domingo, 3 de dezembro de 2023

Depois da Bomba

 Depois da Bomba (Dr. Bloodmoney, or How we Got Along after the Bomb), Philip K. Dick. Tradução: Eurico Fonseca. Capa: A. Pedro. 248 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 309, sem data. Lançamento original em 1965.

 


O título do romance faz referência ao dr. Bruno Bluthgeld, cientista alemão que trabalha para o Exército dos EUA, e que se traduz como bloodmoney em inglês. Pois é da ação e consequência desse personagem que a trama se desenrola. No passado, presente e futuro. Isso porque em 1972, Bluthgeld esteve à frente de um teste nuclear realizado na atmosfera que redundou num fracasso catastrófico: uma enorme onda radioativa se espalhou pelos EUA, trazendo morte e doenças a milhares de pessoas.

Em 1981 Bluthgeld procura viver de forma anônima em São Francisco, com o rosto envolto numa máscara que esconde cicatrizes e com uma paranoia cada vez mais doentia, por se corroer pelo mal que causou e pelo qual é odiado pela maioria das pessoas. Ele procura ajuda de um psicanalista, o Dr. Stokstill, que trabalha em frente a uma loja de venda e conserto de aparelhos de TV. Onde está o afro-americano Stuart McConchie e também, mais recentemente, Hoppy Harrington, um deficiente que não tem braços e pernas – decorrente de sua mãe ter ingerido talidomida em sua gravidez –, mas que é muito inteligente e se move com uma espécie de cadeira mecânica altamente sofisticada.

Dick expõe, inicialmente, o contexto por meio desses personagens para, de súbito, jogar o leitor no holocausto nuclear. Sim, os EUA sofrem um ataque maciço, provavelmente da União Soviética, e tem o país praticamente destruído. A cidade onde os três vivem é destruída, e o restante da história se passa no que restou da Califórnia, onde alguns agrupamentos urbanos sobreviveram de forma precária – sem eletricidade, água, combustível e pouca comida –, e no interior foram criadas algumas comunidades relativamente autônomas e isoladas umas das outras, com suas próprias leis e formas de organização do poder.

Sete anos depois, em 1988, reencontramos Bluthgeld, Harrington e McConchie. O primeiro isolado num sítio onde cria ovelhas, o segundo integrado à comunidade de West Marin e o terceiro vivendo de bicos na pequena cidade de Berkeley. A eles somos apresentados a outros personagens, não menos que memoráveis em sua estranheza e humanidade como, por exemplo, a menina Edie Keller, que, devido a uma mutação genética provocada pelo ataque nuclear, leva em seu ventre o feto do irmão Bill, numa aliança siamesa, e no qual ele se comunica telepaticamente com ela, e com os mortos; e o astronauta Walter Dangerfield, que vive numa nave em órbita sozinho, já que no mesmo dia que partiria para Marte com sua esposa, foi surpreendido pelo ataque nuclear. Após a morte dela, virou uma espécie de disc jóquei, se comunicando com as comunidades na superfície por meio de transmissões radiofônicas, onde veicula músicas e leituras de romances.

Mas este conjunto singular de personagens se situa num contexto pós-apocalíptico, por vezes crível e por vezes estranho, embora não inteiramente impossível. Isso porque nesse novo mundo, os efeitos radioativos possibilitaram a emergência de inteligência e capacidade de comunicação com os humanos por parte de cães e gatos, além de ratos com inacreditáveis capacidades musicais e matemáticas. Além disso, várias pessoas apresentam diferentes tipos de mutações e deficiências. Contudo, os sobreviventes permaneceram na superfície da Terra, pelo menos após vários viverem nos primeiros anos em espaços subterrâneos, como fez McConchie.

Dick procura mostrar não propriamente uma tentativa de reconstrução social, mas sobretudo de sobrevivência e adaptação a este novo mundo. Com isso, passa a centrar a narrativa principalmente na comunidade de West Marin, para onde converge os personagens já citados e outros que lá vivem. Mas nem todos realmente se adaptam a esta nova realidade. Ao invés, e de forma gradativa, se deterioram psicologicamente, tornando-se uma ameaça para os demais.




O dr. Bluthgeld é paranoico e acha que vai ser descoberto e assassinado, principalmente por qualquer pessoa nova que apareça em West Marin. Um professor chega a ser executado pela comunidade quando se descobre que pretendia realmente matá-lo. Mas ele, de fato, passa a imaginar que provocou o próprio holocausto e precisa provocar outro para uma nova “purificação” da humanidade. Louco ou não, o fato é que seus poderes imaginários passam a ter alguma espécie de realidade, quando tempestades terríveis se abatem sobre West Marin. Isso provoca a reação de Hoppy Harrington, um sujeito tão habilidoso manualmente, a despeito – ou por causa – de sua debilidade, quanto ressentido pelas humilhações do passado. Com crescente influência e megalomania imagina-se como a salvação de uma possível nova danação.

