terça-feira, 30 de junho de 2015

O Fruto do Vosso Ventre, Herberto Sales

O Fruto do Vosso Ventre, Herberto Sales. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 192 páginas. Lançado originalmente em 1976.

Este romance foi laureado com o Prêmio Jabuti em 1977, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, o mais tradicional e importante prêmio literário do país. Assim, para aqueles que afirmam que a ficção científica brasileira nunca foi reconhecida pelo corpo principal da literatura nacional, é bom terem em mente que esta obra do gênero foi premiada.
Talvez possa se dizer que a crítica não viu na obra os elementos pertencentes à ficção científica – e, no caso, de temática distópica –, e nem mesmo o autor assim a considerou.[1] Pelo que se lê sobre a obra, seu acolhimento e reconhecimento esteve relacionado mais à uma crítica velada ao regime militar, por meio de uma estrutura fabulesca e ao mesmo tempo satírica e que ainda faz alguns usos interessantes de recursos de metalinguagem, como quando o autor como que se vira para o leitor e ironiza os personagens aos quais o romance pretende criticar.
Mas o fato é que O Fruto do Vosso Ventre pertence àquilo que identificamos com a ficção científica, pois a história aborda temas caros e recorrentes a este gênero, como a opressão em um futuro e lugar não identificado e desastres de ordem natural e/ou populacional. Este romance pertence ainda a um período específico marcado por distopias políticas e ecológicas, obras que por alegorias e metáforas procuravam criticar o regime militar, tais como Fazenda Modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda,  Adaptação do Funcionário Ruam (1975), de Mauro Chaves e Umbra (1977), de Plínio Cabral, entre outras.
A história de O Fruto do Vosso Ventre situa-se em um lugar chamado apenas de Ilha. Por este nome aparentemente neutro, pode-se subentender desde uma referência ao primeiro nome dado ao Brasil, “Ilha de Santa Cruz” – como quer a pesquisadora norte-americana Elisabeth Ginway[2] – até à jovem capital do país, Brasília, comumente referida como uma “Ilha da Fantasia”, pelo fato do centro do poder situar-se longe do eixo econômico-cultural do Rio-São Paulo. E também pela atual capital federal ter sido identificada como um tipo de cidade futurista, por causa de sua arquitetura arrojada e ter servido muito bem ao propósito de sede de um regime autoritário, exatamente pelo fato de estar distante das pressões da imprensa e demais setores organizados da sociedade urbanizada, facilitando a tarefa dos militares em tomar decisões discricionárias e implementar uma grande e confusa estrutura tecno-burocrata, aliás, uma das principais críticas presentes no livro.
 Sob este último aspecto o livro talvez hoje soe como datado, em um mundo em que prevalece o princípio democrático, além da globalização e interconecção em tempo real através do satélite e a internet, o que torna mais difícil o controle sobre o comportamento e a informação, mas serviu muito bem à ditadura do Brasil e de outros países durante os anos 70, o que foi também objeto de estudo de vários cientistas sociais que cunharam para estas ditaduras o conceito de ‘regime burocrático-autoritário’, ou seja, de repressão política interna, com extenso alcance tecno-burocrático e ênfase no desenvolvimento econômico.[3]
O romance é dividido em três partes distintas e complementares. A primeira chama-se “Os coelhos da Ilha”, uma alegoria que mostra como a explosão populacional destes animais interfere na safra agrícola e leva o governo a radicalizar matando todos os coelhos.
Um prenúncio para o que virá, pois na segunda parte “A Ilha dos Homens”, o problema da superpopulação passa a ser dos próprios homens. Em uma justificação claramente maltusiana – a de que uma superpopulação esgota os recursos materiais e provoca fome e colapso social – os tecnocratas que dirigem a Ilha decretam, através de elaborados planos, que todas as mulheres que não tiverem ultrapassado os três meses de gestação deverão abortar os seus bebês. Contudo, as mulheres são submetidas a exames nos quais têm de enfrentar longas filas, por semanas, fazendo com que algumas passem do limite quando finalmente são examinadas.
Esta estrutura autoritária atinge fundamentalmente as mulheres, aquelas responsáveis por gerar os bebês. Assim, o órgão encarregado dos planos de restrição aos nascimentos, o Departamento de Controle da Natalidade e Planificação Matrimonial e Ligações Correlatas, ou para um melhor e mais eficaz memorização Decomplamlic, reúne-se diversas vezes e com órgãos correlatos para longuíssimas discussões sobre detalhes do plano a ser executado, até o seu desdobramento definitivo naquilo que é denominado “A medida final”, uma alusão à bárbara “Solução final” dos nazistas com relação ao destino aos judeus. Desta forma, a tal medida final dos tecnocratas decide que todas as mulheres deverão consumir pílulas anticoncepcionais. Pois no caso de engravidarem, a pena será a de morte para elas e para o bebê que nascer. E esta medida vale pelos próximos 40 anos! Ora, desta forma, seria possível que toda a população chegasse à extinção, pois nascida uma menina nesta época, só poderia ter um filho aos 41 anos.
Nesta segunda parte, que toma a maior parte das páginas, a ação situa-se no plano das reuniões e deliberações dos tecnocratas e por quase trintas longas páginas somos submetidos a uma linguagem pomposa, artificial e redundante sobre as decisões a serem tomadas. Para não entediar tanto o leitor, Sales nos apresenta um casal, o sapateiro Teodorico e sua esposa Isabel, que está grávida, mas como ela já passou do prazo está livre para ter o seu filho.
 Como dito acima, o alvo do governo são as mulheres. Prefere-se a solução das pílulas só para elas e não para os homens. Já que são elas que geram e seriam, portanto, as culpadas pelo excesso de natalidade. Outros planos, como a esterilização, não são considerados, pois o objetivo implícito é de punição às geradoras, o que só reforça a opressão masculina à mulher. Se valer o argumento de que numa ditadura se pune prioritariamente o que é potencialmente transgressor ou ameaçador, os dirigentes reconhecem que a fonte real de poder está nas mulheres. Elas seriam os elementos subversivos, e desta forma a repressão caberia a elas e não aos homens. Percebe-se no viés desenvolvido uma crítica à condição feminina e a luta por seus direitos, numa visão machista do autor.
O tom fabulesco ajuda a enfatizar a crítica do autor frente aos tecnocratas que, com suas intermináveis e inúteis reuniões, meio que perdem o sentido do ridículo a que estão imersos, alienados em um mundo regido por regras outras, dentro da própria visão de mundo tecnocrática, desvinculada de medidas de bom senso e muito menos de humanidade. Apesar disso não se discute o impacto social, econômico e psicológico de uma medida tão radical, como se a população também estivesse amansada tal quais bois que se dirigem a um matadouro.
Na última parte, intitulada “O Livro do Filho”, há uma reversão total dos acontecimentos, tanto na forma, como no conteúdo. Ao estilo alegórico da primeira parte e à mordaz e cansativa sátira ao mundo tecnicista e opressor da segunda, nos deparamos com um texto que se quer redentor. A prosa é dividida em duas colunas, tal qual uma página da Bíblia e os parágrafos numerados como se versículos fossem.
Numa festa de aniversário do filho de Teodorico e Isabel, uma prima desta, Maria conhece José. Em pouco tempo apaixonam-se e se casam. Quase que por um milagre, mesmo tomando pílulas Maria engravida e decide fugir com José a ter de abortar. A referência aos nomes do casal e sua fuga posterior é claramente cristã. O casal consegue fugir da Ilha, salvando a criança. E tal qual um messias, ela volta já adulta para acabar com a ditadura e libertar as crianças não nascidas que, como num toque mágico, despontam numa nova sociedade conduzida por elas.
A decisão do autor de enveredar por este lado religioso já estava implícita no próprio título da obra. Mesmo assim a solução adotada retira qualquer participação dos cidadãos nos seus destinos históricos, ora oprimidos por um sistema tecnocrático, ora libertados por um ser espiritual, tal qual Jesus, que anda pelas águas e sobe aos céus. Nesse sentido o desfecho do livro limita suas possibilidades transformadoras, como ao menos se espera em histórias anti-distópicas da qual esta dialoga.
Talvez para o autor, o brasileiro não seria um sujeito histórico capaz de mudar o seu destino, imerso em regimes políticos oligárquicos, populistas e ditatoriais em diferentes épocas e num contexto de extrema desigualdade social e má formação educacional. Desta forma, apesar do autor desenvolver uma crítica ácida às contradições da ditadura, nem chega a elaborar as muitas consequencias de seus malefícios e não vê como o povo possa romper com esta estrutura, reservando para ele a esperança de um além que possa dar-lhe uma vida melhor. Nada mais conservador e limitador para um texto que possamos classificar como de ficção científica. Embora não seja incomum no gênero trabalhos que se num primeiro plano criticam o status quo, num outro mais profundo se resignam frente a ele. Ou por não encontrarem uma solução. Ou por se recusarem a fazê-lo. Difícil dizer em qual dos casos se aplica o de Herberto Sales: um pessimista ou um conformista, o que não retira a impressão final de uma obra que poderia ser mais do que é, embora por tudo que discute – e como discute – se constitua num livro importante e que merece ser conhecido.

Marcello Simão Branco





[1] Mesmo assim, lembremos que este não é o único romance de ficção científica deste autor. Ele publicou A Porta de Chifre, em 1986, outra distopia, esta ecológica e situada na Amazônia em 2352, no qual a exploração do espaço fracassou e as florestas transformaram-se em deserto, com falta de água e de recursos energéticos.
[2] No livro Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro, Devir, 2005.
[3] O conceito é do cientista político argentino Guillermo O’Donnell, em Análise do Autoritarismo Burocrático, Paz e Terra, 1990.

domingo, 28 de junho de 2015

A Górgona (The Gorgon, Inglaterra, 1964)


