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sexta-feira, 27 de julho de 2018

De jogos e festas, José J. Veiga

De jogos e festas, José J. Veiga. 190 páginas. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2016.

Desde 2015, quando se comemorou o centenário do nascimento do fantasista goiano José J. Veiga (1915-1999), e o catálogo do autor passou a integrar o acervo da Companhia das Letras, que iniciou a republicação de suas obras em uma coleção dedicada ao autor. Foram publicados em 2015 a coletânea Os cavalinhos do Platiplanto e os romances A hora dos ruminantes e Sombras de reis barbudos. Depois de um pequeno hiato, a coleção seguiu em frente em 2016 com o lançamento da coletânea De jogos e festas, publicada originalmente em 1980. O acabamento segue o padrão da coleção, com a capa ilustrada por Deco Frakas, mas sem capas duras desta vez.
Trata-se de uma seleta com apenas três textos, sendo duas novelas e um conto, além de um posfácio assinado por José Castello, em que comenta curiosidades sobre o autor e sua obra, principalmente a amizade com o também escritor João Guimarães Rosa.
Em respeito a opinião do autor, o volume não tem prefácio – o que é explicado por Castello –, e entra de cara na novela que dá nome ao livro e toma quase a metade de suas páginas. Esta é uma história de contornos realistas, em torno do mistério da morte de Vicente, cuja solução passa a ser o obsessão de seu irmão mais novo, Mário, que retornou à cidade natal depois de um período de afastamento. Há uma série de detalhes que o autor tece em torno desse mistério e de suas consequências familiares e sociais, mistérios estes que vão alterando a percepção e o comportamento de Mário que, aos poucos, vai assumindo a personalidade do irmão para tentar entender os motivos e o causador de sua morte, envolvendo-se com seus amigos, e demais pessoas de sue passado. A narrativa tem momentos oníricos característicos das obras de Veiga, mas sem a proposital indefinição do tempo da ação: desta vez, quando é sonho, sabemos que é.
Bem no centro do livro, temos o conto curto "Quando a Terra era redonda", o texto mais fantástico do volume. É escrito em forma de um artigo, como se fosse um texto de estudo acadêmico. Nele, o estudioso comenta, em algum momento do futuro distante, sobre as característica do mundo no tempo em que a Terra era redonda, pois em sua época ela não é mais: tornou-se chata assim com o tudo o que antes era arredondado. Assim, discute como, no passado, deveria ser a percepção de um mundo redondo, algo quase incompreensível para os habitantes do futuro. O texto é divertidíssimo, e dialoga com o clássico da ficção científica Planolâdia, do escritor britânico Edwin A. Abbott (1838-1926).
A segunda metade do volume é ocupada pela novela "O trono no morro", uma espécie de versão veiguiana a Grande Sertão: Veredas, de seu grande amigo Guimarães Rosa. O início do texto tem um tom de fantasia medieval, que vai se justificar ao final da leitura. A história é sobre Quintino que, quando jovem, foi "recrutado" pelo bando de Gumercindo Frade, cangaceiro violento que o inicia na arte da bala. Quintino sonha em voltar a vida pacífica e previsível de agricultor da qual foi sequestrado, mas seu talento com as armas acaba por torná-lo uma referência no grupo cangaceiro. Até o dia em que, depois de uma tocaia à traição que dizimou o bando, Quintino consegue escapar e se torna um pacato comerciante numa cidadezinha esquecida. O rumo da história muda radicalmente, saindo das correrias e tiroteios para uma relação social estável com a comunidade, onde Quintino vai encontrar o amor e a realização pessoal, bem como as tragédias da vida ordinária, que são tão ou mais dolorosas que aquelas enfrentadas no cangaço. Resta a Quintino a fuga para dentro de si mesmo.
Veiga nunca decepciona seus leitores. Trata-se de um verdadeiro gigante da narrativa, que faz emergir o maravilhoso das situações mais corriqueiras. Porque, afinal, a vida é por si só um milagre e cada detalhe dela é, em si, um fato tão fantástico quanto improvável, conforme o ponto de vista. Ponto de vista este que Veiga, como um experiente fotógrafo, é mestre em focalizar.
Cesar Silva

sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Casca da Serpente

A Casca da Serpente, José J. Veiga. Capa: Felipe Taborda. 155 páginas. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