Um sentimento que vai se tornando cada vez mais nítido com o avançar da leitura é de irrealidade. Como se fossemos colocados dentro de um sonho que, aparentemente, não é nosso, mas que não conseguimos nos desvencilhar. Como bem apontou David Pringle, no livro Science Fiction: The 100 Best Novels (1985) – que incluiu este romance de Dick –, é como se o leitor sonhasse o sonho de outro, e dentro do seu contexto particular, se tornasse crível, mesmo com situações cada vez mais inverossímeis.

Dick apresentou dois títulos iniciais para Depois da Bomba: In Earth´s Diurnal Course e A Terran Odissey, mas acabou por concordar com a sugestão do prestigioso editor Donald Wollheim (1914-1990), numa alusão ao filme de sucesso da época, Doutor Fantástico (Dr. Strangelove or: How I Learned to StopWorrying and Love the Bomb; 1964), de Stanley Kubrick. E embora não seja intencional, pode ser visto como uma instigante especulação sobre as consequências de um mundo devastado pela guerra insanamente desejada pelo general louco interpretado por George C. Scott.

É a contribuição de Dick ao tema do pós-apocalipse nuclear, talvez o mais abordado pela FC durante a segunda metade do século XX, dado o grau de pesadelo próximo que se instaurou não só nos EUA, mas, em todo o mundo. Dick o faz à sua maneira, expondo principalmente, a desesperança e perturbação das pessoas, com efeitos também físicos sobre muitos deles. Vários personagens são mesmo passíveis de certa comiseração, num futuro que perdeu o sentido e, no qual, inclusive, o suicídio não provoque mais tanta perplexidade ou repúdio.

Depois da Bomba foi finalista do Prêmio Nebula em 1965, escrito no período tematicamente mais maduro de Philip K. Dick, a década de 1960, ao lado de outros romances tão misteriosos quanto fascinantes como, por exemplo, O Homem do Castelo Alto (The Man in the High Castle; 1962), Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (The Three Stigmata of Palmer Eldritch; 1965), O Caçador de Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep; 1968) e Ubik (Ubik; 1969). Ora, todos eles foram publicados no Brasil, menos Depois da Bomba – que recebeu, inclusive uma segunda edição em Portugal, pela coleção Antecipação número 3, com o título de Os Sobreviventes –, numa ausência que chega a ser espantosa, dada sua relevância para a FC e para o conjunto da obra do autor.

Marcello Simão Branco

 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

De ferro e de sal, Simone Saueressig

De ferro e de sal
, Simone Saueressig. 608 páginas. Novo Hamburgo: edição de autor, 2018. Ebook.