A dupla de atores ícones do gênero Horror, Peter Cushing e Christopher Lee, estiveram juntos em vários filmes, agregando um valor inestimável ao gênero. Alguns destes filmes foram produzidos pelo cultuado estúdio inglês “Hammer”, e parte deles também teve a direção do especialista Terence Fisher, o principal cineasta da produtora. “A Górgona” (1964) reúne os três numa história com elementos góticos explorando um monstro da mitologia grega, com roteiro de John Gilling, a partir de uma história original de J. Llewellyn Devine.
“Sobre a aldeia de Vandorf se ergue o Castelo Borski. Desde a virada do século, um monstro de tempos remotos chegou para viver lá. Ninguém que tenha se deparado com ele sobreviveu, e o espírito da morte ronda esperando sua próxima vítima.”
Com essa narração, o filme tem início com uma ambientação no início do século XX numa pequena cidade alemã. O médico de um hospital psiquiátrico, Dr. Namaroff (Peter Cushing), tenta guardar um segredo envolvendo a ocorrência de mortes misteriosas na região durante a lua cheia, com os cadáveres literalmente petrificados, registrando atestados de óbito falsos e encobrindo a verdade. Sua assistente, a bela Carla Hoffman (Barbara Shelley), não se sente à vontade com o excesso de super proteção do médico. A polícia, representada pelo Inspetor Kanof (Patrick Troughton), está pressionada pelo contínuo insucesso na investigação dos misteriosos assassinatos, num ambiente que evidencia uma conspiração de silêncio e medo. Nesse cenário de mistério, as coisas complicam mais ainda após a chegada no vilarejo de Paul Heitz (Richard Pasco), que vem para investigar a morte de seu pai, o Prof. Jules Heitz (Michael Goodliffe), estudioso de mitologia grega e que morreu em circunstâncias estranhas. O jovem recém chegado se apaixona por Carla, que corresponde o seu interesse amoroso. Ele também solicita a ajuda de seu amigo Prof. Karl Meister (Christopher Lee), um conceituado acadêmico da Univedrsidade de Leipzig, para juntos tentarem descobrir o mistério por trás das mortes cujas vítimas foram transformadas em pedra.
“Havia três horrendas irmãs monstruosas, as Górgonas. Seus nomes eram Tisifona, Medusa e Megera. Tinham serpentes vivas nas cabeças e cada uma delas era um tentáculo do cérebro diabólico que possuíam. Tão espantosas eram as Górgonas que todo aquele que as viam se convertia em pedra.” – anotações do Prof. Heitz, escritas momentos antes de morrer petrificado, revelando informações sobre a lenda de dois mil anos de uma mulher com cobras na cabeça e que poderia estar em atividade ao se apossar do corpo de outra mulher.
Gosto pessoal é algo totalmente subjetivo, e no caso específico de “A Górgona” posso revelar que o filme está entre os meus preferidos da “Hammer”. Além da presença da dupla Cushing e Lee e do cineasta Terence Fisher, a ambientação gótica é bastante eficiente, com uma atmosfera sinistra constante, acentuada pelo castelo abandonado há meio século, envolto em névoa e cercado por árvores retorcidas e fantasmagóricas. E tem um monstro habitando suas ruínas decrépitas, a última das górgonas, que transforma suas vítimas em pedra. Apesar da concepção visual da górgona Megera (interpretada por Prudence Hyman) não ter agradado ao produtor Anthony Nelson Keys, que juntamente com Christopher Lee, revelou sua insatisfação com os efeitos toscos utilizados para simular as serpentes, e também pelos clichês inevitáveis da história, o filme ainda assim funciona muito bem como representante legítimo do estilo gótico e horror sugestivo da “Hammer”.
Curiosamente, o grande ator Christopher Lee, que normalmente faz os papéis de vilão (com destaque para o eterno vampiro “Drácula”), assume o posto contrário em “A Górgona”, interpretando um influente professor que tenta desvendar os assassinatos misteriosos em Vandorf. E Peter Cushing, que na maioria das vezes está do lado que combate o mal, é agora o principal articulador de uma conspiração para abafar a real causa dos assassinatos, apesar de sua motivação ser passional.      
(Juvenatrix – 28/06/15)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Mil Séculos Antes de Cristo (One Million Years B.C., Inglaterra, 1966)


Dentre as várias temáticas de filmes da produtora inglesa “Hammer”, existem aquelas ambientadas na pré-história, ou seja, aventuras com elementos de fantasia. “Mil Séculos Antes de Cristo” (1966) é um destes filmes, e que traz como diferencial a presença da belíssima Rachel Welch liderando o elenco ao lado de John Richardson (que esteve no anterior “A Deusa da Cidade Perdida”, 1965), além dos divertidos efeitos de “stop motion” do mestre Ray Harryhausen.
A direção é de Don Chaffey (de “Criaturas Que o Mundo Esqueceu”, 1971, também da “Hammer”), e a história se passa num longínquo período no passado, onde humanos primitivos e dinossauros conviviam no mesmo ambiente hostil, num planeta Terra ainda em formação. E com muitos perigos que ameaçavam a sobrevivência dos seres vivos, desde a natural e impiedosa cadeia alimentar até a instabilidade do solo, com terremotos e erupções vulcânicas catastróficas.
Nesse cenário, um dos homens primitivos, Tumak (John Richardson), é banido de seu grupo pelo próprio pai, o líder Akhoba (Robert Brown), sendo obrigado a explorar as regiões externas, deixando para trás sua antiga tribo, que vivia em cavernas. Após algumas aventuras perigosas e encontros com animais imensos interessados em sua carne, ele é acolhido por outra tribo, formada por homens e mulheres loiros, que também vivia em cavernas próximas ao mar, de onde tiravam parte de seu sustento com a pesca de peixes, além de um cultivo com agricultura rudimentar. Eles eram mais evoluídos, faziam pinturas nas paredes de pedra e fabricavam lanças pontudas para servir de armas na defesa contra os dinossauros e para facilitar a caça. Tumak desperta o interesse de uma bela moça, Loana (Rachel Welch). Porém, depois de uma briga, o intruso também é expulso do novo grupo, e Loana decide acompanhá-lo. Eles enfrentam juntos vários perigos e ameaças com ataques de dinossauros diversos, até reencontrarem a antiga aldeia de Tumak, gerando um confronto com o irmão rival Sakana (Percy Herbert), além de enfrentarem a devastadora erupção de um vulcão. 
Com apenas algumas frases de um narrador no início e grunhidos dos homens e mulheres pré-históricos no restante do filme, é inevitável o surgimento de certo desinteresse pela história. E o grande destaque despertando a atenção do espectador é o trabalho de “stop motion” de Ray Harryhausen, nas inúmeras cenas com dinossauros e monstros gigantes, tanto nos ataques aos humanos primitivos quanto nos confrontos entre si. Temos tartarugas, aranhas e lagartos gigantescos, sendo que no caso desse último, é um animal real filmado numa perspectiva que passa a sensação de gigante, uma técnica já utilizada em vários filmes anteriores como “Viagem ao Centro da Terra” (59), “O Gigante Monstro Gila” (59) e “O Mundo Perdido” (60). Além de primatas agressivos, criaturas voadoras e dinossauros de todos os tipos e tamanhos, todos ávidos por supremacia territorial, conquista de liderança e por saciar a fome com a carne dos rivais, incluindo no cardápio nossos antepassados.
“Mil Séculos Antes de Cristo” é uma refilmagem de “O Despertar do Mundo”, filme americano de 1940 e com Victor Mature e Lon Chaney Jr, e que por sua vez também foi refilmado pela mesma “Hammer” em 1970 com “Quando os Dinossauros Dominavam a Terra” (When Dinosaurs Ruled the Earth), dirigido por Val Guest.
(Juvenatrix – 24/06/15)

sábado, 20 de junho de 2015

A Deusa da Cidade Perdida (She, Inglaterra, 1965)


A produtora inglesa “Hammer” é normalmente lembrada por seus filmes de horror gótico, mas também fazem parte de seu catálogo histórias de aventura com elementos de fantasia, como “A Deusa da Cidade Perdida” (1965), com direção de Robert Day e roteiro de David T. Chantler, baseado em livro de H. Rider Haggard. E no elenco ainda temos a dupla Peter Cushing e Christopher Lee, e eles atuam ao lado da estonteante atriz suiça Ursula Andress, a “deusa” do título nacional.
Na Palestina de 1918, um arqueólogo a serviço do exército inglês, Major Horace L. Holly (Peter Cushing), juntamente com seu fiel mordomo Job (Bernard Cribbins) e o jovem amigo aventureiro Leo Vincey (John Richardson), tentam descansar num bar dançante, bebendo, conversando e se divertindo com as belas mulheres locais. Porém, a incrível semelhança física de Leo com uma imagem num medalhão antigo, desperta uma atenção especial e ele recebe um anel precioso e um mapa para localizar a misteriosa cidade faraônica de Kuma, perdida no vasto deserto em direção à África. Os três amigos montam uma pequena expedição com a esperança de encontrar a cidade e possíveis tesouros. Kuma é governada com tirania por uma linda e sobrenatural mulher chamada Ayesha (Ursula Andress), que tem o poder de imortalidade, e que conta com o apoio do sumo sacerdote Billali (Christopher Lee) para manter a ordem e obediência com os escravos. Ela acha que Leo pode ser a reincarnação de seu amado companheiro de séculos atrás, Callicrates, oferecendo-lhe a oportunidade de vida eterna com poder e riquezas.
O filme é uma típica aventura com fantasia, daquelas que eram exibidas com frequência na saudosa “Sessão da Tarde” da TV Globo. O tema de “cidade perdida” costuma despertar a curiosidade, instigando a imaginação sobre as lendas de civilizações escondidas. Peter Cushing, como sempre, lidera o elenco com seu talento característico, e Christopher Lee aparece menos, ficando com um papel secundário, mas sua presença sempre é motivo de interesse. E tem a beleza de Ursula Andress, no auge da carreira na época, após atuar com Sean Connery no filme do agente secreto 007 em “O Satânico Dr. No” (1962).  
O escritor Henry Rider Haggard é conhecido por suas histórias de aventuras que inspiraram muitos filmes como “As Minas do Rei Salomão” (1985) e “Allan Quatermain e a Cidade do Ouro Perdido” (1986), ambos com Richard Chamberlain. Além de “She”, que recebeu inúmeras outras versões no cinema.
“A Deusa da Cidade Perdida” teve uma sequência em 1968, “A Vingança da Deusa” (The Vengeance of She), também com produção da “Hammer”.
(Juvenatrix – 20/06/15)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Steampunk: Histórias de um passado extraordinário

Steampunk: Histórias de um passado extraordinário, Gianpaolo Celli, org. 182 páginas. Capa de Marcelo Tonidandel e Verena Peres. Tarja Editorial, São Paulo, 2009.