A Guerra de Canudos (1896-1897) foi um dos acontecimentos de maior repercussão na história brasileira. Nos primeiros anos do surgimento da República dos bacharéis e latifundiários foi criada uma comunidade popular no interior profundo do país. Cresceu em número, em torno de 25 mil pessoas, unidas na sua miséria e desprezo pelas autoridades, mas o que de fato incomodou foi o aspecto social e religioso do movimento. De caráter messiânico e politicamente regressista, defendia a volta da Monarquia e baseava suas atividades numa prática católica fundamentalista, e rejeitando tudo o que a República representava: laicismo e os costumes burgueses típicos do capitalismo. Assim, para a elite oligárquica era preciso fazer alguma coisa, pois ameaçava a autoridade da Igreja, os interesses econômicos e políticos dos coronéis do Nordeste, e a reputação do governo federal.
Canudos calou tão fundo na realidade brasileira que é, possivelmente, o acontecimento mais retratado na literatura. A começar pelo romance Os Jagunços (1898), de Afonso Arinos; Canudos: História em Versos (1898), de Manuel Pedro das Dores Bombinho; Descrição de uma Viagem a Canudos (1899), de Alvim Martins Gorcades, Libelo Republicano (189), de Wolsey; O Rei dos Jagunços (1899), de Manoel Benício; A Guerra de Canudos (1902), de Henrique Duque-Estrada Macedo Soares. E só então a obra máxima, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Mas mesmo no exterior rendeu algumas obras, e pelo menos, um grande livro, A Guerra do Fim do Mundo (1980), do prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa.
Mas todas estas obras têm em comum um forte tom realista, algumas com recorte jornalístico, documental, como que a retratar e dissecar o que foi a comunidade de Canudos e a reação extremamente violenta do governo brasileiro. Pois é justamente no contraponto deste contexto de um realismo, ora laudatório dos vencedores, ora defensor dos oprimidos, que José J. Veiga inova ao apresentar uma nova e surpreendente perspectiva.
Mas não através de sua característica mais conhecida: a de um mestre do fantástico. Aquele que se insinua de forma insuspeita no cotidiano e o transforma completamente através de eventos inusitados, improváveis, absurdistas. Se Veiga usa este recurso para, na verdade, construir uma metáfora do autoritarismo político e desigualdade social no Brasil – como pode ser visto em seus clássicos A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombra dos Reis Barbudos (1972) –, em A Casca da Serpente esta verve política permanece, mas sem o elemento fantástico. Mas onde esta a inovação então?
Na sua história de Canudos Veiga envereda pela seara da história alternativa. A premissa é fascinante: o que teria acontecido se o líder Antônio Conselheiro (1830-1897) não tivesse morrido? Se pensarmos bem, até que não era uma grande impossibilidade. Ele poderia ter sido protegido das seguidas investidas do Exército e até um corpo ter sido usado para se fazer passar por ele, e enganar as autoridades. Como sabemos isso não ocorreu e, de fato, ele pereceu. Mas Veiga nos conta como Conselheiro sobreviveu e, mais importante, o que sucedeu a partir daí.
O romance começa nos momentos finais do conflito, quando a quarta expedição do Exército finalmente destrói os insurgentes, depois de sofrer três derrotas humilhantes. Todas as construções foram queimadas e milhares de combatentes mortos de ambos os lados. Os poucos sobreviventes enganam os soldados mostrando um corpo que seria o de Conselheiro. Dá certo, o corpo é levado, degolado e a cabeça exibida como um troféu nas capitais nordestinas. Mas o verdadeiro líder sobrevive, para sua própria surpresa, pois nada havia sido programado.
Antonio Vicente Mendes Maciel, o líder apelidado de Conselheiro, exerceu um profundo carisma junto aos desesperançados do sertão nordestino, assolados pela miséria extrema, a seca, a falta de terra para o cultivo e o desprezo dos governos e da Igreja católica, sempre tão próxima dos poderosos de ocasião. Conselheiro liderou por organizar uma comunidade em torno de valores católicos rígidos, trabalho coletivo e a esperança de salvação num mundo melhor.