Asanegra é um adolescente em idade de ser vendido, por isso seu pai o leva até o mercado central da cidade fortificada de Brutmir, onde poderá encontrar o comprador certo para encaminhar o filho a uma profissão respeitável e lucrativa. E esse comprador acaba sendo o ferreiro Daskos que não tem filhos homens e pressente que precisa passar suas habilidades a um aprendiz. 
Satisfeito com o dinheiro que irá saldar suas muitas dívidas, o homem deixa o filho com Daskos e volta para sua terra, na região rural do distrito. Asanegra também está animado, pois escapou de ser comprado por algum tarado, o que não é incomum nesse tipo de negócio. O que ele não imaginava é que Daskos na verdade não é um homem sem filhos. Ele tem uma filha, a rabujenta Orí, que sempre quis conhecer a Forja onde o pai trabalha mas nunca pode porque é tabu que mulheres entrem lá. 
A Forja é uma instituição importante para Brutmir, uma vez que é onde se fabricam as armas e as barreiras de defesa da cidade contra o ataque do povo élfico, inimigos figadais dos homens desde que estes lhes tomaram a Torre de Amálgama, edificação que fica no centro de Brutmir e é sagrada para os elfos, que juraram retomá-la. Todo o trabalho na Forja só é possível com a ajuda dos Servidores, demônios domesticados que fazem a função de fornalhas de bancada, aquecendo o metal para ser modelado pelos ferreiros. Acontece que os Servidores enlouquecem de desejo se sentirem o cheiro das mulheres humanas e, no gozo do prazer, acabam por matá-las numa explosão autodestrutiva. 
Desse modo, a vida de Asanegra na casa de Daskos torna-se um inferno com as provocações e maldades de Orí, enciumada pelo privilégio do garoto em entrar na Forja e por ele ter a atenção do pai que, até então, só a ela pertencia.
Em outra parte da cidade, vive o estranho Sivo, homem poderoso e cheio de mistérios, chamado por todos de o Homem Santo. Sivo não é uma boa pessoa, pois está até o pescoço de ódio e ressentimento, e seu único desejo é destruir Brutmir e tudo o que ela representa. Para isso, vem articulando um plano de longo prazo, com detalhes que precisaram ser definidos com o cuidado de um relojoeiro. E a hora de colocar a máquina em funcionamento se aproxima pois, em breve, haverá uma conjunção rara de planetas que vai abrir caminho para o ataque definitivo dos elfos, algo em que ninguém em Brutmir acredita, pois os elfos estão distantes há muito tempo. Sivo se aproveita dessa situação para enfraquecer as defesas da cidade muralhada, bem como o seu exército que está decadente pelo ócio e pela corrupção. 
Este é, basicamente, o enredo de De ferro e de sal, romance de alta fantasia da escritora gaúcha Simone Sauressig, que o publicou em 2018 com recursos próprios através da plataforma de autoedição da Amazon. 
Trata-se de um texto longo, com mais de cem mil palavras e muita ação, especialmente em sua metade final, uma vez que a primeira metade do livro é dedicada a apresentar os muitos personagens, todos bem construídos, e a cidade murada de Brutmir, personagem principal da trama.
Alta fantasia não é uma novidade na produção da autora, que já apresentou outras obras no gênero, como a saga Os sóis da América (2013), o romance O jogo no tabuleiro (2009) e a duologia A noite da grande magia branca (1993)/A fotaleza de cristal (1988). A diferença que salta aos olhos para quem já conhece a ficção de Saueressig é o tom violento e cruel desta dramatização. Não que seus trabalhos anteriores não tivessem situações tensas e incômodas, inclusive isso foi bastante utilizado pela autora no romance de ficção científica B9 (2010) e em suas histórias curtas de horror, nas quais cenas sangrentas não são incomuns. Até mesmo a morte de personagens importantes nas tramas também está presente em obras anteriores. Porém, em De ferro e de sal, esse tom está definitivamente emaranhado à história, configurando um estilo diferenciado diante das peças acima citadas, como se Saueressig estivesse deliberadamente conduzindo sua ficção para um público mais maduro do que aquele ao qual foram dirigidos os trabalhos anteriores. Isso, somado ao curioso formato humorístico de sua coletânea mais recente, A noite dos insensatos (2023), demonstra o desejo de Saueressig em encontrar novos públicos e escapar do paradigma de autora de ficção juvenil. De ferro e de sal é certamente o ponto alto dessa estratégia e confima, mais uma vez, o estatus de Simone Saueressig  como um dos melhores autores de alta fantasia no Brasil.
Cesar Silva

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Novela

Novela
é uma série brasileira de fantasia e humor que estreou em 2023 na plataforma de streaming Amazon Prime. Foi criada e escrita por Valentina Castello Branco e Gabriel Esteves, com direção de Renata Pinheiro e Gigi Soares, e produção do Porta dos Fundos. 
Esta primeira temporada tem oito episódios e o elenco conta com nomes conhecidos da televisão, como Monica Iozzi, Miguel Falabela, Tarcísio Filho, Caio Menk, Herson Capri, Suzy Rego, Marcello Antony, Maria Bopp, entre outros, muitos deles interpretando dois ou até três papéis.
Claramente inspirada em Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, Novela conta a história da roteirista iniciante Isabel (Monica Iozzi) que, no evento de estréia de sua primeira novela, Rebote do destino, descobre que seus créditos foram usurpados por seu mentor, o novelista decadente Lauro Valente (Miguel Falabela). Aturdida, Isabel vaga pelo estúdio e é sugada por um monitor, indo parar justamente no primeiro capítulo que acabava de ir ao ar. E o que é visto pelo público na televisão não é o que foi gravado pelo elenco, mas sim uma história metalinguística totalmente divergente, na qual a presença de Isabel subverte o enredo e transforma a vida de Lauro e do elenco da novela numa montanha russa imprevisível. 
Ao longo dos primeiros capítulos, Isabel conclui que o único modo de escapar da loucura na qual mergulhou é forçando o desfecho recorrente das histórias de Lauro Valente, fazendo a mocinha (ela mesma) e o galã se casarem pois, com o fim da história, acredita que voltará automaticamente para a realidade. 
Mas as interferências de Isabel fizeram a novela bater recordes de audiência e, pressionado pela direção da emissora e pelos anunciantes, Lauro terá que sustentar a farsa e esticar a novela, sem ter a menor ideia do que pode acontecer quando o próximo capítulo for ao ar. 
A série trabalha com muitas situações de bastidores da teledramaturgia, além de homenagear várias novelas e brincar com os cacoetes desse tipo de produção, com figurinos bizarros, situações esterotipadas e muito nonsense, como quando entram os intervalos comerciais e tudo se congela, exceto a própria Isabel. 
Novela vem somar um conjunto de boas ideias às séries brasileiras, um novo tipo de produto televisivo que tem investido em histórias fantásticas como Cidades invisíveis, Espectros, 3% e Vale dos esquecidos, e pode contribuir decisivamente para renovar o modelo tradicional das novelas da televisão brasileira.
Cesar Silva