Os fãs gostam de estar na crista da onda, antenados com as ondas estrangeiras, especialmente dos EUA e Reino Unido. Assim também são autores-fãs, que acreditam que explorar novos ambientes e novos instrumentos narrativos é o atalho para a criação de algo novo, tendo esse novo valor suficiente por si mesmo. Antes mesmo da habilidade técnica, o autor-fã acredita na originalidade, e sobre ela costuma ser muito ciumento. Dessa forma, as ondas do cyberpunk, o new weird e, agora, o steampunk, chegaram aos fanzines muito mais rapidamente que a qualidade narrativa dos autores, reverenciadas como aspectos de uma originalidade mais que desejada. Essa falta de maturidade técnica acaba impedindo que a maior parte dos autores compreenda profundadamente o que esses movimentos significam em toda a sua amplitude, e acabam por adotar apenas seus aspectos mais óbvios, não raro criando um modelo que, ao fim e ao cabo, é mais cerceador que libertador.
Dessa forma, o cyberpunk foi emulado pelos fãs brasileiros apenas pela presença intensiva da virtualidade e uma linguagem forrada de jargões tecnológicos; o new weird transformou-se tão somente na mistura de gêneros estilo "tudo ao mesmo tempo agora". O steampunk, enfim, foi estigmatizado pelos cenários vitorianos com tecnologias imaginárias ou extrapoladas. E assim sendo, o steampunk sequer é novidade. Afinal, essas características já estavam presentes nos primórdios da ficção científica. Os cenários são os mesmos que vemos nos primeiros textos de ficção científica de Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells e seus contemporâneos. Então, por que isso agora?
Desde os anos 1990, especialmente no Brasil, os leitores progressivamente desinteressaram-se pelas promessas do futuro e voltaram-se para o passado: romances históricos, fantasia medieval e horror gótico passaram a ser o tipo de leitura comercialmente melhor sucedida. A ficção científica acompanhou a tendência justamente com o steampunk, encampando o romance histórico a partir da história alternativa – que pode aproveitar personagens reais – e da ficção alternativa, na qual são emprestados os personagens de ficção em domínio público, como Sherlock Holmes, Allan Quartermain e Drácula.
A editora Tarja, gerenciada por jovens escritores de ficção fantástica, decidiu assumir o subgênro e reuniu nove trabalhos inéditos na que propôs ser a primeira antologia steampunk da ficção brasileira, organizada por Gianpaolo Celli sob o título de Steampunk: Histórias de um passado extraordinário. Ainda que seguindo o mesmo princípio derivativo que historicamente caracteriza a ficção científica brasileira, o livro logrou ser um dos melhores momentos do gênero em 2009. Autores experientes deram ao volume o estofo necessário para agradar aos leitores exigentes, e os autores estreantes revelaram uma qualidade acima da média das antologias publicadas.
O conto que abre a antologia é "O assalto ao trem pagador", assinado pelo organizador. Na virada do século XIX, três pesquisadores de aerostatos, cada um deles representante de uma sociedade secreta que manipula os destinos do mundo, criam um dirigível especial para roubar o carregamento de ouro de um trem superarmado. Apesar da boa narrativa, a moral da história é discutível e os personagens esquemáticos não evocam a simpatia do leitor.
Em seguida encontramos "Uma breve história da maquinidade", do experiente tradutor Fabio Fernandes que, em 2009, também publicou Os dias da peste, seu primeiro romance pela mesma Tarja Editorial. O autor mergulha na ficção alternativa, emprestando de Mary Shelley o Doutor Victor Frankenstein que, depois do fracasso com a criatura de carne, decide construir homens de metal. Associado a outros notáveis, cria uma fábrica de robôs e muda os caminhos da civilização do início do século XIX, colocando um serviçal robótico na casa de cada família. Com o passar dos anos, as máquinas ganham consciência e passam a reivindicar seus direitos civis, algo similar à clássica peça R.U.R., do escritor tcheco Karel Capec, não obtém contudo a mesma eficiência dramática.
"A flor de estrume" é a estreia do jornalista Antonio Luiz M. C. Costa como escritor. A história se passa em São Paulo, no início do século 20, em uma realidade em que os povos nativoamericanos não foram extintos e desenvolveram alta tecnologia. Um espião europeu tenta roubar do Instituto Butantã um produto recém-desenvolvido: a penicilina. O conto abusa de termos tupi-guaranis e investe no detalhamento dos cenários, construindo imagens pungentes que inserem o leitor nesse ambiente exótico com grande eficiência, mas abandona a história em si. O ambiente minucioso contrastado com um conflito ligeiro deixa impressão de uma história que terminou antes da hora, que pede para ser estendida.
"A música das esferas" também é estreia do autor Alexandre Lancaster. Um jovem prodígio em tecnologia envolve-se no que parece ser um caso de assassinato. Junto a um policial de técnicas pouco ortodoxas, enfrentam os riscos de uma descoberta científica muito perigosa. A primeira metade do conto é perfeita, com personagens bem montados e um mistério instigante a ser resolvido mas, na busca por uma narrativa intensa, a conclusão se vulgariza num show hollywoodiano de fogos de artifício. Ficou a sensação de ser o primeiro de uma série.
"O plano de Robida: Un voyage extraordinaire" é o texto mais longo do livro. Assinado pelo experiente Roberto de Sousa Causo que, em 2009, também publicou o romance Um anjo de dor, pela editora Devir Livraria, conta uma bem urdida aventura que mescla ficção e história alternativas. A bordo de um dirigível, um comando militar, acompanhado de um alternativo Alberto Santos Dumont, ataca forças terroristas internacionais acampadas na selva brasileira. Capturados, confrontam Robert Robida, o líder dos terroristas, que pretende tornar-se o senhor do mundo dominando tecnologias modernas e conhecimentos tão antigos quanto a civilização humana. O conto dialoga claramente com o romance Robur, o conquistador, de Júlio Verne, mas Causo mudou o nome do vilão provavelmente em homenagem ao importante ilustrador dos livros de Verne, Albert Robida (1848-1926). Também homenageia os romances de mundo perdido dos primórdios da ficção científica brasileira, como Amazônia misteriosa (1925) de Gastão Crulz e A cidade perdida (1948) de Jerônymo Monteiro. Uma verdadeira new weird, com dinamismo e conflitos em doses certas. A conclusão em aberto sugere uma sequência.
"O dobrão de prata", de Claudio Villa, escapa um tiquinho do formato geral dos demais contos da antologia, pois investe no terror sobrenatural ao invés da ficção científica. Um pesquisador acadêmico embarca numa aventura marítima em busca de um tesouro naufragado. Conto simples, que busca o estilo de H. P. Lovecraft.
A convencionalidade do conto de Villa valoriza ainda mais a sofisticação do texto seguinte, "Uma vida possível atrás das barricadas", de Jacques Barcia, o melhor texto do livro, candidato às listas de melhores contos da ficção científica brasileira. Um estranho casal – um robô e uma golem – foge para onde sabe que conseguirá ajuda para gerar um filho. Mas o local enfrenta uma revolução trabalhista e a guerra é um perigo contínuo. Uma história forte, com personagens interessantes e narrativa vigorosa e criativa. Contudo – e isso não é demérito algum – está mais para cyberpunk do que para steampunk, sem fazer uso das convencionalidades de nenhum dos dois subgêneros.
Em "Cidade phantástica", de Romeu Martins, o personagem principal é um super-edifício onde um delegado investiga os desdobramentos de um sequestro. As muitas citações podem agradar aos que gostam de caçar detalhes.
Flávio Medeiros fecha a seleta com "Por um fio", deliciosa homenagem à obra de Júlio Verne – sempre ele – contando o confronto de seus dois sociopatas favoritos, Nemo e Robur, cada qual em seu veículo de guerra característico num combate até a morte. Ecoa também A raposa do mar (The enemy bellow, 1957), longa metragem que narra uma dramática batalha entre um couraçado americano e um submarino alemão.
Numa avaliação geral, a qualidade da antologia está acima da média, equilibrada e bem editada. Peca apenas pela falta de originalidade, já que a proposta é, sem nenhum pudor, emular um subgênero que parece estar na moda. Já se vê por aí grupos de fãs fantasiados de Bat Masterson, de colete, polainas, bengala e chapéu coco, tentando implementar, tal como os fãs de Star Trek, um estilo de vida steampunk.
Não há nisso, portanto, muito mérito, pois não se percebeu empenho dos autores, exceção feita a Jacques Barcia, em fugir dos paradigmas do steampunk. A recorrência aos aerostatos e a Júlio Verne mostra que ou os autores tiveram dificuldade em visualizar alternativas para o ambiente ou simplesmente não se empenharam em desdobrar o modelo em algo mais original.
Mas talvez a editora Tarja pretenda dar sequência ao projeto com um segundo volume. Então, quem sabe, os novos valentes que se lançarem a tarefa dediquem-se um pouco mais e consigam escapar do beco sem saída de homenagens, citações e derivações com que a antologia apresentou o gênero.
Cesar Silva
* A editora Tarja encerrou suas atividades em 2013 sem efetivar a publicação de um prometido segundo volume da antologia, que chegou a ser anunciado em diversas fanpages ligadas ao tema. Contudo, lançou outros títulos que com ela dialogam, como a antologia Retrofuturismo, publicada em 2013 com contos de proposta algo mais ampla. A mais importante herança da antologia Steampunk, contudo, é a enorme quantidade de antologias similares que a ela se seguiram por várias outras editoras, que ainda repercutem no fandom brasileiro.

O Rasgão no Real, Braulio Tavares

O Rasgão no Real – Metalinguagem e Simulacros na Narrativa de Ficção Científica, Braulio Tavares. Editora Marca de Fantasia – Coleção “Quiosque” n. 14, João Pessoa (PB), 75 páginas, 2005.