Depois da destruição de Canudos os poucos sobreviventes fogem para uma região montanhosa, a fictícia Itatimundé. No início hesitantes sobre o que fazer, se irmanaram na presença carismática de Conselheiro. Pois eles não só se mantiveram unidos como, aos poucos, outros humildes foram chegando. Mas alguma coisa estava diferente. O líder não era mais o mesmo, embora continuasse a receber um respeito quase temeroso por parte do povo.
Conselheiro considerou a sua sobrevivência uma espécie de milagre, e a chance de recomeçar uma vida nova. Não que se arrependesse da experiência de Canudos, mas achava que se ela fora derrotada pelo reino do demônio (a República), era porque Deus não havia visto nela a perfeição que se acreditava.
O líder muda, e reduz as orações constantes, o tratamento reverente, suas vestimentas e até o seu nome. Volta ao seu nome de batismo, admitindo ser chamado apenas de Tio Antonio. De início desconcertados, aos poucos seus seguidores aprendem a viver com este líder mais humilde e parceiro nas tarefas e decisões. Esta nova comunidade, rebatizada de Conferência de Itatimundé, baseou-se em outros princípios e valores, mais igualitários e mesmo anárquicos, embora sempre tendo como referência moral a figura de Conselheiro.
Ainda que não de maneira proposital o fato é que este novo contexto atraiu a presença de figuras diferentes dos desvalidos de então. Visitantes estrangeiros, como os irmãos irlandeses, que permaneceram na nova comunidade e ajudaram-na a se desenvolver; um fotógrafo de prestígio que havia chegado tarde para fotografar a guerra de Canudos; uma cantora chamada Chiquinha, referência à pianista e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935); um intelectual estrangeiro que, aos poucos, incute em Conselheiro sólidas ideias de teor anarquista, mudando completamente a feição de uma comunidade nascida anteriormente pelo messianismo e fanatismo cristão.
Veiga imagina, assim, a possibilidade de se construir uma comunidade livre no grotão mais miserável do país, com uma nova forma se sociabilidade, marcada pela organização coletiva descentralizada, democratização nas decisões e abolição de hierarquias e autoridades. Sem dúvida, seria um experimento surpreendente e interessante, libertando também o povo miserável da esperança no porvir para construir um mundo viável e justo em nossa própria realidade.
Em termos de enredo, contudo, A Casca da Serpente, carece de dramaticidade, ou mesmo de problematização da nova ordem estabelecida, pois certamente não seria simples construí-la sem que houvesse contestações, ainda mais de um povo que havia vivido uma experiência comunitária tão radicalmente diferente em Canudos. Mas tudo flui com certa tranquilidade, como se, no fundo, qualquer palavra ou iniciativa de Conselheiro valesse por si mesma devido à continuidade do seu carisma, mais forte do que as novas ideias que ele propôs e passou a praticar.
Esta tentativa de edificação de uma comunidade autônoma com valores anarquistas não foi estranha à história brasileira, e também no mesmo período histórico de passagem do século XIX para o XX. Isso porque algumas destas comunidades foram de fato estabelecidas, as mais conhecidas delas, a da Colônia de Guararema (1888) – no interior de São Paulo –, e a Colônia Cecília (1890), no litoral paranaense. Ambas foram criadas por imigrantes italianos, liderados por líderes anarquistas vindos da Itália. Duraram alguns anos, com relativo êxito, antes dos problemas sociais e econômicos prevalecerem, levando às suas dissoluções.
Talvez Veiga tenha se inspirado nelas, mas foi ainda mais ousado, pois a Conferência de Itatimundé, no romance durou décadas, formou-se a partir de um líder religioso que muda radicalmente seus valores, sem grande conhecimento teórico, e em torno de pessoas simples, e de valores religiosos profundamente arraigados, mas dispostos a viver algo novo, pois nada tem a perder. Propõe assim uma experiência social e política muito mais radical e libertadora, sem a dependência de uma crença no além e a exploração do capital. Nesse sentido, A Casca da Serpente nos mostra uma comunidade brasileira extremamente improvável, mas não impossível, desde que se acredite verdadeiramente em relações humanas mais igualitárias, justas e solidárias. Quiçá surja alguma em tempos futuros.