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Prêmio Odisseia 2023

Criado em 2019, o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica homenageia os favoritos de um júri composto por escritores convidados, dentre uma relação de obras publicadas no ano anterior especificamente inscritas para o certame. 
A edição 2023 retomou a prática de anunciar seus vencedores em evento presencial, que aconteceu no último dia 8, durante o congresso Odisseia de Literatura Fantástica, em Porto Alegre.  
Os vencedores são: 
Projeto gráfico: A vida e as mortes de Severino Olho de DendêIan Fraser, Intrínseca;
Quadrinho fantástico: Os sussurros do caos rastejante, Fábio Yabu & Fred Rubim, Jambô;
Narrativa longa juvenil: A morte e a vida dos meninos lobosLucas de Melo Bonez, Boaventura;
Narrativa curta horror: "A devoradora", Juliana Cunha, em Notívagas, O Grifo;
Narrativa curta fantasia: "Serra minguante", João Mendes, em Mafagafo 5-1, Mafagafo;
Narrativa curta  ficção científica: "O cuco de Sumaúma", Simone Saueressig, em Multiverso Pulp 5, Avec;
Narrativa longa  horror: IrebuLarissa Brasil, independente;
Narrativa longa  fantasia: Ebálidas de Pseudo-Outis, Bruno Anselmi Matangrano, Arte e Letra;
Narrativa longa ficção científica: Mil placebosMatheus Borges, Uboro Lopes;
Artigo fantástico: "Pode a inteligência ser artificial? O que nos ensinam os robôs de Isaac Asimov", Rafael Eisinger Guimarães, em Leitura, curiosidade e imaginação: Refletindo sobre inteligência artificial, Pontes.
O informe oficial com todos os finalistas e os vencedores destacados, pode ser encontrado no site do evento, aqui.
Também foram distribuídos aos presentes exemplares o primeiro número da Revista Odisseia de Literatura Fantástica, publicação exclusiva editada por Duda Falcão. Em vinte páginas, traz históricos do evento e do Prêmio, a programação completa da edição 2023 e contos inéditos de Ana Lúcia Merege, Simone Saueressig e do editor. A versão digital da revista pode ser baixada aqui
Parabéns aos vencedores!

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Raízes do Amanhã

 



Raízes do Amanhã: 8 Contos Afrofuturistas, Waldson Souza, org. Capa: Nazura Santos. 219 páginas. São Paulo/Belo Horizonte: Gutenberg/Plutão, 2021.

 

O afrofuturismo é um movimento literário de caráter especulativo que busca a valorização e identidade do mundo a partir da realidade historicamente discriminada da raça negra. Foi assim nomeado em meados dos anos 1990 nos EUA, e tem entre seus principais autores os norte-americanos Samuel R. Delany e Octavia Butler (1947-2006). Talvez de forma surpreendente já tem uma quantidade de obras e autores brasileiros com alguma relevância. Por exemplo, os romances O Caçador Cibernético da Rua Treze (2017), de Fábio Kabral, O Céu Entre Mundos, de Sandra Menezes (2021) – vencedor do prêmio Odisseia de Literatura Fantástica 2022 – e O Último Ancestral (2021), de Alê Santos, finalista do Jabuti. Isso além de eventos e publicações acadêmicas, o que evidencia ainda mais sua vitalidade desde a última década.

Mesmo assim, o nosso afrofuturismo continua nas bordas da visibilidade cultural mais ampla, se somando à luta em prol de uma maior pluralidade e reconhecimento, a exemplo da própria que a inspirou, a ficção científica.

Nesse sentido, é muito útil a publicação de uma coletânea como Raízes do Amanhã, por apresentar vários temas da causa negra a partir da perspectiva da FC. Além disso, um livro como esse enriquece também a própria FCB, por abrir o leque para novas visões sobre a nossa realidade. Isso porque, quase todas as histórias trabalham com a perspectiva de emancipação dos negros dentro de um contexto brasileiro. Justamente, um país com um passado e problemática racial tão dramática e ainda pendente em nossa contemporaneidade.