Este livro chega depois de quase duas décadas do primeiro de não-ficção do autor: O Que é Ficção Científica, publicado pela editora Brasiliense em 1986. Era uma introdução aos principais conceitos da ficção científica e ainda hoje pode ser lido com interesse. Já este O rasgão no real elabora questões mais complexas, pois é uma obra escrita para iniciados, embora possa ser lido sem susto por um leigo interessado.
Neste trabalho, o autor aborda várias questões relativas ao conceito de ‘realidade’, tal como vem sendo pesquisado pela ciência e exercitado tanto na literatura em geral como especialmente no gênero ficção científica. A primeira questão enfrentada no livro, contudo, é essencialmente pertencente ao campo das artes, a metalinguagem, como uma espécie de nova tradição literária, consequência da ruptura com o realismo, realizada pelo modernismo e posteriormente pelo pós-modernismo.
Dos romances realistas vitorianos do século XIX, no qual o narrador é quase sempre onisciente e o leitor tem uma sensação quase viva de que a história tem um plano de realidade próprio, as tendências literárias – especialmente a partir de meados do século XX – passam a refletir sobre o seu próprio objeto de experimentação criativo, o romance e demais formas da prosa, no qual o autor questiona cada vez mais o sentido da realidade da narrativa e dialoga com o leitor de forma explícita, estabelecendo com ele uma quebra no distanciamento onisciente. Ao deixar claro que a história em si é uma fraude, porque é uma ficção, coisa inventada. Assim, também as próprias convenções da arte da escrita literária são posta em discussão, numa mudança radical do período realista.
Tavares aponta com correção que a maioria dos romances de ficção científica se passam em um plano de construção realista, mais conservador do ponto de vista da técnica narrativa. Isso soa um pouco estranho, pois mesmo aquelas histórias de enredos grandiosos, fantásticos e sense of wonder tem esta, ‘carpintaria’, para usar uma expressão do crítico, mais convencional. Isso em nada desmerece o gênero como tal e é até possível defender que a ficção científica em geral fique melhor apoiada neste tipo de técnica narrativa, pois trabalha dentro de uma concepção racional de explicação de um elemento extrapolativo, especulativo, que ainda não existe. Ou seja, a ideia da ‘literatura de ideias’, que se passa prioritariamente no nível do enredo.
Claro que não há impedimentos para uma ficção científica metalinguística, que até gire em torno de si mesma, seus conceitos e tradições históricas autorreferentes. Há obras deste tipo, embora não numa quantidade expressiva, como há (ou houve em certo momento) dentro da literatura mainstream, no qual o próprio enredo passou a ser um elemento subisidiário ou até dispensável, dentro desta linhagem estilística.
Ainda assim, é fato de que a grande mudança de estilo e de enredos dentro da literatura de ficção científica ocorreu nos anos 60, com o surgimento da New Wave. Não só as ciencias sociais se estabeleceram como assuntos relevantes de especulação dentro do gênero, mas também a forma como estes novos temas foram abordados, ou seja, por meio de um salto de qualidade no estilo, na forma como as histórias eram estruturadas e contadas. E nisso, o gênero pode ter perdido – a exemplo da literatura mainstream – um pouco do seu frescor, ou de sua ingenuidade digamos, cognitiva-realista.
Desta discussão sobre a inserção metalinguística na Arte, e em especial na literatura, Tavares expande o campo de interpretação das diferentes noções de construção da realidade, por meio da análise do conceito de mídia ambiente (media landscape). De que forma a onipresença diária dos mais diferentes meios de comunicação interfere em nossos sentidos e consciência sobre o que somos, onde estamos e para onde (possivelmente) vamos.
Mais especificamente, mídias como cinema, rádio, televisão, publicidade, jornal, revista, moda, internet, telefone, celular, webcan, videoconferência etc etc. O mundo está fisicamente integrado por causa do desenvolvimento tecnológico e está também interagido de forma on-line, como se tudo acontecesse ao mesmo tempo agora. Mas sempre recortado e interpretado por fontes diferentes, que transmitem mensagens e visões não necessariamente homogêneas de um mesmo fenômeno ou conjunto deles. E aqui a ideologia, como forma de construção de modelos sociais e falseamento do mundo como ele é, continua a cumprir um papel relevante e potencialmente subversivo.
Tavares situa com precisão como a mídia ambiente é trabalhada no contexto da ficção científica: “As histórias que abordam a Mídia Ambiente não utilizam nenhum dos clichês tecnológicos atrelados à ficção científica (robô, espaçonave, supercomputador, máquina do tempo), mas seu espaço temático é tecnológico e humanístico por igual. São histórias que examinam o impacto social das novas tecnologias de comunicação, informação e controle.” (página 35).
 O ponto seguinte é a conexão possível entre esta onipresença midiática e a criação de mundos artificiais, realidades virtuais, ou seja, o mundo do simulacro, aquele derivado de uma criação eletrônica, à nossa imagem e semelhança. Aqui o principal elemento de análise recai em algumas obras de Philip K. Dick (1928-1982), escritor central no tema do questionamento sobre o que é ou não Real.
Da análise de obras de Dick, como O Homem mais Importante do Mundo (Time out of Joint) e de outros autores como o Simulacron 3, de Daniel F. Galouye e filmes como O Show de Truman e Matrix, o livro parte para o próximo capítulo: “O véu de Maya: o mundo não existe!”. Aqui a discussão vai – literalmente – longe, ao refletir sobre de que maneiras os conceitos da física quântica têm alterado a maneira humana de compreender a realidade e sua inserção nela. O fato é que não existe nada que seja absoluto, mas mesmo este relativismo não é suficiente para dar conta de explicações satisfatórias, pois cada ângulo de observação é limitado por si mesmo e – o principal –, interfere na estrutura da realidade no ato mesmo em que há uma observação (uma intervenção). Grosso modo, o tal ‘princípio da incerteza’ de Heinzenberg, no qual observador e observado interagem um com o outro e alteram mesmo a disposição e condição de cada um no fenômeno físico.
Como se percebe este capítulo, em particular é complexo e ao mesmo tempo fascinante. Mas, caro leitor – ei, olhe uma interferência metalinguística nesta resenha! –, não ache que são assuntos complicados demais, pois o autor tem um ótimo poder de síntese e clareza na exposição de ideias e conceitos artísticos ou científicos, como neste último caso.
E esta virtude é especialmente saborosa para os leitores de ficção científica, porque o foco do livro é de que forma estas questões candentes e inconclusas são trabalhadas pela literatura de ficção científica. Aqui no caso da discussão da física quântica, Tavares a comenta do ponto de vista das obras do autor australiano Greg Egan, em romances como Quarantine e Distress, numa espécie de cosmologia subjetiva, ou uma aproximação instigante entre a cosmologia e a metafísica, uma das tendências últimas do gênero. Pois, para o autor: “À medida que as especulações da física teórica vão se tornando mais fantásticas, a ficção científica hard sente-se autorizada a conceber os cenários mais delirantes, inclusive os que implicam na metalinguagem terminal de questionar a própria realidade do mundo habitado pelo leitor.” (página 53).

Além desta questão fascinante e perturbadora, Tavares explora nos dois últimos capítulos a ‘excessiva’ realidade posta em prática pela parafernália tecnológica desenvolvida, especialmente no cinema, fazendo com que o que é visto nas telas seja mais real do que a própria realidade, uma espécie de anti-clímax.  E o último tópico relaciona-se com a chamada ‘ficção catalográfica’, “em que a descrição minuciosa de ambientes, personagens, indumentárias, cidades, acidentes geográficos, armas, utensílios, animais, entes sobrenaturais, feitiços, e encantamentos etc, precede e determina (as vezes até dispensa) a criação das histórias propriamente ditas.” (página 68). Exemplos como os chamados universos compartilhados, séries de televisão e mesmo os jogos interativos, como os role playing games (RPG), todos cada vez mais comuns e presentes, seja na FC&F literária ou audiovisual.
Mesmo assim o livro não trata de todas as possíveis maneiras de interpretar a realidade (ou as realidades). Cenários e temas como os de alteração de nossa percepção por universos paralelos e realidades alternativas, ação de um superinteligência alienígena ou de uma forma de vida insuspeita, e- feitos ‘paranormais’, sonhos e pesadelos, ingestão de drogas e distúrbios mentais – entrando aqui na discussão adjacente sobre o que é ‘normal’. Todos estes outros temas muito presentes e com destaque dentro da ficção científica e fantasia.[1]
 Mas Tavares demarca bem o campo de sua análise, mais voltado para o entendimento da realidade dentro de criações artificiais (metalinguagem, mídia ambiente, física quântica, catalografia), engendradas direta ou indiretamente pela ação humana. E de como o ser humano lida com estas outras realidades e seus paradoxos consequentes.
Cabe também ponderar como os brasileiros lidam com os temas tratados no livro. Sim, porque Tavares usa exemplos apenas da ficção científica internacional. É uma opção metodológica legítima, mas uma abordagem que incluísse também a ficção científica brasileira ajudaria a ampliar o leque, tanto temático, como de uma possível contribuição específica, um jeito brasileiro de abordar o que é ou não real. Os autores brasileiros que já escreveram histórias metalinguísticas e com diferentes concepções de realidade são, entre outros, André Carneiro, Carlos Orsi Martinho, Fábio Fernandes, Ivan Carlos Regina, Jorge Luiz Calife, Lúcio Manfredi e Roberto de Sousa Causo.
 Em suma, um livrinho pequeno no tamanho e grande no conteúdo. Trata de assuntos intricados de maneira didática e com bons exemplos complementares, tornando a leitura agradável e difícil de ser largada até o final. Mais uma contribuição preciosa do autor ao rarefeito campo da crítica e referencia sobre ficção científica no Brasil.

-- Marcello Simão Branco

[1] Nesse sentido, creio que a discussão de um livro como Solaris, de Stanislaw Lem, seria um acréscimo interessante à obra.

domingo, 14 de junho de 2015

Independence Daysaster (Canadá, 2013)


Típico exemplo do cinema bagaceiro do século XXI. Com produção canadense e direção de W. D. Hogan, de “Behemoth” e “Earth´s Final Hours” (ambos de 2011). Foi exibido pelo canal de TV a cabo “SyFy”, que ajudou na distribuição mundial. O título picareta já diz tudo, com uma história de invasão alienígena no comemorativo dia 04 de Julho nos Estados Unidos, data que lembra a sua independência. Curiosamente, o filme nem é americano, com seus vizinhos de cima demonstrando falta de imaginação, e optando por explorar um assunto que já é um clichê exaustivo. E o nome, com uma junção oportunista das palavras em inglês “Day” e “Disaster”, também nos remete ao anterior da década de 90 do século passado, com Will Smith, Bill Pullman e Jeff Goldblum, mais conhecido e produzido com muito mais dinheiro.
Na história, uma pequena cidade do interior dos Estados Unidos é destruída por imensas máquinas perfuradoras que saem debaixo do solo, com o apoio aéreo de pequenas sondas esféricas voadoras, equipadas com armas poderosas, e que estão em comunicação com uma imensa nave mãe estacionada perto da lua. Logo é revelada uma invasão extraterrestre em escala mundial, num ataque maciço com grande poder de destruição e caos global. Para combater a ameaça mortal dos alienígenas é lógico que temos um improvável time de heróis formado por cidadãos comuns que formarão a base da resistência. O bombeiro Pete Garcette (Ryan Merriman), que é irmão do Presidente americano Sam Garcette (Tom Everett Scott), encontra-se com Celia Lehman (Emily Holmes), uma técnica do programa “S.E.T.I.” (Procura por Inteligência Extraterrestre). Eles se juntam com um grupo de adolescentes que incluem o filho do Presidente, Andrew (Keenan Tracey) e sua namorada Eliza (Andrea Brooks), além de um casal de nerds especialistas em informática e invasão de sistemas de comunicação. O grupo descobre uma arma capaz de anular o funcionamento das sondas voadoras alienígenas e tenta avisar o exército num plano de retaliação contra os invasores.
Patético do início ao fim, barulhento, sonolento, com elenco inexpressivo, CGI vagabundo e história entediante de tão previsível, carregada de ufanismo americano. Eles são os salvadores do mundo, nunca desistem, e nosso planeta sem a sua proteção certamente seria um alvo fácil para qualquer invasão alienígena. São tantos filmes medíocres que insistem nesse clichê que fica difícil criar algum tipo de sintonia com a história. O resultado acaba surtindo um efeito contrário, com o espectador impaciente obrigando-se a torcer pelo extermínio da humanidade e pelo sucesso dos invasores vindos do espaço.       
(Juvenatrix - 14/06/15)

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Solarium: Contos de ficção científica

Solarium: Contos de ficção científica, Frodo Oliveira, org. 178 páginas. Editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2009.