– Marcello Simão Branco

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Objetos turbulentos, José J. Veiga

Objetos turbulentos: Contos para ler à luz do dia, José J. Veiga, 157 páginas, Editora Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1997.

Obra derradeira do mestre da fantasia brasileira José J. Veiga (1915-1999), a coletânea Objetos turbulentos traz uma estrutura de tal modo coerente que é quase certo que foi, desde o começo, planejada para ser publicada e lida em bloco. São onze textos independentes entre si, mas solidamente amarrados, que revelam mistérios por trás de objetos comuns do cotidiano que, por alguma circunstância bizarra, assumem contornos quase sobrenaturais, muitas vezes levando tragédia a seus proprietários.
"Espelho" é um dos textos mais perturbadores do volume, embora o desdobramento da trama não leve a um destino especialmente nefasto. Casal é enfeitiçado por um espelho antigo adquirido em um antiquário. O tema não é novo e já apareceu mais de uma vez na literatura brasileira, mas ganha aqui um contorno naturalista.
"Cachimbo" também é um texto forte sobre o preconceito nosso de cada dia. Um negro, operador da bolsa de valores, tem uma vida boa e tranquila até que decide começar a fumar cachimbo, até que, apesar de suas convicções, decide pitar em público.
"Cadeira" traz um objeto assombrado para a vida de um decorador que por ela se apaixona. A piedade de seu proprietário original, um famoso bispo, influencia quem, nela se acomoda a ter crises profundas de tristeza e culpa.
"Manuscrito perdido" é o texto mais divertido do conjunto. Um escritor entra em crise criativa depois de perder, durante uma viagem, o manuscrito de um conto que ele avaliava como sua obra prima. Três anos depois, para sua alegria e desespero, o manuscrito retorna às suas mãos.
Em "Vestido de fustão", um vendedor de tapetes, ao visitar uma cliente, tem uma epifania ao cruzar com uma jovem desconhecida na escadaria do condomínio. Tenta, então, reencontrar a garota que parece não existir de fato.
"Caderno de endereços" narra a tragédia de um jovem estudante apaixonado pela Alemanha que, depois de muito preparo finalmente tem a chance de realizar o sonho de visitar o país. Porém, um prosaico e inocente caderno de endereços vai se tornar um grande problema quando ele chama a atenção do governo nazista.
"Cantilever" conta a história de um menino muito criativo e irrequieto, que tem a mania de inventar palavras.
Em "Luneta" um jovem fotógrafo torna-se voyeur ao se deparar com uma luneta de alta performance. Mas o que ele vai entender é que, quando olhamos muito para dentro da escuridão, a escuridão também olha dentro da gente...
"Tapete florido" é outro conto sobre um objeto enfeitiçado. Esposa, depois de muito insistir, finalmente consegue que o marido compre um tapete novo para a sala de visitas. Mas apesar de muito belo, a estampa do objeto tem o poder de levar a mulher a um estado alterado de consciência, no qual ela tem percepções do passado e do futuro, e sofrer de profunda melancolia. Este conto também dialoga com uma série de outros da nossa literatura, como o famoso "A caçada", de Liga Fagundes Telles.
"Pasta de couro de búfalo" mostra a ascensão de um jovem empresário que enriquece graças ao tino comercial inato. Mas, ao se envolver com uma famosa cantora de ópera, sua credulidade nos poderes de sua pasta de couro entra em choque com a paixão pela dama, levando-o a um destino trágico.
"Cinzeiro", que fecha a edição, também tem um viés cômico. Mostra como um jovem e destemido membro da brigada revolucionária gaúcha que acompanhou Getúlio Vargas ao Rio de Janeiro, constrói sua rede de influência na capital. De um de seus contatos, ganha um cinzeiro feito de uma granada desativada, pelo qual se apaixonou de imediato, pois era perfeito para acompanhá-lo em seus longos períodos de leitura de romances policiais e consumo de charutos. Mas o objeto trazia em si um risco inesperado.
Os contos são leves e, mesmo os mais trágicos, não chegam ao horror. A leitura sobrenatural, apesar de possível, é imprecisa, podendo ser percebida mais como fenômeno psicológico, como nos contos "Espelho", "Cadeira" e "Tapete florido". Temas recorrentes do autor aparecem aqui diluídos no tratamento leve e realista, sem o perfil de pesadelo e violência que aparecem em seus textos mais antigos, exceto por "Cachimbo" que, mesmo assim, não chega estabelecer um mistério inexplicável. Os cenários geralmente campestres e interioranos de Os Cavalinhos de Platiplanto e A estranha máquina extraviada também cedem lugar a ambientes cosmopolitas, nos quais os objetos adquirem mais relevância que os próprios personagens.
Objetos turbulentos é, portanto, um livro diferenciado, ainda que mantenha a poderosa carga psicológica característica da obra do mestre.
Cesar Silva

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Os cavalinhos do Platiplanto, José J. Veiga

Os cavalinho do Platiplanto, José J. Veiga. Edição original de 1959. Edição avaliada: Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2015.