O conto que abre a coletânea é “Não tem Wi-fi no Espaço”, de G.G. Diniz. Num futuro indefinido, o Nordeste se separou do Brasil, e constituiu a República Federativa do Nordeste. Uma comunidade de negros vivendo em algo próximo do que foi um quilombo coloca em órbita um satélite, primeiro passo para a mudança para Marte. Um novo mundo, quiçá menos racista e desigual que o da Terra. Mas eles enfrentam problemas inevitáveis de perseguição, principalmente por uma empresa transnacional que quer ter exclusividade de oferta das altas tecnologias astronáuticas. Talvez o ponto fraco seja apresentar com realismo como uma comunidade miserável como essa pudesse manipular tecnologias tão avançadas, mas não desabona a leitura criticamente relevante e bem escrita.

“O Show tem que Continuar”, de Lavínia Rocha mostra, de certa forma, um caminho inverso. Isso porque, numa nave que, aparentemente orbita a Terra de forma incógnita, humanos, androides e IAs compartilham um projeto de interferir nas estruturas e práticas racistas, num local em especial, o Brasil, para poder mudar esta realidade em algo mais justo para todos. Contudo, a narrativa segue um plano algo superficial, e com uma conclusão incompleta e ingênua.

A terceira narrativa é uma das melhores do livro. “Sexta Dimensão”, de Stefano Volp, faz uma reflexão interessante sobre as possibilidades e o alcance do amor, em três camadas diferentes que se entrecruzam: um ser artificial – menos que humano –, o protagonismo negro e a homossexualidade. Muito ousado, embora o principal seja a colocação no primeiro plano o quanto de humano realmente existe em seres que, formal e tecnicamente, não o são. Principalmente quando expressam sentimentos tão pungentes, como o amor.

A noveleta seguinte me é particularmente cara: “Jogo Fora de Casa”, de Sérgio Motta. Isso porque, organizei em 1998 a antologia Outras Copas, Outros Mundos, a primeira a reunir histórias de FC com futebol. No início do século XXIII, o esporte mais popular é algo parecido, o futsol, mais parecido com o futebol de rua, que eu mesmo joguei quando era criança. Sem goleiro, delimitado por espaços fechados – muros, paredes ou casas –, como numa quadra. A história mostra a visita de Casa, um time pequeno, da periferia de São Paulo, e que se tornou o time sensação da temporada, ao ser campeão. Com isso, foi desafiado pelo vencedor do Sistema Solar. O texto alterna os acontecimentos da peleja, com a trajetória de dificuldades de superação dos jogadores do time terrestre. Mas, embora talvez não tenha sido a intenção do autor, a especulação sobre o que o futebol se tornou é mais interessante do que os comentários sociais que, embora relevantes, soam descolados e inverossímeis ao retratar uma realidade de hoje como quase que inalterada daqui há dois séculos.

“Recomeço”, de Kelly Nascimento foi, provavelmente, escrita durante a pandemia de Covid-19. Conta o drama do casal Helena e Alexandre, dois médicos que, além de terem de cuidar e lidar com as várias mortes de pacientes de uma pandemia que assola o planeta, enfrentam as perdas um do outro. O texto é forte, segura o interesse, mas se torna confuso e indefinido em seu desfecho.

O nível volta a subir com a noveleta “Segunda Mão”, de Petê Rissatti. Aqui à perspectiva negra se soma à da homossexualidade, numa história de contexto distópico. No relacionamento amoroso entre um jovem branco e um negro maduro, a questão que ainda incomoda é o racismo, preconceito mais difícil de ser superado do que o da homoafetividade. O negro faz parte de um grupo secreto de contestação da ordem autoritária – que tem um governo mundial, está presente na vida da pessoas o tempo todo e as faz tomar um remédio para “se sentirem felizes” –, e não é difícil imaginar que o desfecho da narrativa não será róseo: tanto no plano pessoal como no político.

A próxima história é “Tudo o que Transpor o Ar”, das irmãs Pétala e Isa Souza. É uma narrativa com tons épicos, com uma moldura espacial interessante, sobre a viagem de retorno do povo Irawó ao seu planeta natal, após uma diáspora de séculos. A premissa é boa, mas se perde no excesso descritivo e na ausência de dramaticidade.