Durante muito tempo, foi nas antologias que a ficção científica brasileira teve seu melhor desempenho. Tanto na conhecida Primeira Onda da ficção científica brasileira, com as edições da GRD e da Edart, quanto na Segunda Onda, quando a GRD também deu importante apoio, entre outras editoras. Avaliava-se, então, que os autores brasileiros tinham melhores resultados na forma curta, talvez por alguma inexplicável afinidade cultural, ou porque esse era o único formato que permitia alguma publicação. Nos fanzines, o conto também imperava majestoso e ainda é no formato curto que identificamos os trabalhos mais relevantes do gênero no país.
Depois de um período de vacas muito magras, ao longo do início do século 21, quando a ficção científica migrou para a internet de onde parecia que não sairia mais, a queda nos custos gráficos e principalmente a possibilidade de produzir tiragens por demanda facilitou a volta dos livros. Os muitos romances escritos durante os anos de internet, sem os limites de um projeto gráfico prévio, tiveram então a chance de conhecer publicação real e a ficção longa ocupou o espaço, enquanto as antologias não acompanharam o crescimento na mesma proporção.
Em 2009, porém, foi diferente. Surgiram novos projetos coletivos numa explosão de antologias por diversas editoras, algumas fruto de concursos, outras do investimento direto das editoras, outras ainda viabilizadas pela cooperação financeira dos próprios autores. Desse modo, podemos considerar que 2009 foi o grande ano das antologias no Brasil, com quase meia centena de títulos publicados entre ficção científica, fantasia e horror, que por si só superou largamente a produção das antologias em todos os anos 1990, por exemplo.
Solarium: Contos de ficção científica, organizada pelo escritor pernambucano Frodo Oliveira (Sinistro!, A torre negra) para o selo Antology da editora carioca Multifoco, foi uma das primeiras antologias publicadas em 2009. Não se trata de uma antologia temática e os autores tiveram total liberdade para escrever. A apresentação do volume é  econômica e nem traz um prefácio que contextualize a sua proposta editorial. Um brevíssimo texto na contracapa diz: "Bem vindo ao futuro. Este é o convite que a antologia Solarium faz aqueles que não têm medo de vislumbrar o que ainda está por vir. Cidades perdidas, seres de outros planetas, batalhas monumentais, galáxias distantes, tudo isso faz arte do inconsciente coletivo dos que, um dia, se apaixonaram pelo mundo fantástico da ficção científica. Convidamos você a desvendar conosco o grande mistério que é o futuro, este eterno desconhecido."
A antologia apresenta nada menos que 25 textos de 21 autores de todo o país mais um de Portugal, a maioria deles já com alguma experiência nas letras, ao lado de quatro estreantes. Quero destacar aqui alguns contos que, na minha opinião, apresentam qualidade superior entre o conjunto.
"Desvios", de Ricardo Delfim, é o trabalho mais curto da antologia, com cerca de 300 palavras. Trata-se de uma  romantização da juventude do pesquisador inglês Charles Darwin. Não é ficção científica e sequer chega a ser fantástico, mas é muito bem escrito e dá prazer de ler. Sua textura realista somada a ótima técnica do autor, que resolve muito bem o trabalho em poucas palavras, o destacam no conjunto.
"Esperança", de André Garzia, é outro bom trabalho. Numa espaçonave à deriva, crianças e adolescentes sobreviventes de uma guerra têm que redescobrir a aritmética depois que a última calculadora eletrônica à bordo quebra. Ainda que seja uma premissa um tanto absurda, o conto tem amplas qualidades narrativas, bons diálogos e personagens bem marcados. Merece ser desenvolvido: eu leria com satisfação um romance inteiro com essa premissa.
"Mutante alcoólatra", de Magalhães Neto, narra os delírios de um caboclo futurista sob influência do álcool. A ideia ótima e a técnica profissional mereciam um título melhor elaborado.
Em "Os estranhos", de José Geraldo Golveia, sobreviventes de uma praga de vampiros que devastou o mundo tentam superar mais um dia de horror. O melhor conto do livro, com ação, drama e estranhamento em doses generosas.
"Oxia Palus" do português Nuno Lago, é ousado. Militares de folga participam de um jogo no qual vence quem tiver o melhor sonho erótico. O conto destaca-se, além do erotismo, pela técnica apurada e o bom desenvolvimento dos personagens.
Em "País de gelo", de Victor Stefano, escritora em crise criativa tem devaneios com uma gravidez psicológica. Dramático e pósmoderno, surpreende pela qualidade narrativa e pela idade do autor, de apenas 15 anos, que estreou nesta antologia. Uma promessa que já se cumpre, o autor deve ter um futuro brilhante.
Entre os demais trabalhos, alguns têm boa técnica, outros são criativos, mas ou não apresentam bom desenvolvimento ou pecam pela falta de originalidade e ousadia, o que é natural num grupo de autores tão heterogêneo, muitos deles ainda carentes de experiência, com uma visão convencional do gênero. A avaliação final é de uma antologia mediana, que revela algum potencial.
Tudo indica que o projeto Solarium foi comercialmente bem sucedido. Em novembro de 2009, a mesma editora distribuiu Solarium volume 2, e um volume 3 foi lançado em 2014, ambos organizados por Frodo Oliveira com outra batelada de contos inéditos de ficção científica, configurando assim mais um periódico brasileiro publicado em forma de livro, que vem se unir aos igualmente periódicos Ficção de polpa, da Não Editora, Imaginários, da Editora Draco, Sagas, da Argonautas, bem como os já cancelados – mas igualmente valiosos – Paradigmas, da extinta Tarja Editorial, e Portal, organizado e publicado pelo escritor Nelson Oliveira, verdadeiros fanzines do século 21, com muito orgulho.
Cesar Silva

domingo, 7 de junho de 2015

O Fim do Amanhã / No Limite da Salvação (Age of Tomorrow, EUA, 2014)


A produtora americana “The Asylum” é conhecida por seus filmes tranqueiras de ficção científica e horror, com roteiros ridículos, atores inexpressivos e efeitos especiais vagabundos. São produções baratas feitas em pouco tempo sem qualquer tipo de preocupação com lógica, verossimilhança ou qualidade. O importante é produzir em quantidade e descarregar seus filmes em lançamentos em DVD e exibições na televisão, como o canal a cabo “SyFy”, especializado no gênero. Podemos considerar como o “cinema bagaceiro do século XXI”, que se hoje é ruim demais e um exercício de coragem e excesso de tolerância para conseguir assistir, pode ser que daqui meio século essas porcarias até sejam cultuadas, justamente por suas características bagaceiras. Assim como atualmente temos uma legião de apreciadores dos filmes tranqueiras com roteiros absurdos e efeitos toscos produzidos em imensa quantidade a partir de meados do século passado.
“The Asylum” também é conhecida por descaradamente e assumidamente copiar o nome, a ideia central e partes das histórias de filmes com orçamentos milionários, aproveitando o sucesso comercial dos chamados “blockbusters”. Eles lançam em pouco tempo as suas versões fuleiras desses filmes de grandes bilheterias, que ganharam o nome pejorativo “mockbusters”. Dentro desse princípio, a produtora oportunista fez “O Fim do Amanhã” (Age of Tomorrow), dirigido por James Kondelik, e que também ganhou o título no Brasil de “No Limite da Salvação”, quando exibido pelo canal de TV “SyFy” (algo típico em nosso país, que costuma criar vários nomes para os filmes, confundindo e dificultando um trabalho de pesquisa e catalogação). No caso, o plágio é para o ótimo “No Limite do Amanhã” (Edge of Tomorrow), com o astro Tom Cruise.
Na cópia picareta, um grande asteróide está em rota de colisão com a Terra, obrigando o exército, sob o comando do General Magowan (Robert Picardo), com o auxílio do Coronel Mac (Mitchell Carpenter), a organizar uma equipe para uma missão que viajaria até o asteróide a bordo de um foguete e tentaria explodir partes dele, desviando sua rota. A equipe é liderada pelo Capitão James Wheeler (Anthony Marks), que conta com a ajuda da cientista Dra. Gordon (Kelly Hu), entre outros. Lá chegando, eles encontram uma caverna e em seu interior uma sala de controle com um portal tecnológico de teleporte para outro planeta, descobrindo que o asteróide é apenas uma ponte para uma invasão alienígena. Enquanto isso, numa trama paralela, na Terra as pessoas estão sendo atacadas por máquinas fortemente armadas e um bombeiro metido a herói (típico dos americanos), Chris Meher (Lane Townsend), se junta ao militar Major Blake (Nick Stellate) para combater a ameaça do espaço e tentar encontrar sua filha no meio da confusão. Todos acabam se encontrando no planeta dos invasores e descobrem que eles estão abduzindo os humanos, mantendo-os prisioneiros e fazendo experiências. É inevitável um confronto mortal com eles com os heróis lutando pela continuidade da civilização humana.
O filme foi rodado em Los Angeles, na California, em apenas quinze dias, o que dá para imaginar o resultado final, com a história sendo contada muito rapidamente, sendo impossível estabelecer qualquer tipo de empatia com os personagens, que são fúteis ao extremo. Tudo é bagaceiro demais, desde o elenco patético ao CGI vagabundo. O bombeiro herói usa um machado como arma, desferindo golpes para todos os lados, destruindo as sondas robóticas que atacam a Terra e os alienígenas em seu planeta, e o machado está sempre limpo e impecável. As decisões estratégicas para definir o futuro da humanidade que está com risco de extinção por uma invasão alienígena, são todas tomadas por um único militar, pois o filme não tem orçamento para reunir uma conferência com representantes que definiriam melhor o destino de nosso mundo.
“O Fim do Amanhã” é um filme tão descartável que nem mereceria ter tantas linhas nessa resenha. 
(Juvenatrix - 07/06/15)

sábado, 6 de junho de 2015

A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig

A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig. Capa e ilustrações de Maurício Veneza. 168 páginas. Cortez Editora, São Paulo, 2009.

