pobre Atticus numa situação ambígua e frágil que nada tem a ver com o personagem original. Sem falar na limagem das deliciosas citações, bem como da relevante questão metalinguística, proposta logo às primeiras páginas, sobre o modo contraditório como uma pessoa preta se relaciona com a ficção científica, gênero de tradição evidentemente racista.
Recomendo a leitura do texto original de Ruff. Quem só viu o seriado não recebeu o melhor de Território Lovecraft.
Cesar Silva