O conto que fecha a coletânea é o melhor: “Com o Tempo em Volta do Pescoço”, de Waldson Souza, também organizador da obra. Numa história comum de viagem no tempo, o interessante é o contexto político e suas possíveis consequências. Isso porque Jamila, sobrinha de uma construtora de uma máquina do tempo, volta a 2098 para evitar a morte de Jorge Assis, um candidato negro à presidência do Brasil. Esse fato teria provocado, mesmo que no já distante 2300, o estabelecimento de uma ordem autoritária e miserável no Brasil, com a particularidade de as pessoas terem de comprar seu tempo para saírem de casa e usarem um colar de identificação no pescoço. Bem sinistro. Mas, ao voltar ao fim do século XXI, e permitir que o candidato negro vença a eleição presidencial, um novo mundo se desdobrou: democrático e próspero para todos, inclusive para a família negra de Jamila. Mas, por melhor que tenha sido a mudança, ela descobrirá que não tem lugar nesse mundo. Impactante.

Em seu conjunto Raízes do Amanhã é uma coletânea que serve como uma boa introdução ao nosso afrofuturismo, bem como o seu diálogo com a própria FCB. Que, por sinal, tem se espraiado em várias searas na terceira década do século XXI: comunidade queer, recortes regionalistas e este da raça negra, estruturalmente a mais carente e injustiçada da história do Brasil. Mas, se por um lado, estas correntes identitárias, por assim dizer, enriquecem a nossa FC e democratizam os pontos de vistas particulares, acentuam uma certa falta de projeto comum, o que tem tornado a FCB excessivamente fragmentada. É um novo desafio a ser enfrentado.

Marcello Simão Branco


sexta-feira, 15 de setembro de 2023

A noite dos insensatos, Simone Saueressig

A noite dos insensatos e outras histórias bizarras
, Simone Saueressig. Novo Hamburgo: edição de autor, 2023. 

Houve um tempo em que os textos escritos pelos autores de fandom brasileiro de fc&f eram efetivamente lidos e causavam debates furiosos nas redes sociais analógicas da época, que aconteciam nas páginas dos fanzines que também veiculavam os textos em si. 
As redes digitais pareciam, a princípio, acenar com um acirramento desse tipo de debate, mas foi uma expectativa frustrada rapidamente na medida em que os autores abandonaram as discussões para evitar os melindres em seus seguidores. O encarregado de uma grande editora, hoje já fora do mercado, chegou a anunciar uma lista negra para os autores que fizessem comentários polêmicos nas redes. 
Portanto, é de se comemorar a iniciativa da fantasista gaúcha Simone Saueressig, que publicou com seus próprios recursos a coletânea A noite dos insensatos e outras histórias bizarras, com seis contos imprevisíveis e absolutamente fora do espaço de conforto da autora. 
Conhecida por sua ficção de viéz folclórico voltada principalmente para o público juvenil, Simone investe aqui em textos de forma e natureza totalmente diversos de suas características, com um forte conteúdo humorístico, quase sempre negro, e ataques declarados a comportamentos da sociedade brasileira recente. 
A coletânea tem apenas trinta e sete páginas, mas seu conteúdo é explosivo e de alta octanagem, que levou legiões de usuários das redes sociais a mover uma verdadeira campanha contra o volume, algo que não se via no fandom desde que as redes decidiram limar Monteiro Lobato da literatura brasileira. 
O conto título abre a antologia e é o mais longo da seleta. Trata-se de uma farsa engraçadíssima, um tipo de charge literária, sobre dois alienígenas que atuam em segredo na proteção do planeta Terra e decidem fazer uma visita não autorizada à uma região ao sul do Brasil em meio a campanha eleitoral de 2022. Sendo charge, o texto exige uma certa contextualização para fazer sentido, mas acredito que os brasileiros não terão problema com relação a isso. 
"Buraco de minhoca" narra o drama de uma dona de casa que tem em sua máquina de lavar roupas a extremidade de chegada de um buraco de minhoca de onde surgem todos os pés de meias perdidos no mundo.
"Pleonasmos" é uma narrativa metalinguística que surpreende porque a autora desrespeita sua própria filosofia de escrever corretamente e comete repetidos e deliberados pleonasmos, tudo a serviço do desfecho da história. 
"Infestação" é a história mais poética do conjunto, sobre uma jovem que passa a ser incomodada pela presença cada vez mais intensa de variados tipos de insetos em sua casa, prenúncio de importantes transformações na sua vida.
Em "A reforma" temos uma narrativa de horror, uma especialidade da autora. Durante uma reforma em sua residência, o pedreiro abre um buraco na parede que se transforma em uma gigantesca bocarra faminta. 
"Tsundoku" fecha o volume com a história de uma amante dos livros que compra muito mais do que consegue ler. A certa altura, os volumes começam a brotar expontaneamente até ocuparem toda a casa, que se torna então num labirinto de livros empilhados onde as pessoas desaparecem para sempre. 
Como se vê, a autora flerta com o modelo de fantasia de Murilo Rubião e Jorge Luis Borges, com textos curtos e poderosos que não permitem que o leitor fique impassível. Com exceção do conto título, todos os demais têm protagonistas femininas em meio ao cotidiano urbano, o que certamente deve significar alguma coisa importante.
O volume foi publicado apenas em formato virtual para leitores Kindle e pode ser adquirido aqui. Contudo, quem não tiver o dispositivo poderá ler o livro no aplicativo online da própria plataforma. 
Recomendo fortemente a leitura, por ser um ponto de virada na obra da autora, pelas discussões que suscita e porque é uma leitura bastante rápida. Dessa forma, mais gente pode entrar na discussão. Afinal, "A noite dos insensatos" é ou não proselitista? Não vou responder, mas que é divertidíssimo, lá isso é.
Cesar Silva