A ficção fantástica produzida no Brasil, com honrosas exceções, não privilegia as características nacionais. Não que isso tenha sido sempre assim. Muitos fantasistas brasileiros não sentiram dificuldade em inserir o imaginário nos cenários brasileiros. Mas, no que se refere a fc&f contemporânea feita nos últimos 30 anos dentro dos muros do fandom, havia a princípio uma grande dificuldade em enxergar a fantasia e a tecnologia no ambiente cotidiano local. Os autores costumeiramente apelavam para ambientes europeus e norte-americanos, aproveitando também para batizar os personagens com nomes associados a cultura anglo-europeia, pois o contrario lhes soava de tal modo anacrônico que impedia que fosse levado a sério, o que o escritor Braulio Tavares veio a batizar como "Síndrome do Capitão Barbosa". Em 1986, o escritor-fã Ivan Carlos Regina (O fruto maduro da civilização, GRD, 1993), propôs nas páginas do fanzine Somnium um manifesto de valorização da brasilidade na ficção científica nacional, que ficou conhecido como Movimento Antropofágico da FCB, em referência ao Manifesto Antropofágico da Semana de 1922. Em torno do texto de Regina reagiram inúmeros autores, a favor e contra, e com os passar dos anos as imagens, nomes e culturas brasileiros emergiram em boa parte dos textos realizados pelos fãs, o que felizmente continua acontecendo hoje.
Contudo, muito disso deve-se a um esforço militante de um determinado setor que busca uma identidade para a ficção fantástica brasileira. A maior parte desses autores avançou sobre temas e conceitos que para si próprios não eram naturais. Não vou dizer aqui que isso não não funcionou, porque funcionou sim. Mas o "brasileirismo" vai muito além de ambientes.
Uma das maiores dificuldades dos autores é com os personagens. É muito difícil definir idiossincrasias pessoais sem cair na caricatura e no estereótipo. Na digna tentativa de evitar essa armadilha, os personagens acabam homogenizados, achatados num espaço de pouca manobrabilidade, que é ainda mais engessada nas mãos de autores menos experientes.
Então, para demarcar bem seus personagens, os autores costumam lançar mão dos arquétipos. Funciona, do ponto de vista dramático, mas os personagens ficam distantes do leitor, tão irreais como os personagens mitológicos.
Ainda há muita dificuldade em modular personagens e, entre os mais evitados, estão os personagens negros. Isso porque a ampla maioria dos autores brasileiros que se exercita na fc&f são brancos. Não passaram e nunca passarão pelas dificuldades de ser negro num país que aboliu a escravidão há pouco mais de um século. Talvez haja um certo mal estar entre esta legião de escritores brancos em se colocar no lugar de um negro brasileiro, então melhor nem tentar.
Entretanto, houveram tentativas bem sucedidas. Mas, de forma geral, os personagens negros só o são porque o autor decidiu descrevê-los assim. No mais, eles se comportam exatamente como qualquer outro, não há muita etnia em sua vida. Uma das desculpas recorrentes entre os autores é querer reafirmar a igualdade entre negros e brancos, que a cor da pele não faz diferença. Mas faz: interfere de maneira importante na psique do indivíduo e na forma como ele é tratado na sociedade. Talvez apenas os próprios autores negros tenham suficiente sensibilidade para construir personagens negros palpáveis mas, infelizmente, eles são minoria no fandom. Conheço pessoalmente apenas um, o experiente Julio Emilio Braz (Megalópilos, 2006, Rocco). Por isso, não é de se surpreender que tenham sido tão poucas as tentativas de usar o panteão africano como base de histórias especulativas. Talvez haja aqui alguma preocupação com o fato desse imaginário ser base de religiões ativas no país, como a umbanda e o candomblé.
Mesmo assim, a corajosa escritora gaúcha Simone Saueressig, autora de A noite da grande magia branca (Cortez, 2006) e A fortaleza de cristal (L&PM, 2006), ousou investir nesse tema em seu romance A estrela de Iemanjá, publicado pela editora paulista Cortez em uma edição ilustrada por Maurício Veneza, com acabamento luxuoso pouco visto nas letras nacionais.
A história, indicada pela editora para aulas de língua portuguesa, geografia e história, conta como três jovens pescadores negros, Tomás, Cosme e Daniel, inadvertidamente capturam em sua rede a poderosa estrela do mar de Iemanjá, roubada de sua proprietária por Joelho e Benevides, dois salafrários que para isso usaram um submarino. Durante a fuga, a estrela causa problemas na máquina e, morto de medo, Benevides joga fora a estrela por uma escotilha, justamente quando a rede dos meninos flutuava por ali.  Os poderes da estrela provocam uma tempestade furiosa que arremessa os garotos na praia de Aganjú, uma ilha desconhecida que não devia estar ali. Eles ajudam Ubatá, uma garota que está numa importante missão e para isso teve de roubar o amuleto de uma raça de seres ferozes. Para voltar para casa, os meninos terão de acompanhar Ubatá para o interior da ilha, em busca de ajuda. Mas eles não imaginam que Joelho e Benevides estão logo atrás deles, pois querem recuperar a estrela, que eles carregam sem saber do que se trata. A ilha de Aganjú esconde um universo maravilhoso, repleto de magia, perigos e mistérios que os meninos terão de superar caso queiram escapar dessa armadilha mortal, que envolve o próprio fim dos tempos para todo o planeta.
Não é a primeira vez que Simone conta uma história com orixás. Em O palácio de Ifê (L&PM, 1989), a autora enveredou pelo tema, numa aventura que também tem contornos juvenis, mas é algo mais dramática.
Simone não evita temas regionalistas e folclóricos, ao contrário, ela os persegue com rara criatividade e poesia. Talvez tenha sido por isso que a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil selecionou A estrela de Iemanjá para representar o Brasil na Feira do Livro Infantil de Bolonha 2010, junto a outros 210 títulos que foram apresentados a editores, escritores, ilustradores e estudiosos do mercado internacional. Foi a primeira vez que a autora de Novo Hamburgo teve um de seus livros selecionados para a mostra.
A simples presença do trabalho de Simone entre os leitores jovens cria uma boa expectativa para as futuras gerações de escritores, que terão nela uma excelente referência criativa.
Ainda que muita gente ainda sofra, por convicção, da Síndrome do Capitão Barbosa, está bastante claro que não há nenhuma dificuldade ou facilidade agregada ao texto apenas pelo fato dele fazer uso de imagens e etnias brasileiras. Não é preciso disfarçar a origem cultural para ser "melhor recebido" pelo mainstream, seja no mercado nacional seja no internacional. Faça-se o que quiser, tanto faz. O que conta a qualidade do trabalho realizado e, sem dúvida, isso não falta a Simone.
Cesar Silva

O Beijo do Vampiro (The Kiss of the Vampire, Inglaterra, 1963)


A produtora inglesa “Hammer” tem em seu vasto catálogo vários filmes de vampirismo, muitos deles com a dupla Christopher Lee e Peter Cushing liderando os elencos. Mas, também tem filmes sem a presença desses astros, como “O Beijo do Vampiro”, que traz Clifford Evans no papel do caçador de vampiros e Noel Willman no papel do líder de uma seita vampírica. A direção é do australiano Don Sharp, de “Rasputin – O Monge Louco” (66), e o roteiro é de autoria do produtor Anthony Hinds, utilizando o pseudônimo John Elder.
A história é ambientada no início do século XX, onde um casal em lua de mel, Gerald Harcourt (Edward de Souza) e Marianne (Jennifer Daniel), está viajando de carro por estradas remotas da Alemanha quando a falta de gasolina os obriga a se hospedar num decadente hotel pouco frequentado. Os proprietários são um casal de idosos formado por Bruno (Peter Madden) e Anna (Vera Cook), que dizem que não recebem hóspedes há muito tempo e apenas um dos quartos está ocupado. O outro hóspede é o Prof. Zimmer (Clifford Evans), um homem rude e alcoólatra, estudioso de ocultismo e que está na região com objetivos misteriosos investigando as atividades de uma família que vive num imenso castelo vizinho. O sinistro e refinado cientista Dr. Ravna (Noel Willman) é o dono do imponente mausoléu de pedra, onde vive com um casal de filhos, Carl (Barry Warren) e Sabena (Jacquie Vallis). Os jovens viajantes são então convidados para uma festa no castelo e não imaginariam que no local existe um culto vampírico liderado pelo Dr. Ravna, exilado de sua cidade natal devido uma falha num de seus experimentos científicos, e que ficou encantado com a beleza de Marianne, desejando o seu ingresso na sociedade secreta de sugadores de sangue.
Mesmo sem os tradicionais “Drácula” e “Prof. Van Helsing”, “O Beijo dos Vampiros” é mais uma preciosidade da “Hammer” dentro da temática dos vampiros humanos, seres bestiais que se alimentam do sangue de outros humanos. A narrativa é lenta, com uma atmosfera gótica e de horror sutil, sem violência e com pouca exposição de sangue, mas com as tradicionais características do estilo tão cultuado pelos fãs do estúdio, com um castelo tétrico, um baile com máscaras sinistras e bizarras de gelar a espinha, aldeões vivendo em constante medo, lindas vampiras sedutoras e um culto vampírico secreto. Tem até um ataque de dezenas de morcegos (de borracha e manipulados por barbantes) invocados num ritual de magia negra pelo Prof. Zimmer, contra os discípulos da seita do Dr. Ravna, numa similaridade com o ataque dos pássaros no filme de Alfred Hitchcock lançado no mesmo ano de 1963. Com direito a toques de erotismo de belas mulheres vampiras sendo sugadas pelos morcegos. 
Curiosamente, o filme teve uma versão americana estendida, produzida para a televisão, com o acréscimo de mais personagens e que recebeu o título de “Kiss of Evil”. “O Beijo do Vampiro” é o terceiro filme de vampirismo da “Hammer” em ordem cronológica, sucedendo “O Vampiro da Noite” (58), com a dupla Lee e Cushing, e “As Noivas do Vampiro” (60), com Cushing sozinho.   
(Juvenatrix - 06/06/15)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Usina de Monstros (Quatermass 2 / Enemy From Space, Inglaterra, 1957)


O estúdio inglês “Hammer” ficou famoso e cultuado por seus inúmeros filmes coloridos de horror gótico. Porém, a produtora também tem em seu catálogo uma série de filmes em preto e branco com temática principal de Ficção Científica, lançados no final dos anos 50 do século passado, e que fazem parte de um conjunto de preciosidades daquele período especial do cinema fantástico. “Usina de Monstros” é um filme de invasão alienígena dirigido por Val Guest e com o ator irlandês Brian Donlevy (de “A Maldição da Mosca”, 1965) repetindo seu papel do cientista Quatermass, que também esteve em “Terror Que Mata” (The Quatermass Xperiment, 1955).
Na história, o Prof. Quatermass está tentando obter recursos do governo para financiar seu projeto científico de uma complexa base lunar. Porém, não conseguindo sucesso na liberação de verbas, sua atenção é desviada para a misteriosa ocorrência da queda de inúmeros meteoritos. Indo até a região das quedas para estudar o fenômeno, na pequena cidade de Winnerden Flats, ele encontra uma fábrica imensa controlada por guardas fortemente armados e hostis, que utiliza a população do vilarejo como mão de obra para supostamente produzir comida sintética. Porém, depois que o cientista descobre que os estranhos objetos caídos do espaço possuem formatos aerodinâmicos que guardam em seu interior um gás venenoso composto de amônia, e mortal para os humanos, ele decide investigar junto com o inspetor de polícia Lomax (John Longden), o mistério por trás da usina. A qual curiosamente tem o formato similar ao seu projeto de colonização lunar e que trabalha de forma confidencial, parecendo esconder suas reais intenções.
“Usina de Monstros” é uma ficção científica com elementos de horror situada dentro do sub-gênero de invasões alienígenas, ao apresentar uma conspiração secreta para a conquista de nosso mundo por um gigantesco organismo amorfo formado por milhões de partículas inteligentes com uma só consciência. Controlando os seres humanos para colocar em prática seu plano de invasão, e infiltrando-se em importantes setores do governo e das autoridades militares.   
Entre as várias curiosidades interessantes, podemos citar:
* o filme também é conhecido pelo título original “Enemy From Space” nos Estados Unidos;
* ele faz parte do universo ficcional criado pelo roteirista Nigel Kneale, composto por vários filmes e séries de TV, porém da “Hammer” temos uma trilogia formada por “Terror Que Mata”, “Usina de Monstros” e “Uma Sepultura na Eternidade” (Quatermass and the Pit, 67), esse último com Andrew Keir no papel do cientista;
* o ator Michael Ripper (1913 / 2000), eterno coadjuvante em muitas produções da “Hammer”, dono de um currículo imenso com mais de duzentos trabalhos, aparece em “Usina de Monstros” como um dos moradores do vilarejo que se rebela contra os “inimigos do espaço”;
* nos créditos finais temos um agradecimento especial dos produtores para a famosa empresa de combustíveis “Shell”, que cedeu uma refinaria de sua propriedade para servir de locação para as cenas na “usina dos monstros”, o projeto secreto dos alienígenas para tomar nosso mundo;
* a palavra “zumbi” é mencionada algumas vezes para se referir às vítimas infectadas pelos alienígenas, transformando-as em criaturas desprovidas de ações próprias, tendo suas mentes controladas.
(Juvenatrix - 05/06/15)

Cyborg – O Dragão do Futuro (Cyborg, EUA, 1989)