Aprendi a admirar a literatura de José J. Veiga (1915-1999) quando era ainda adolescente. Incentivado por uma mãe bibliotecária, li muita ficção fantástica desde a infância e logo escrevi meus próprios contos. Alguns desses primeiros textos foram parar nas mãos do Dr. Miller, então Secretário de Cultura de Santo André, e foi este senhor que, ao me receber em sua casa, recomendou a leitura do autor. Os primeiros livros de Veiga que li  foram o romance A hora dos ruminantes (1966) e a coletânea Os cavalinhos do Platiplanto (1959), que a Editora Companha das Letras está oportunamente republicando em uma coleção caprichada em comemoração ao centenário de nascimento deste autor goiano (veja post aqui).
A nova edição de Os cavalinhos do Platiplanto – prefaciada por um excelente ensaio crítico de Silviano Santiago – reúne os primeiros contos escritos por Veiga, que estreou tardiamente na literatura, aos 44 anos de idade. São doze contos ao todo, que relatam situações ligadas a vida em pequenas comunidades do interior brasileiro, nas quais a fantasia e o inusitado de imiscui de forma natural e harmônica.
O primeiro conto, "A ilha dos gatos pingados", relata um momento na infância de três garotos que, para fugir da violência doméstica, constroem um refúgio secreto num banco de areia no meio do rio. Apesar do romantismo, o relato da violência pelo qual passa um dos personagens é de cortar o coração.
O segundo texto, "A usina atrás do morro", é uma história icônica na obra de Veiga, em muito similar a seu texto mais conhecido, o já citado A hora dos ruminantes. Conta a reação que a chegada de uma grande e misteriosa indústria causa numa pequena comunidade rural, relatada por um dos moradores, um jovem que tenta entender por quê a promessa de desenvolvimento teve de vir acompanhada de uma violência que beira à insanidade. Contudo, diferente da conclusão redentora do romance, o conto é muito mais duro e distópico.
O texto que empresta o nome ao livro também tem uma criança como narradora, que conta como a promessa frustrada de ganhar um cavalo do avô o leva a sonhar com uma fazenda mágica na qual os cavalos mais lindos do mundo são todos seus. O estilo de Veiga já se manifesta aqui, sem definir as fronteiras entre sonho e realidade, na forma como as crianças enxergam o mundo.
"Era só brincadeira" é o que poderíamos chamar de um texto absurdista. Durante uma pescaria, um homem resgata do rio um velho cano de espingarda que vai se transformar num bizarro caso de polícia com um final trágico. Ainda bem que era tudo brincadeira. Ou não?
"Os do outro lado" é uma história de fantasmas na tradição das casas mal assombradas. Mas, sendo Veiga, nada é exatamente o que parece.
"Fronteira" é o menor texto do livro, mas não menos potente. Conta como um menino, que tem a missão de conduzir os viajantes por caminhos nos quais só os meninos sabem andar, deixa de ser menino.
"Tia Zi rezando" fala de um menino que vive um mistério doméstico. Criado pelos tios, ele passa por diversas situações inexplicáveis, sempre ligadas a um segredo que ninguém tem coragem de contar.
"Professor Pulquério" conta a transformação de intelectual obcecado pela lenda de um tesouro enterrado em algum lugar nos arredores da pequena cidade onde mora. O final desconcertante é um dos raríssimos casos de final surpresa que não estraga o conto em si, antes pelo contrário, emprestando a ele uma leitura absolutamente diversa.
Em "A Invernada do Sossego" dois meninos irmãos esperam ansiosamente pela volta do cavalo de estimação que fugiu da fazenda. Mas o cavalo não volta nunca e eles terão de ir encontrá-lo na tal Invernada do Sossego, um lugar que talvez só exista na imaginação das crianças.
"Roupa no coradouro" é, de longe, a história mais melancólica da seleta e conta como a culpa pode se instalar para sempre no coração de uma criança inocente.
"Entre irmãos" relata o incômodo encontro de dois irmãos que não se conhecem, enquanto a mãe deles agoniza no quarto ao lado.
Em "A espingarda do rei da Síria", outra história de laivos absurdistas, um caçador que perdeu a espingarda encontra a redenção de sua tragédia pessoal numa realidade mágica.
Apesar de um predomínio de personagens juvenis e da narrativa singela, as histórias de Veiga não se limitam a esse público de forma alguma: todas tratam de temas complexos e espinhosos. Paralelos entre a fantasia e a violência, o sonho e a frustração, estão presentes em diversos textos do volume, sendo de fato uma assinatura estilística do autor.
Além de Os cavalinhos do Platiplanto e A hora dos ruminantes, A Companhia das Letras promete republicar toda a obra de Veiga, que inclui peças de horror, fantasia, ficção científica e até de história alternativa: A máquina extraviada (coletâna, 1967), Sombras de reis barbudos (romance, 1972), Os pecados da tribo (romance, 1976), O Professor Burim e as quatro calamidades (romance, 1978), De jogos e festas (coletânea, 1980), Aquele mundo de Vasabarros (romance, 1982), Torvelinho dia e noite (romance, 1985), A casca da serpente (romance, 1989), O risonho cavalo do príncipe (romance, 1993), O relógio Belizário (romance, 1995), Tajá e sua gente (romance, 1997) e Objetos turbulentos (coletânea, 1997). O que é uma bênção para os fãs de Veiga, pois as edições são luxuosas, impressas em papel pólem de alta gramatura, encadernadas em capas duras com ilustrações de Deco Farkas, além de trazerem valiosos ensaios discutindo a obra em questão e uma grande lista de leituras complementares. Sem dúvida, uma publicação importante que trata o autor e a obra com respeito e consideração que merecem.
Cesar Silva

