O Fruto do Vosso
Ventre, Herberto Sales. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 192
páginas. Lançado originalmente em 1976.
Este romance foi laureado com o Prêmio Jabuti em 1977, concedido pela
Câmara Brasileira do Livro, o mais tradicional e importante prêmio literário
do país. Assim, para aqueles que afirmam que a ficção científica brasileira
nunca foi reconhecida pelo corpo principal da literatura nacional, é bom terem
em mente que esta obra do gênero foi premiada.
Talvez possa se dizer que a crítica não viu na obra os elementos
pertencentes à ficção científica – e, no caso, de temática distópica –, e nem
mesmo o autor assim a considerou.[1]
Pelo que se lê sobre a obra, seu acolhimento e reconhecimento esteve
relacionado mais à uma crítica velada ao regime militar, por meio de uma
estrutura fabulesca e ao mesmo tempo satírica e que ainda faz alguns usos
interessantes de recursos de metalinguagem, como quando o autor como que se
vira para o leitor e ironiza os personagens aos quais o romance pretende
criticar.
Mas o fato é que O Fruto do Vosso Ventre pertence àquilo que
identificamos com a ficção científica, pois a história aborda temas caros e
recorrentes a este gênero, como a opressão em um futuro e lugar não identificado
e desastres de ordem natural e/ou populacional. Este romance pertence ainda a
um período específico marcado por distopias políticas e ecológicas, obras que
por alegorias e metáforas procuravam criticar o regime militar, tais como Fazenda
Modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda,
Adaptação do Funcionário Ruam (1975), de Mauro Chaves e Umbra
(1977), de Plínio Cabral, entre outras.
A história de O Fruto do Vosso Ventre situa-se em um lugar chamado
apenas de Ilha. Por este nome aparentemente neutro, pode-se subentender desde
uma referência ao primeiro nome dado ao Brasil, “Ilha de Santa Cruz” – como
quer a pesquisadora norte-americana Elisabeth Ginway[2]
– até à jovem capital do país, Brasília, comumente referida como uma “Ilha da
Fantasia”, pelo fato do centro do poder situar-se longe do eixo
econômico-cultural do Rio-São Paulo. E também pela atual capital federal ter
sido identificada como um tipo de cidade futurista, por causa de sua
arquitetura arrojada e ter servido muito bem ao propósito de sede de um regime
autoritário, exatamente pelo fato de estar distante das pressões da imprensa e
demais setores organizados da sociedade urbanizada, facilitando a tarefa dos
militares em tomar decisões discricionárias e implementar uma grande e confusa
estrutura tecno-burocrata, aliás, uma das principais críticas presentes no
livro.
O romance é dividido em três partes distintas e complementares. A
primeira chama-se “Os coelhos da Ilha”, uma alegoria que mostra como a explosão
populacional destes animais interfere na safra agrícola e leva o governo a
radicalizar matando todos os coelhos.
Um prenúncio para o que virá, pois na segunda parte “A Ilha dos Homens”,
o problema da superpopulação passa a ser dos próprios homens. Em uma
justificação claramente maltusiana – a de que uma superpopulação esgota os
recursos materiais e provoca fome e colapso social – os tecnocratas que dirigem
a Ilha decretam, através de elaborados planos, que todas as mulheres que não
tiverem ultrapassado os três meses de gestação deverão abortar os seus bebês.
Contudo, as mulheres são submetidas a exames nos quais têm de enfrentar longas
filas, por semanas, fazendo com que algumas passem do limite quando finalmente
são examinadas.
Esta estrutura autoritária atinge fundamentalmente as mulheres, aquelas
responsáveis por gerar os bebês. Assim, o órgão encarregado dos planos de
restrição aos nascimentos, o Departamento de Controle da Natalidade e
Planificação Matrimonial e Ligações Correlatas, ou para um melhor e mais eficaz
memorização Decomplamlic, reúne-se diversas vezes e com órgãos correlatos para
longuíssimas discussões sobre detalhes do plano a ser executado, até o seu
desdobramento definitivo naquilo que é denominado “A medida final”, uma alusão
à bárbara “Solução final” dos nazistas com relação ao destino aos judeus. Desta
forma, a tal medida final dos tecnocratas decide que todas as mulheres deverão
consumir pílulas anticoncepcionais. Pois no caso de engravidarem, a pena será a
de morte para elas e para o bebê que nascer. E esta medida vale pelos próximos
40 anos! Ora, desta forma, seria possível que toda a população chegasse à
extinção, pois nascida uma menina nesta época, só poderia ter um filho aos 41
anos.