Com produção da saudosa “Cannon”, de Menahem Golan e Yoram Globus, direção de Albert Pyun e com o ator belga Jean-Claude Van Damme, especialista em artes marciais, “Cyborg – O Dragão do Futuro” é um filme de ação e porradaria com elementos de ficção científica, na ambientação de um mundo pós-apocalíptico, devastado por uma peste. Além da presença de uma cyborg, numa mistura de mulher e máquina, carregando uma informação vital para a cura da doença que assola a civilização em decadência.
Van Damme é Gibson Rickenbacker, um homem que vaga pela cidade destruída de New York, num mundo selvagem em ruínas à procura de vingança pessoal contra um pirata chamado Fender Tremolo (o neo-zelândes Vincent Klyn), que lidera uma gangue que espalha terror e violência para os poucos sobreviventes do caos, e que tentam sobreviver num mundo desolado. Ele encontra em seu caminho uma moça guerreira, Nady Simmons (Deborah Richter), e juntos partem em busca dos piratas, que sequestraram uma mulher cyborg, Pearl Prophet (a canadense Dayle Haddon), que possui uma informação essencial que pode curar a praga que assola a humanidade. Eles estão levando-a para a cidade de Atlanta, onde estão os últimos médicos e cientistas que podem evitar a extinção da humanidade. A intenção do maníaco Fender é tornar-se um ditador sanguinário com o poder da cura da peste nas mãos, e até chegarem ao destino final, o caminho de sua gangue e do lutador Gibson se cruzará muitas vezes em confrontos violentos.
A história futurista é bem simples, com poucos diálogos (o personagem de Van Damme quase não fala, só distribui porradas), muitas lutas, tiroteios, perseguições e selvageria num mundo pós-apocalíptico. E nem precisa de explicações e conversas fúteis, pois o mundo está em colapso, destruído pela anarquia, genocídios e fome, e uma praga está dizimando o que restou da civilização humana, o que pode ser resumido num breve diálogo entre o monossilábico Gibson e a guerreira Nady:
- Já está acostumado? – pergunta a moça.
- Com o quê?
- A matança.
- Eu não fiz o mundo – responde o áspero Gibson.
- Não. Apenas vive nele.
O filme é até divertido dentro de sua proposta simples de mostrar pancadaria desenfreada e muita gritaria num ambiente futurista de desolação. Van Damme é um daqueles atores com imagem totalmente associada aos filmes de lutas, e que mesmo tentando fazer papéis um pouco diferentes, sempre será lembrado pelas produções de ação e porradas. Em “Cyborg”, sua escolha para o papel principal veio depois de atuar em outros dois filmes similares anteriores, “Retroceder Nunca, Render-se Jamais” (No Retreat, No Surrender, 1986) e “O Grande Dragão Branco” (Bloodsport, 1988), que lhe trouxeram notoriedade dentro do estilo que já tinha atores mais conhecidos como Chuck Norris, sem contar astros mais famosos como Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger.
Curiosamente, vieram em seguida outros três filmes dentro desse universo ficcional: “Cyborg 2: Glass Shadow” (1993), “Cyborg 3: The Recycler” (1994) e “Cyborg Nemesis” (2014).
O roteiro de “Cyborg – O Dragão do Futuro” também é do diretor Albert Pyun, usando o pseudônimo Kitty Chalmers, e foi criado a partir do cancelamento da produção de “Masters of the Universe 2 – The Cyborg”, utilizando os vestuários e cenários idealizados para a sequência inexistente de “Mestres do Universo” (1987), com Dolph Lundgreen.
(Juvenatrix - 05/06/15)

quarta-feira, 3 de junho de 2015

O Mundo Romano de Silverberg

Roma Eterna (Roma Eterna), de Robert Silverberg. Mem Martins: Publicações Europa-América, coleção Nébula, n.101. Tradução de Susana Serrão, 352 páginas, 2006.


O escritor americano Robert Silverberg tem entre suas principais características a versatilidade temática. Já escreveu sobre todos os assuntos importantes da ficção científica, e na maioria das vezes trazendo um ganho de qualidade e uma visão muito particular, ainda que não necessariamente original.
Assim não é surpreendente que desde fins dos anos 1980 do século passado ele tenha entrado na seara da história alternativa, um dos subgêneros que vem ganhando cada vez mais adeptos, tanto entre escritores como entre leitores, especialmente nos Estados Unidos.
E Silverberg retorna à era antiga para tentar responder uma das mais candentes perguntas entre os fãs de história alternativa e – por que não? – também entre historiadores profissionais: Como seria o mundo até os nossos dias se o Império Romano não tivesse terminado?
Publicado em 2003 nos Estados Unidos, Roma Eterna é o que se costuma chamar de romance fix-up, isto é, aquele que reúne um conjunto de histórias interligadas dentro de um mesmo universo ficcional. Se partirmos para uma classificação mais precisa ou acadêmica, então, não temos em mãos um verdadeiro romance. Mas deixemos tal discussão para os teóricos literários. No caso desta análise o que importa é o conteúdo e a maneira como Silverberg tenta responder a pergunta acima, narrando de forma ambiciosa e despojada dois mil anos de história.
De início aponto também a surpreendente qualidade da tradução do livro. Acostumado com tantas traduções ruins dos livros portugueses de ficção científica, este aspecto certamente merece ser registrado, assim como também a bela ilustração de capa.
Vale notar que Roma Eterna fala não só da perenidade do Império Romano, mas também de seu tamanho. Estamos diante de um império que não só logrou continuar, mas que ainda se expandiu, um Estado mundial único. Existem várias outras histórias alternativas sobre a permanência de Roma, mas nem todas seguem esta opção. Como por exemplo, a trilogia de Kirk Mitchel (Procurator, 1984; New Barbarian, 1986 e Cry Republic, 1989), no qual o Império chega aos nossos dias, mas conservando apenas um pouco mais de sua extensão territorial.
O livro obedece a uma seqüência de eventos. Mas é curioso observar que as histórias foram escritas fora da cronologia. Desta forma, a noveleta que encerra o volume foi justamente a primeira escrita, em 1989. Este fato poderia sugerir certo afrouxamento entre as situações de uma história e outra, mas o autor teve o cuidado de não deixar pontas soltas e nem ser demasiadamente repetitivo em citar e contextualizar fatos e personagens de um texto para outro.
Silverberg abre com um “Prólogo”, que certamente foi escrito para sugerir caminhos dentro da obra, mas de saída causa impacto, ao informar que o êxodo do povo israelense do domínio egípcio fracassou... O leitor percebe a consequência disso? De forma sutil e rápida, o autor simplesmente exclui da história a religião posterior, que teria o maior número de fiéis e que foi uma das possíveis motivadoras para a própria queda do Império em nossa linha temporal.
Após esta introdução fugaz e decisiva, temos a primeira história propriamente dita, “Com Cesar no Submundo”. Estamos em 529 D.C. (ou melhor em 1282 A.U.C. – Ab Urbe Condita, a partir da fundação da cidade, exatos 753 anos antes da era Cristã). O Império Ocidental atravessa um momento de crise, tentando negociar uma aliança militar com o Império Oriental para evitar iminentes invasões de bárbaros germânicos na fronteira norte. O Imperador está muito doente e há incerteza sobre qual dos dois filhos realmente assumirá em caso de sua morte. A trama conta a chegada de um enviado do Imperador de Constantinopla para acertar os detalhes do acordo, que inclui o casamento de sua filha com o sucessor do trono romano.
O enredo político é saboroso, mas o que empolga é o contexto social do chamado submundo romano. Quer dizer, o que acontece nos subterrâneos da cidade, habitados por toda a sorte de artistas, vagabundos, místicos e prostitutas, aqueles que vivem uma vida ‘fácil’, fora das responsabilidades formais da sociedade.
Pois sob Roma há um enorme e profundo sistema de túneis e esconderijos, criados originalmente para proteger a elite política de uma eventual invasão. Mas como tal não acontece há séculos, o local passou a ser habitado por toda sorte de figuras. E o embaixador de Constantinopla faz questão de conhecer estes prazeres. E um dos irmãos que pode aceder ao trono tem a missão de guiá-lo, antes que a própria sorte do Império seja decidida. Pois é a partir desta história é que se tem o chamado ponto de divergência, ou seja, onde a história teria se alterado e permitido que o Império não sucumbisse à sanha bárbara. Silverberg capricha e torna este texto uma das melhores narrativas de todo o livro, o que permite que o interesse do leitor em virar a página para a próxima história esteja mais do que garantido.
E não haverá decepção com a próxima história. Em “Um Herói do Império”, damos um salto de 83 anos. Sob o governo de Maximiliano III, o Império do Ocidente – aliado ao do Oriente – derrotou as hordas bárbaras, fortaleceu sua política interna e prosperou economicamente. Esta história é importante porque explica como o islamismo jamais surgiu. O herói do título é um ex-auxiliar do Imperador Juliano que perdeu prestígio e foi exilado para o Oriente Médio.
Sem compreender muito bem a razão de sua desgraça, nem bem o que faria em tão distante lugar, Leandro Cérvulo conhece um sujeito carismático e com uma estranha pregação religiosa. Acredita em uma única deidade e pretende espalhar sua palavra aos povos do deserto. O romano antevê uma oportunidade de fazer alguma diferença aos olhos do Imperador, ao interpretar a pregação de Mahmud como algo subversivo e potencialmente perigoso aos interesses imperiais. Elimina um líder em seu nascedouro,  evita o surgimento de uma das principais religiões, a segunda grande crença monoteísta. Contudo e ironicamente, o romano é um herói anônimo, pois ele não tem como gozar de um reconhecimento de algo que não se tornou realidade.
O prólogo e estas duas primeiras histórias dão um alicerce para explicar como o Império Romano permaneceu. Mas é a partir da terceira que Silverberg começa a nos mostrar como ele se expandiu. Para isso o livro dá um grande salto histórico em “A Segunda Vaga”. Para usarmos o calendário de nossa linha temporal – sabiamente Silverberg usa a A.U.C. em seu universo –, estamos em 1108 dC. Sob o governo do Imperador Saturnino, Roma controla toda a Europa e a maior parte da África e da Ásia.
Estamos no clima de uma segunda tentativa de invasão de Nova Roma, as terras a oeste do Mar Oceano. A primeira tentativa havia sido um fracasso e esta narrativa dá conta de colocar em detalhes os planos, estratégias e a uma nova invasão propriamente dita. Os romanos ficam perplexos ao descobrirem não um povo, mas toda uma civilização, com grandes cidades e até mesmo exércitos. Tal como na primeira tentativa, Silverberg narra o fracasso da empreitada militar romana, mostrando que mesmo um Império tido como invencível em termos militares, também sofria derrotas significativas, vez por outra.
Curioso notar é como os romanos são expulsos do que eles chamam pretensiosamente de Nova Roma: menos do que a força militar numericamente maior dos maias, foi uma tempestade poderosíssima que adiou os planos romanos por mais uma geração. Sim, os romanos conquistariam Nova Roma – como é explicado de passagem numa  das próximas histórias –, mas esta é uma narrativa específica que o criador deste universo ainda está por nos contar.
Roma entrou em grave crise financeira por causa das duas aventuras militares malsucedidas. Estamos em 1198 dC, em “À Espera do Fim”. Nesta história, o império ocidental está em seus estertores, governado por um imperador fraco e incompetente. Constantinopla tira proveito da situação e cerca a cidade romana, conquistando-a. Assim, os gregos assumem o comando do império, numa situação algo chocante mesmo para o leitor. Afora esta troca de comando, o que dá sabor à história é o ponto de vista pelo qual ela é contada. Antipater é o responsável por traduzir os comunicados dos planos militares e transmitir ao imperador as notícias sobre a iminente derrocada da cidade romana. Silverberg inclui até um drama pessoal de Antipater, casado com uma descendente de gregos, que temia ser considerada uma traidora pelos novos dominadores.
O reinado grego dura duzentos anos, um período demasiado mesmo para os padrões ‘eternos’ dos romanos. Contudo, estamos em 1453 dC, com os romanos novamente no poder, reunificando asa duas capitais imperiais, por meio de um tratado. Em “O Posto Avançado do Reino”, é relatada a chegada de um novo procônsul para Venécia, uma província grega. Aqui o conteúdo político não é afastado, mas a história gira em torno do romance do novo governante Quinto Pompeu Falco e a bela grega Eudóxia, que pertencia à uma nobre família da região. Ainda que não seja uma história destituída de interesse, talvez seja a mais fraca do livro, por quebrar um pouco o ritmo das grandes intrigas, conquistas e revoluções tão presentes nos textos anteriores.