sábado, 14 de março de 2015

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 136 páginas. Texto da orelha de Mário da Silva Brito. Lançado originalmente em 1972.

Numa pequena cidade do interior do Brasil, como milhares delas, aliás, as pessoas vivem suas vidas dentro de uma estável e confortadora rotina. Até que o parente de uma das famílias chega com pompa e cerimônia com suas belas roupas e um carrão anunciando as modernidades da cidade grande. Cercado de mimos e interesses traz a novidade: a chegada da Companhia. Mas o que é a Companhia?
     Está montado o cenário deste romance perturbador que à maneira peculiar do autor, através do talento recorrente pela fluência narrativa e à sensível construção de tipos humanos, nos insere no terror da opressão e do incompreensível.
     Sim, Sombra de Reis Barbudos foi escrito no auge da ditadura militar brasileira e não é possível que nos furtemos a interpretá-lo como uma extrapolação crítica deste período histórico sombrio. Assim como em outras de suas obras, mais notavelmente em A Hora dos Ruminantes (1966), o realismo extremo da opressão política-econômica escapa, por assim dizer, para o terreno do bizarro e do absurdo.
     A Companhia muda de forma radical a vida das pessoas da cidadezinha. Quase todos trabalham para ela, direta ou indiretamente. Elas têm de seguir suas regras e regulamentos que, pela presença onipresente de fiscais, passa a ter força de lei. Começam as proibições pelo consumo, depois pelas opiniões, e por fim nos costumes e no comportamento individual. Ou seja: estabelece-se um contexto de controle quase absoluto na vida de cada pessoa.
     Para dificultar a comunicação e a mobilidade, a Companhia cerca as ruas e casas de muros, para tempos depois cercar toda a cidade. A cada construção opressiva há uma insólita “resposta” dos céus. Aos muros surgem urubus aos milhares; às cercas surgem pessoas voando. Em princípio sem saber de onde, e depois com gente da própria cidade ganhando os céus. Sem dúvida temos no primeiro caso, uma anunciação de tempos tenebrosos, e no segundo caso um desejo desesperado por liberdade.
     A narrativa se concentra na família de tio Baltazar, o figurão que anuncia a chegada da Companhia. Seu Horário, cunhado do recém-chegado adere à Companhia, lá prospera, mas depois se demite e é “sumido” em desgraça. Mesmo Baltazar depois de ser um dos líderes da Companhia, é levado embora da cidade e adoece gravemente. Ao que parece o cerco à família de Lucas, o menino que conta a história, é um micro-cosmo do que acontece com a cidade inteira sob o julgo das regras e normas da Companhia.
     Numa tentativa de respondermos o que é esta instituição que controla de forma opressiva a vida das pessoas podemos nos indagar: onde está o Estado nesta cidade que permite que uma empresa (ou melhor, uma organização), assuma o controle de tudo, até de funções públicas? Neste caso como ficariam as leis e as ligações externas da cidade com o restante do país? Embora possa parecer algo incoerente, até mesmo neste plano é possível compreendermos a Companhia como uma destas mega-empresas que assumem as atividades econômicas de tal forma que toda a sociedade gira em torno dela, capturando, inclusive, o poder público. Historicamente existiram muitos destes enclaves estrangeiros no Brasil e, principalmente, na América Latina.
     Por outro lado é possível também uma leitura mais política, do ponto de vista metafórico: a Companhia nada mais é que a instauração de uma nova ordem: a ditadura, seja ela militar ou civil. Neste plano a crítica de Veiga seria ao regime autoritário, então em vigência no Brasil.
     Com sua habitual sensibilidade Veiga trabalha a opressão nos pequenos espaços, nas individualidades e não no plano macro. Por isso a interpretação das causas e efeitos da nova ordem é esmiuçada no interior da família de Lucas. Para criticar uma nova ordem sócio-política de caráter autocrático, Veiga mostra o terror causado no plano individual e subjetivo básico das pessoas: a incompreensão, o medo, a desconfiança e a solidão. Por outro lado resvala ao fantástico ao mostrar que o terror do realismo e do controle extremo meio que vaza para o terreno do inexplicável. Talvez porque uma situação de opressão total seja em si mesma uma aberração difícil de suportar.
     Seriam os tais reis barbudos vislumbrados durante e no fim do livro os donos da Companhia? Nada se explica porque não há explicações possíveis quando as pessoas são arbitrariamente oprimidas e caladas. Como afirma o cientista político Guillermo O´Donnell, ao comentar sobre o clima de terror que viveu durante a ditadura militar argentina nos anos 1970, talvez tão apavorante quanto a violência física é a capacidade das ditaduras de estabelecer o medo absoluto que nos leva ao silêncio. De boca fechada correríamos menos riscos, pois não exteriorizaríamos verbalmente às pessoas ou ao mundo o que pensamos. Mas de outra parte esta interiorização forçada de sentimentos nos humilharia porque não expressaríamos muito do que nos torna humanos. Esta dimensão está presente em Sombra de Reis Barbudos, embora a válvula de escape, se assim posso colocar, se insere na dimensão do fantástico: dos urubus, da chuva incessante, do mágico que todos viram mas ninguém lembra e, acima de tudo, pelas pessoas que voam. Uma eloquente imagem do desejo visceral de liberdade.
     Este romance dialoga e critica os tempos sinistros que vigoraram na história brasileira, mas não está datado porque se presta a múltiplas leituras interpretativas. Na mais óbvia para nos alertar sobre os horrores sempre possíveis da volta de uma opressão política; em outra, digamos mais contemporânea, sobre as eventuais armadilhas de uma sociedade que, embora pluralmente aberta, está excessivamente voltada a uma esfera individual de interesses  podendo, com isso, gerar posturas intolerantes e desejos de ordem, voltando-se contra ela mesma. Por tudo isso, além do encanto inegável de sua prosa e suas imagens surpreendentes, é que Veiga, o grande fantasista brasileiro, possui um alcance universal.
Marcello Simão Branco