Nesta segunda parte, que toma a maior parte das páginas, a ação situa-se
no plano das reuniões e deliberações dos tecnocratas e por quase trintas longas
páginas somos submetidos a uma linguagem pomposa, artificial e redundante sobre
as decisões a serem tomadas. Para não entediar tanto o leitor, Sales nos
apresenta um casal, o sapateiro Teodorico e sua esposa Isabel, que está
grávida, mas como ela já passou do prazo está livre para ter o seu filho.
O tom fabulesco ajuda a enfatizar a crítica do autor frente aos
tecnocratas que, com suas intermináveis e inúteis reuniões, meio que perdem o
sentido do ridículo a que estão imersos, alienados em um mundo regido por
regras outras, dentro da própria visão de mundo tecnocrática, desvinculada de
medidas de bom senso e muito menos de humanidade. Apesar disso não se discute o
impacto social, econômico e psicológico de uma medida tão radical, como se a
população também estivesse amansada tal quais bois que se dirigem a um
matadouro.
Na última parte, intitulada “O Livro do Filho”, há uma reversão total dos
acontecimentos, tanto na forma, como no conteúdo. Ao estilo alegórico da
primeira parte e à mordaz e cansativa sátira ao mundo tecnicista e opressor da
segunda, nos deparamos com um texto que se quer redentor. A prosa é dividida em
duas colunas, tal qual uma página da Bíblia e os parágrafos numerados
como se versículos fossem.
Numa festa de aniversário do filho de Teodorico e Isabel, uma prima
desta, Maria conhece José. Em pouco tempo apaixonam-se e se casam. Quase que
por um milagre, mesmo tomando pílulas Maria engravida e decide fugir com José a
ter de abortar. A referência aos nomes do casal e sua fuga posterior é
claramente cristã. O casal consegue fugir da Ilha, salvando a criança. E tal
qual um messias, ela volta já adulta para acabar com a ditadura e libertar as
crianças não nascidas que, como num toque mágico, despontam numa nova sociedade
conduzida por elas.
A decisão do autor de enveredar por este lado religioso já estava implícita
no próprio título da obra. Mesmo assim a solução adotada retira qualquer
participação dos cidadãos nos seus destinos históricos, ora oprimidos por um
sistema tecnocrático, ora libertados por um ser espiritual, tal qual Jesus, que
anda pelas águas e sobe aos céus. Nesse sentido o desfecho do livro limita suas
possibilidades transformadoras, como ao menos se espera em histórias
anti-distópicas da qual esta dialoga.
Talvez para o autor, o brasileiro não seria um sujeito histórico capaz de
mudar o seu destino, imerso em regimes políticos oligárquicos, populistas e
ditatoriais em diferentes épocas e num contexto de extrema desigualdade social
e má formação educacional. Desta forma, apesar do autor desenvolver uma crítica
ácida às contradições da ditadura, nem chega a elaborar as muitas consequencias
de seus malefícios e não vê como o povo possa romper com esta estrutura,
reservando para ele a esperança de um além que possa dar-lhe uma vida melhor.
Nada mais conservador e limitador para um texto que possamos classificar como
de ficção científica. Embora não seja incomum no gênero trabalhos que se num
primeiro plano criticam o status quo, num outro mais profundo se
resignam frente a ele. Ou por não encontrarem uma solução. Ou por se recusarem
a fazê-lo. Difícil dizer em qual dos casos se aplica o de Herberto Sales: um
pessimista ou um conformista, o que não retira a impressão final de uma obra
que poderia ser mais do que é, embora por tudo que discute – e como discute –
se constitua num livro importante e que merece ser conhecido.
– Marcello
Simão Branco
[1]
Mesmo assim, lembremos que este não é o único romance de ficção científica
deste autor. Ele publicou A Porta de Chifre, em 1986, outra distopia,
esta ecológica e situada na Amazônia em 2352, no qual a exploração do espaço fracassou
e as florestas transformaram-se em deserto, com falta de água e de recursos
energéticos.
[2]
No livro Ficção Científica Brasileira:
Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro, Devir, 2005.
[3]
O conceito é do cientista político argentino Guillermo O’Donnell, em Análise do Autoritarismo Burocrático,
Paz e Terra, 1990.
Excelente resenha! Me ajudou muito! Obrigado
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