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O Mundo de Spock

 



O Mundo de Spock (Spock´s World), Diane Duane. Tradução: Ludmila de Souza. Capa: Vagner Vargas. 192 páginas. São Paulo: Aleph, sem data [anos 1990]. Lançamento original em 1988.

 

Apesar de ser um trekker há vários anos, com uma longa militância no fandom da série de TV, nunca fui entusiasta das novelizações. Em geral, e não só para Jornada nas Estrelas (Star Trek), acredito que elas pouco ou nada acrescentam ao conteúdo original do universo ficcional criado em outro formato, no caso da televisão e o cinema. Reconheço que é uma posição um pouco radical e talvez não se aplique tanto a esta série, com um padrão médio de qualidade elevado em qualquer meio de expressão artística.

Nesse sentido, me chamou a atenção a afirmação do renomado crítico e escritor inglês de FC Adam Roberts, em seu ótimo livro A Verdadeira História da Ficção Científica (2018), de que O Mundo de Spock foi um dos melhores livros do gênero lançados em 1988.

Por si só esta afirmação seria impactante. Afinal, centenas de romances do gênero são lançados todos os anos nos EUA. E este, além do mais, nem é uma história original, mas derivada. Pois numa pesquisa rápida dos finalistas dos prêmios Hugo e Nebula daquele ano, vejo em que nível Roberts situou a história do planeta Vulcano: Do primeiro prêmio: Cyteen, C.J. Cherryh; Red Prophet, Orson Scott Card; Piratas de Dados (Islands in the Net), Bruce Sterling e Mona Lisa Overdrive, William Gibson. Do Nebula: Great Sky River, Gregory Benford; Falling Free; Louis MacMaster Bujould; Red Prophet, Orson Scott Card; Desert Cities of the Heart, Lewis Shiner; Drowning Towers, George Turner; O Livro do Novo Sol (The Urth of the New Sun), Gene Wolfe e, de novo, o romance de Gibson. Se este romance baseado no seriado se ombreia com estas obras, de fato merece ser lido.

O Mundo de Spock é ambientado no planeta Vulcano – que orbita a estrela 40 Eridani, situada a 16,5 anos-luz da Terra –, às voltas com um plebiscito polêmico que defende a saída do planeta da Federação Unida dos Planetas (FUP), após 180 anos. Ora, os vulcanos foram a segunda civilização extraterrestre contactada pelos humanos – depois dos andorianos, em meados do século XXI. Kirk, Spock e McCoy têm suas férias interrompidas para irem a Vulcano, onde são esperados para participarem dos debates prévios à votação. Também é chamado Sarek, o embaixador de Vulcano na Terra, e pai de Spock.

Mas qual a causa para uma decisão tão radical? Apesar de serem membros fundadores da FUP, historicamente, os vulcanos, de forma geral, nunca se sentiram plenamente integrados à entidade, em termos políticos e administrativos, com uma postura crítica sobre o viés imperialista dos humanos. Afora isso, sempre houve grupos minoritários em Vulcano descontentes com a presença numa entidade multiplanetária, por se considerarem superiores aos demais membros, devido ao seu passado pacifista e voltado à lógica. Assim, a convivência por um longo tempo com civilizações emotivas e agressivas, não seria racional e prejudicaria o desenvolvimento dos próprios vulcanos. Contudo, estes dois argumentos são bem desmontados, principalmente nos discursos de Kirk, McCoy e Spock. Primeiro porque os vulcanos poderiam se esforçar em defender seus pontos de vista no interior da FUP e usar de sua influência como um dos povos mais bem-sucedidos da galáxia. E em segundo, que estes pequenos grupos não eram novidade e nunca haviam se constituído como politicamente relevantes no interior da sociedade vulcana. O que havia mudado então?