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A hora dos ruminantes, José J. Veiga

A hora dos ruminantes, José J. Veiga. Lançado originalmente em 1966. Edição utilizada: Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, 4ª edição, 102 páginas.

A cidade de Manarairema é como muitas outras pelo Brasil: tem todo tipo de gente trabalhando para ganhar a vida. Tem o vendeiro, o carroceiro e o ferreiro. Tem o padre, o casal de namorados e o valentão. Tem o menino que vende cigarros de palha, o consertador de carroças e a dona de casa. E tem também um monte de gente que não faz nada, mas adora uma fofoca. Por isso, a cidade entra em polvorosa quando, sem nenhum aviso prévio ou explicação posterior, um acampamento de gente estranha brota num terreno próximo. São erguidas barracas, construídas cercas e casinhas de madeira, mas os estranhos não aparecem para se apresentar aos manarairemenses.
Todos ficam alvoroçados, perguntam daqui e de lá, mas ninguém tem coragem de ir à tapera ver quem é aquela gente e o que pretende. Os dias passam e o mistério continua.
Geminiano, o carroceiro, é abordado por um dos estranhos que quer comprar sua carroça a qualquer custo. Mas o carroceiro recusa a venda e fica irritado com a insistência. Sua conversa ríspida não passou despercebida e logo virou assunto em toda a cidade.
Amâncio, o dono da venda, que também é o valentão de Manarairema, não tem muito apreço pelo carroceiro e critica publicamente a maneira como ele tratou o estranho. Para mostrar valentia, resolve ir ao acampamento e tirar as coisas em pratos limpos. Depois de um tempo, volta atemorizado e não fala nada para ninguém. Toda a cidade fica inquieta com a reação de Amâncio, e piora quando Geminiano acaba por submeter-se às ordens do povo da tapera. Não vendeu a carroça, mas parece humilhado.
Os estranhos continuam a investir sobre os moradores da cidade e cada um que recusa atender as ordens vindas da tapera, logo recebe a visita suplicante de Geminiano ou de Amâncio, tentando convencer o renitente a ceder.
Os dias passam e o povo fica cada vez mais amedrontado com a presença ameaçadora da tapera ao longe. De repente, sem motivo ou explicação, a cidade é tomada por milhares de cachorros vindo da tapera. São tantos que mal há lugar para pisar. Os animais espalham-se por cada centímetro quadrado de Manarairema, entram nas casas e submergem a cidade em sua onipresença. Depois de muitos dias, com o povo já acostumado com a cachorrada atrevida, um sinal invisível e inaudível convoca a matilha. Os bichos saem da cidade aos trambolhões, deixando para trás uma Manarairema imunda, assustada e intrigada.
Não demora muito, nova invasão e, desta vez, a coisa é realmente séria: a cidade é inundada por bois, tão coladinhos uns nos outros que ninguém mais consegue sair à rua. Sem ter como se abastecer de água e comida, o povo sofre aprisionado em suas casas. Quando as esperanças estão perdidas e o fim se aproxima, os bois simplesmente desaparecem, deixando a cidade enterrada em toneladas de esterco.