A próxima história nos fala em “Conhecer o Dragão”. Estamos em 1790 dC, já em pleno fim de século XVIII e o título da história faz uso de uma ambiguidade. Isso porque nos fala de dois imperadores: Um que está por vir e outro que já foi. Cada um à sua maneira, verdadeiros dragões, seja no sentido perdulário e corrupto, seja em termos do conquistador sanguinário. Há um personagem no meio destas duas figuras importantes, o arquiteto e historiador nas horas vagas, Pisandro. Ele está em uma ilha mediterrânea, a serviço de César Demétrio, o primeiro herdeiro na sucessão imperial. O sujeito é alienado e megalômano, com um estilo de vida parecido com vários imperadores do passado, figuras ao mesmo tempo sinistras e bizarras, como Caracala e Cômodo.
Pisandro não tem como recusar os seus pedidos extravagantes de construções de templos e suntuosos palácios, até porque vislumbra gozar das benesses do poder, quando Demétrio assumir o trono romano. Ao mesmo tempo, Pisandro tem fascínio pela história romana e em particular por um dos mais prestigiosos imperadores, o desbravador de mares e povos longínquos, Trajano VII, que passou a maior parte de seu reinado em viagens de pilhagens pela Terra, trazendo riquezas econômicas e culturais incalculáveis, num período que foi cognominado, simplesmente, de Renascença. Pisandro descobre um diário de viagem do imperador, dado como perdido, uma peça raríssima e valiosa. E por meio de sua leitura, descobre o lado sanguinário e cruel de um líder que ele tinha como modelo.
É uma história um pouco desequilibrada em seu enredo, com cortes abruptos entre o tempo presente e o resgate do passado, mas ilustra este traço comum da história romana, a do excessivo culto às personalidades e da aparente contradição de como uma estrutura política tão poderosa, é ao mesmo tempo institucionalmente tão fragilizada.
Pois está última questão está no subtexto das duas próximas histórias, as que constituem as duas melhores histórias do livro. A primeira delas é “O Reinado do Terror”, em 1815 dC. Pois estamos sob o reinado de Cesar Demétrio, agora renomeado Demétrio II. As contas públicas estão deficitárias, o nível de gastos do imperador excede em muito os impostos. Ao mesmo tempo, algumas importantes províncias européias se rebelam em movimentos de independência, como a Gália e a Hispânia. Cabe aos tesoureiros e aos generais controlarem os exageros e a incompetência imperial.
O Conde Valeriano Apolinário torna-se um grande líder militar, ao derrotar definitivamente as inssurreições gálicas e hispânicas. Ao voltar a Roma toma conhecimento de que também em termos fiscais e administrativos está havendo uma reação à completa ausência de governo. O líder desta reforma é o Cônsul Laércio Torquato, um velho amigo de Apolinário, extremamente capaz e firme em suas resoluções. Em demasia, como se torna cada vez mais notório, pois Torquato inicia também um programa de expurgos do que ele chama de uma corja corrupta que se aproveita das megalomanias do Imperador. Uma sombria e eficiente matança é posta em prática, assustando mesmo a Valeriano, como que a antever o perigo que tal iniciativa viesse a ter. Pois Torquato consegue subornar os guardas pretorianos, encarcerando o Imperador e isolando-o das ‘más influências’. Não contente, edita ordens para o assassinato de figuras eminentes da sociedade romana e de sua elite política, vários senadores.
Como que num efeito dominó, Roma passa a viver sob um estado de terror com centenas de pessoas condenadas à morte, supostamente em nome de uma ‘purificação dos maus costumes’. A exemplo do Terror que se seguiu à Revolução Francesa, por fim os próprios heróis e algozes experimentam de suas receitas e acabam sucumbindo. Termina em terror aquela era que ficara conhecida como a Segunda Grande Decadência.
A história a seguir é a novela “Via Roma”, talvez a mais brilhante de todas as escritas por Silverberg neste universo ficcional, indicada ao Prêmio Hugo em 1995. É uma clássica história de golpe palaciana, no qual parte da elite política e econômica do Império aplica um golpe de Estado e simplesmente derruba o Império, refundando o Estado em uma Segunda República. Por aí já se vê que é uma história importante, mas afora o aspecto propriamente político, o mais interessante é a forma e o enfoque em que o texto é elaborado.
Toda a trama se dá durante a chegada a Roma de um turista britânico, que vem passar as férias na capital do império mundial. Aporta em Nápoles e é recebido pela alta nobreza local, pois ele pertence a uma rica família da Ilha. Em uma festa conhece uma bela ragazza, filha de um cônsul, que o servirá como guia e amante no caminho que vai de Nápoles até a capital, através de Via Roma, uma autoestrada moderna, por onde já circula estranhos veículos movidos a motor de combustão. Estamos em 1850 dC, em pleno desenvolvimento da primeira fase da industrialização.
“Via Roma” é uma história bem contada em seus detalhes, da vida dos nobres, bem como da penúria do povo em geral, numa sociedade milenarmente marcada por uma clara divisão sociopolítica entre nobres e plebeus. A derrubada do Império se dá de forma cabal, eliminando não só o imperador mas todos os possíveis herdeiros naturais – à exceção de um menino que é salvo e exilado em uma distante província, conforme se verá na próxima história. Restaura-se a República, pelo menos em termos nominais, e Roma passa a ser governada por um Cônsul, como nos tempos anteriores a Augusto.
Afora certa inverossimilhança em como ocorre a queda do império, a esta altura do livro, não dá para deixar de sentir também um incômodo com a opção do autor em mostrar uma Roma eterna que, a despeito disso, mantém uma estrutura política quase imutável e que é sempre bem-sucedida em refrear pela força movimentos separatistas e impedir uma maior liberdade aos seus cidadãos. E tudo isso dentro de um arcabouço institucional extremamente frágil, muito dependente do voluntarismo e qualidade individual do governante de ocasião, o que revela tanto a força como a fraqueza de tal Estado e seus momentos de glória e decadência.
Ora, pois mesmo dentro desta perene estrutura imperialista, seria possível compatilhar o poder de forma não necessariamente impositiva. Fazendo uso, por exemplo, de arranjos políticos federativos, já colocados em prática desde tempos anteriores ao romano, pelos gregos.
Mas Silverberg não explora tais possibilidades de sistemas políticos mais sólidos, e cita apenas de passagem um movimento democrático em “Reino do Terror”, que é rapidamente derrotado. Mas é possível defender esta opção ‘imperial’ por duas razões principais. Primeiro, porque é uma interpretação de como seria o mundo não só com o domínio político de Roma, mas também com a perpetuação de seus valores e sua cultura, o que inibiria, em tese, o surgimento de idéias filosóficas ou movimentos políticos alternativos. Que, de fato, só ganham força em nossa linha temporal – ou ao menos ressurgem – a partir do século XV, com contestações iniciais do Absolutismo e do domínio do cristianismo romano, assim como as primeiras franjas de liberdade política.
Segundo, porque este mundo romano criado por Silverberg é em si diferente do real e talvez esta seja uma causa de sua permanência. Diferente pela simples razão de que esta Roma jamais conheceu uma religião monoteísta e extremamente influente, como o cristianismo. Ao politeísmo romano, devidamente permissivo aos outros cultos não romanos também politeístas, se institucionalizou uma espécie de paganismo, gradativamente banalizado junto a um materialismo espalhado como way of life de todo um Império de dimensões globais.
As duas últimas histórias colocam esta Segunda República Romana na contemporaneidade do século XX. Primeiro com “Lendas dos Bosques de Vênia”, mostrando como o domínio romano foi liberalizando e aceitando os costumes dos povos aos quais dominou. Aliás, esta sempre foi uma peculiaridade dos romanos. Não só dividir para governar. Mas adaptar-se os costumes alheios, para incluí-los no interior do seu domínio político.
Estamos em 1897 e a noveleta narra a descoberta daquele menino que poderia ter reclamado o trono e impedido a restauração da República. Já velho e abandonado é encontrado por um casal de crianças, mas acaba tendo problemas com um sistema político eternamente ditatorial e, como tal, impiedoso com qualquer possibilidade real ou simbólica de ter o seu poder desafiado.
A história que fecha o livro é – como disse no início deste texto – a primeira escrita pelo autor. “Rumo à Terra Prometida”, situada no ano de 1970 de nossa linha temporal, mostra a permanência e sobrevivência do povo judeu. Não mais do que um grupo étnico exótico e minoritário que viveu por milênios em terras do Oriente Médio, quase sempre sob o julgo de uma potência estrangeira. Pois é deste povo, tido como ‘escolhido’, que se faz um empreendimento em busca de liberdade à procura do Deus único. Nem que seja em outro planeta. Secretamente, um grupo de 500 deles se reúne em uma região desértica para uma aventura inédita e arriscada: lançar um foguete para atingir as estrelas.
Silverberg comenta na história que os romanos tinham cogitado atingir o espaço sideral, mas desistiram, menos por dificuldades tecnológicas, e mais por falta de objetivo econômico e, principalmente, claro, político, já que eles não tinham rivais para se preocuparem.
“Rumo à Terra Prometida” é uma história emocionante, tanto pelo desafio, como pelas consequências em um mundo que jamais conheceu uma alternativa religiosa ou política. Silverberg termina a história – e por efeito o livro – de forma crítica, utilizando o exemplo da aventura espacial como uma fuga dos grilhões da Pax Romana e pela esperança de que num outro mundo seria possível, viver com liberdade e igualdade entre os povos.
Roma Eterna reúne um conjunto de histórias instigantes, com a visão aguda e sensível de um dos principais autores da ficção científica, colocando a obra como uma das melhores referências recentes no subgênero da História Alternativa. E que pode ser apreciada tanto pelos aficcionados, como por leigos ou curiosos pela parte mais contra-factual dos eventos históricos. Seja qual for o interesse do leitor, o prazer da leitura está garantido.

Marcello Simão Branco é autor de Os Mundos Abertos de Robert Silverberg (Edições Hiperespaço, 2004).