A esta trama política intricada, a verdadeira riqueza da obra está nos capítulos que entremeiam esta controvérsia, com a história do planeta e do povo vulcano, desde os primórdios, em vários momentos de sua longa trajetória. De forma muito habilidosa, Diane Duane aprofunda o que é citado em muitos episódios das várias versões da série na TV, de que em sua origem os vulcanos eram muito agressivos e violentos. Viveram várias guerras, até mais terríveis que a dos próprios humanos. Inclusive, como consequência de uma delas, parte deles deixou o planeta e colonizou outro formando o Império Romulano. Isso é conhecido a partir do episódio da série clássica “Medida do Terror” (Balance of Terror”), e é só lembrado pela autora. Uma pena, pois poderia haver algum desdobramento interessante desse fato.

Em todo caso, neste contexto de guerras surge, eventualmente, um sábio que introduziu uma nova filosofia, baseado no controle das emoções e no agir de forma lógica em todas as situações, para vencer os problemas de forma racional e evitar, sobretudo, o medo do outro. Pois segundo ele, Surak, a fonte da instabilidade emocional viria na desconfiança e insegurança com relação ao semelhante. Era preciso vencer o medo, abrindo-se para o outro. Se despir de ilusões e fantasias, enxergar a realidade tal como ela é, e não como gostaríamos que fosse. E a lógica seria a base de ação para tal postura de vida.

Talvez um aspecto menor da obra esteja, justamente, na justificativa concreta para a demanda pela secessão. Pois o doutor McCoy descobre, com a ajuda de Moira – uma inteligência artificial situada na Enterprise – que o movimento havia sido deflagrado por T´Pring, a noiva que havia sido prometida a Spock, mas que o havia recusado em nome de um amante, Stonn. Como visto no episódio da série clássica “Tempo de Loucura” (“Amok Time”), ela coloca Spock para duelar com Kirk, no intuito de se livrar de Spock. Ela consegue seu objetivo, mas fica frustrada quando descobre que foi enganada, já que, mesmo derrotado, Kirk só desmaiara e não morrera, como parecia, já que McCoy havia injetado no capitão o composto Triox. Então, T´Pring, agora viúva de Stonn e rica, resolve financiar os grupos xenófobos para se vingar de Spock e, por extensão, dos humanos em geral. Ora, criar um movimento político tão poderoso a partir de uma intenção de vingança? Me pareceu exagerado.

Interessante também em O Mundo de Spock é que é mostrado que a lógica não é integralmente seguida pelos vulcanos em geral, o que eles chamam de o´thia. Na prática, muitos deles continuam a ter um comportamento próximo do humano, mas, ao que parece, dissimulam melhor, além de encampados com uma verdadeira mística em torno do que são esse povo estranho e fascinante. A estrutura social de Vulcano se constitui de Casas que unem famílias, em termos de história, descendência e alianças políticas e econômicas. Algumas das mais poderosas lideradas por matriarcas, como a da lendária T´Pal, descendente distante de Surak, e mentora de Sarek, o que, por extensão, nos leva até Spock. A cultura dos vulcanos, tal como desenvolvida, pode ser vista, de forma aproximada, grosso modo, com aspectos da filosofia hinduísta e da sociabilidade japonesa, também marcada, historicamente, por um certo desprendimento estoicista.

O Mundo de Spock foi o segundo escrito por Diane Duane, escritora norte-americana, com mais prestígio em séries originais de fantasia. Apesar disso, ela escreveu nove romances baseados na criação de Gene Roddenberry (1921-1991), e além deste também saiu no Brasil, Meu Inimigo, Meu Aliado (My Enemy, My Ally; 1984). Ambos, pela editora Aleph que, nos anos 1990, publicou, salvo engano, 24 novelizações, além de bons livros de referência sobre a série.

Não li os demais, mas arrisco a dizer que O Mundo de Spock deve ser um dos melhores – se não o melhor –, e Adam Roberts não deve estar errado em sua impactante afirmação. Afinal, é uma história que mostra com detalhes nunca mostrados, nem de perto nas várias séries televisivas, a complexidade social, cultural e filosófica de uma das civilizações alienígenas mais conhecidas e interessantes da FC. Para o trekker é obrigatório, mas deve interessar também quem curte cultura popular e ao fã e leitor de FC em geral. Pois, ao menos nesse caso, é uma novelização que acrescenta um conteúdo de valor à compreensão do universo ficcional.

Marcello Simão Branco