O povo da tapera também se foi. Finalmente, Manarairema pode voltar ao normal, mas a memória dessa experiência sufocante nunca vai deixar de influenciar o comportamento do povo daquela cidadezinha indefesa.
Esta é a história que o escritor goiano José J. Veiga conta em A hora dos ruminantes, publicado em 1966, uma alegoria sobre o poder e sua efemeridade. Certamente foi a maneira como o autor reagiu aos anos de chumbo da ditadura, quando o inocente era considerado subversivo e a opressão se manifestava nas formas mais absurdas. Compõe com Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, e Fazenda modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, uma verdadeira trilogia fantástica sobre o autoritarismo que vivemos entre 1964 e 1985.
Mesmo hoje, mais de trinta anos depois do fim da ditadura militar, A hora dos ruminantes continua efetivo em seu discurso antiautoritarismo e nos faz pensar em como nós, feitos manarairemenses, reagiríamos àquele estado de opressão.
A hora dos ruminantes foi a primeira novela de José J. Veiga, muito bem recebida pela crítica especializada, que deu ao autor o reconhecimento completo pelo seu trabalho, iniciado poucos anos antes, em 1959, com a publicação da coletânea Os cavalinho do Platiplanto, livro bem avaliado e rico em sabores para o leitor de ficção fantástica porque boa parte dos contos – senão todos – está de algum modo associado ao fantástico.
O sucesso e o reconhecimento de Veiga são estranhos no imaginário dos fã brasileiro de ficção fantástica. Isso porque desmentem cada uma das suas principais “verdades” instituídas: 1) Que o mainstream tem preconceito visceral contra a ficção fantástica; 2) que ficção fantástica não vende; e 3) que só os fãs conseguem escrever ficção fantástica de boa qualidade.
Veiga sempre foi um autor identificado com o mainstream, um outsider que nunca fez parte do domínio dos fãs, seja em sua geração contemporânea, a Primeira Onda – conhecida como Geração GRD –, seja na Segunda Onda, formada por fãs e fanzines a partir de meados dos anos 1980. Apesar disso, e desde o primeiro livro, toda a sua carreira vitoriosa foi construída com a ficção fantástica.
Entre seus trabalhos há ficção científica (Sombras de reis barbudos, 1972, história alternativa (A casca da serpente, 1989), ficção alternativa (O relógio Belisário, 1995) e muita fantasia. Todos venderam bem, tiveram dezenas de edições, foram traduzidos em muitas línguas, reconhecidos pelo mainstream e agraciados com vários prêmios: Veiga recebeu da Câmara Brasileira do Livro três Prêmios Jabuti, por De jogos e festas (1981), Aquele mundo de Vasabarros (1983) e O risonho cavalo do príncipe (1993). Em 1997, o valor da obra de Veiga foi reconhecido pela Academia Brasileira de Letras que lhe outorgou o Prêmio Machado de Assis.
Falecido em 1999, José J. Veiga legou aos brasileiros uma obra ampla e de grande significado, que precisa ser conhecida e estudada por aqueles que pretendem atuar no meio editorial, seja como autores, críticos ou editores.
Cesar Silva