Obra derradeira do mestre da fantasia brasileira José J. Veiga (1915-1999), a coletânea Objetos turbulentos traz uma estrutura de tal modo coerente que é quase certo que foi, desde o começo, planejada para ser publicada e lida em bloco. São onze textos independentes entre si, mas solidamente amarrados, que revelam mistérios por trás de objetos comuns do cotidiano que, por alguma circunstância bizarra, assumem contornos quase sobrenaturais, muitas vezes levando tragédia a seus proprietários.
"Espelho" é um dos textos mais perturbadores do volume, embora o desdobramento da trama não leve a um destino especialmente nefasto. Casal é enfeitiçado por um espelho antigo adquirido em um antiquário. O tema não é novo e já apareceu mais de uma vez na literatura brasileira, mas ganha aqui um contorno naturalista.
"Cachimbo" também é um texto forte sobre o preconceito nosso de cada dia. Um negro, operador da bolsa de valores, tem uma vida boa e tranquila até que decide começar a fumar cachimbo, até que, apesar de suas convicções, decide pitar em público.
"Cadeira" traz um objeto assombrado para a vida de um decorador que por ela se apaixona. A piedade de seu proprietário original, um famoso bispo, influencia quem, nela se acomoda a ter crises profundas de tristeza e culpa.
"Manuscrito perdido" é o texto mais divertido do conjunto. Um escritor entra em crise criativa depois de perder, durante uma viagem, o manuscrito de um conto que ele avaliava como sua obra prima. Três anos depois, para sua alegria e desespero, o manuscrito retorna às suas mãos.
Em "Vestido de fustão", um vendedor de tapetes, ao visitar uma cliente, tem uma epifania ao cruzar com uma jovem desconhecida na escadaria do condomínio. Tenta, então, reencontrar a garota que parece não existir de fato.
"Caderno de endereços" narra a tragédia de um jovem estudante apaixonado pela Alemanha que, depois de muito preparo finalmente tem a chance de realizar o sonho de visitar o país. Porém, um prosaico e inocente caderno de endereços vai se tornar um grande problema quando ele chama a atenção do governo nazista.
"Cantilever" conta a história de um menino muito criativo e irrequieto, que tem a mania de inventar palavras.
Em "Luneta" um jovem fotógrafo torna-se voyeur ao se deparar com uma luneta de alta performance. Mas o que ele vai entender é que, quando olhamos muito para dentro da escuridão, a escuridão também olha dentro da gente...
"Tapete florido" é outro conto sobre um objeto enfeitiçado. Esposa, depois de muito insistir, finalmente consegue que o marido compre um tapete novo para a sala de visitas. Mas apesar de muito belo, a estampa do objeto tem o poder de levar a mulher a um estado alterado de consciência, no qual ela tem percepções do passado e do futuro, e sofrer de profunda melancolia. Este conto também dialoga com uma série de outros da nossa literatura, como o famoso "A caçada", de Liga Fagundes Telles.
"Pasta de couro de búfalo" mostra a ascensão de um jovem empresário que enriquece graças ao tino comercial inato. Mas, ao se envolver com uma famosa cantora de ópera, sua credulidade nos poderes de sua pasta de couro entra em choque com a paixão pela dama, levando-o a um destino trágico.
"Cinzeiro", que fecha a edição, também tem um viés cômico. Mostra como um jovem e destemido membro da brigada revolucionária gaúcha que acompanhou Getúlio Vargas ao Rio de Janeiro, constrói sua rede de influência na capital. De um de seus contatos, ganha um cinzeiro feito de uma granada desativada, pelo qual se apaixonou de imediato, pois era perfeito para acompanhá-lo em seus longos períodos de leitura de romances policiais e consumo de charutos. Mas o objeto trazia em si um risco inesperado.
Os contos são leves e, mesmo os mais trágicos, não chegam ao horror. A leitura sobrenatural, apesar de possível, é imprecisa, podendo ser percebida mais como fenômeno psicológico, como nos contos "Espelho", "Cadeira" e "Tapete florido". Temas recorrentes do autor aparecem aqui diluídos no tratamento leve e realista, sem o perfil de pesadelo e violência que aparecem em seus textos mais antigos, exceto por "Cachimbo" que, mesmo assim, não chega estabelecer um mistério inexplicável. Os cenários geralmente campestres e interioranos de Os Cavalinhos de Platiplanto e A estranha máquina extraviada também cedem lugar a ambientes cosmopolitas, nos quais os objetos adquirem mais relevância que os próprios personagens.
Objetos turbulentos é, portanto, um livro diferenciado, ainda que mantenha a poderosa carga psicológica característica da obra do mestre.
— Cesar Silva
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