Padrões de contato faz parte do restrito conjunto de títulos seminais que são lembrados em primeiro lugar quando se fala em ficção científica brasileira. Da mesma forma o seu autor, o jornalista carioca Jorge Luiz Calife, que ganhou notoriedade quando o escritor britânico Arthur C. Clarke o citou em agradecimento no seu romance 2010: Uma odisseia no espaço II (1982). Calife era seu fã e correspondente, e sugerira num esboço os contornos gerais de uma continuação a 2001: Uma odisseia no espaço (1968), abrindo as comportas para uma série que Clarke julgava impossível. Seja como for, 2010 foi um grande sucesso editorial e cinematográfico, lançando o nome de Calife na grande imprensa. A então muito popular revista Manchete apressou-se em publicar o esboço que Calife enviara ao famoso escritor, nomeado de "2002". Logo, as editoras se interessaram pelo que aquele desconhecido jornalista tinha a dizer e, em 1985, Padrões de contato ganhou as livrarias pela editora Nova Fronteira.
No ano seguinte, pela mesma editora, veio a sequência, Horizonte de eventos. Articulados a um conjunto de circunstâncias, os dois romances inauguraram o que ficou conhecido como Segunda Onda de ficção científica brasileira, caracterizada pela formação de um grupo de fãs organizado, pela publicação de muitos fanzines, pelo desenvolvimento de uma consciência de corpo e pela busca de identidade para ficção científica nacional, que não existia até então.
Contudo, a maior importância de Padrões de contato/Horizonte de eventos é que se tratou da primeira ficção científica hard nacional, na qual os conceitos de astronomia e astronáutica foram tratados de forma precisa e rigorosa. A ficção científica brasileira tinha enfim o seu representante hard fiction e isso inspirou muita gente a seguir-lhe os passos.
Mas naqueles tempos de final de século, não era fácil publicar um livro e a maior parte da produção da Segunda Onda estava apoiada nos fanzines, com os quais Calife, mesmo depois de seus romances publicados, não se furtou em colaborar. Vários contos no mesmo universo do romance foram neles impressos. Em 1991, Calife ainda veria publicado um terceiro volume da série: Linha terminal, pela legendária editora GRD, com uma tiragem tão minúscula que, na prática, circulou apenas dentro dos muros do fandom.
Em 2009, próximo do momento em que Padrões de contato completaria 25 anos de publicação, a Devir Livraria reuniu os três romances em um único volume e recuperou para o público esta que é conhecida como a primeira trilogia da ficção científica brasileira, ainda que eu, particularmente, discorde do título. Afinal de contas, Calife não construiu uma trilogia, ele apenas publicou três livros, que podem ser mais se as editoras assim quiserem. Padrões de contato é, de fato, uma série aberta, um universo recorrente do autor que comporta, além desses três livros, uma boa quantidade de contos e noveletas publicadas ao longo dos anos em fanzines e antologias, incluindo ainda um quarto romance: Angela entre dois mundos, publicado em 2010 pela mesma editora.
A Devir fez um bom trabalho na compilação, que foi totalmente revisada e premiada com a belíssima capa de Vagner Vargas, que também executou ilustrações para a abertura interna de cada livro. O volume conta ainda com um prefácio do jornalista Marcello Simão Branco.
O primeiro livro, "Padrões de contato", está divido em quatro partes distintas. A primeira delas, intitulada "Estrela cadente (2426 AD)", narra o primeiro contato de um ser humano com a inteligência alienígena Tríade, na pessoa de Angela Duncan que, por isso, é agraciada com a juventude eterna. Desde então, Angela torna-se uma personalidade mundial numa Terra futura na qual a ciência respondeu a todas as dúvidas e acabou com todos os problemas da sociedade. Enquanto inteligências artificiais governam a civilização e grandes corporações lutam pelo domínio do espaço, a humanidade é sacudida pelas revelações apocalípticas de uma sonda alienígena vinda do espaço profundo.
Na segunda parte, "Luzes do abismo (2560 AD)", as inteligências artificiais foram literalmente para o espaço e uma geração pós-humana reforçada com todo tipo de upgrades biotecnológicos, pretende seguir o mesmo caminho. A imortal Angela vive numa estação instalada na atmosfera de Júpiter, onde os cientistas tentam contatar uma sociedade alienígena que ali reside.
Em "Fuga da eternidade (2701 AD)", a Tríade volta a Terra e absorve uma parte da humanidade que se preparara para isso voluntariamente. Sem mais nada de útil para fazer, um grupo de homens e mulheres requisitam uma espaçonave para também meter-se para sempre no espaço sideral.
"A filha dos deuses (3002 AD)" completa o livro. A bordo de uma espaçonave repleta de alienígenas em missão de pesquisa num buraco negro, Angela finalmente volta a se encontrar com a Tríade, que lhe revela o motivo de ter lhe dado vida, juventude e beleza eternas.
O segundo livro, "Horizonte de eventos", divide-se em três partes. A primeira, a melhor de toda a trilogia, é "Choque cultural", em que Angela Duncan e a também imortal jornalista Luciana Vilares viajam à bordo do mundo artificial Éden 6, a caminho do núcleo da galáxia. A certa altura encontram a Brasil, uma antiga espaçonave terrestre perdida. Lançada no século XXII, a Brasil usava uma tecnologia primitiva, viajando no espaço tridimensional em velocidades próximas à da luz, de modo que a tripulação só envelhecera duas décadas em oitocentos anos de viagem. A tripulação era formada por colonizadores brasileiros em busca de um planeta selvagem, mas um acidente no percurso os tirara da rota, levando ao poder uma guarnição de militares diretamente inspirados na nossa ditadura, que ali governavam com mão de ferro.
"Os dois lados do amanhã" é um típico período de interregno. Superados os problemas com a Brasil, Éden 6 segue sua jornada ao centro da galáxia, onde pretende encontrar-se com a Tríade. Dafne, neta de Angela e igualmente imortal, pesquisa alienígenas globulares e Luciana, na companhia de Fernando – um dos sobreviventes da Brasil – viajam à Terra para pesquisar as fichas dos náufragos, que deviam subexistir nos antigos registros preservados em velhíssimos bancos de memória.
"Horizonte de eventos" conclui este segundo livro. Lena, filha de Dafne, não herdou da mãe a dádiva da juventude eterna. Como todo o resto da humanidade, ela também vive no espaço sideral em constante trabalho de pesquisa científica. A expedição em que Lena participa a leva a expôr-se a uma desconhecida raça alienígena, os nictianos, que se revelam de natureza parasitária e invadem os corpos dela e de toda a equipe. Com a mente controlada pelos nictianos, Lena e seus companheiros atacam Éden 6, num mortal jogo de gato e rato em meio às estrelas do núcleo da galáxia.
"Linha terminal" fecha a trilogia retomando personagens e situações que haviam aparecido no primeiro livro e não tinham sido lembrados no segundo. Os pesquisadores descobrem uma antiga espaçonave terrestre orbitando um estranho planeta. Ali encontram evidencias da presença antiga dos djestares, civilização galáctica desaparecida que criou a Tríade. Enquanto isso, Angela Duncan, com recursos da Grande Comunidade Galáctica, passou as últimas décadas dedicada a construir uma enorme máquina do tempo, através da qual volta a época em que os djestares ainda existiam para descobrir uma forma de recuperar a saúde da Tríade, que está morrendo. Por acaso, a época em questão é justamente os anos 1980 e o local em que ela pretende encontrá-los é justamente o litoral do Rio de Janeiro.
A narrativa de Calife é equilibrada, com bons diálogos e ritmo agradável, sem vales profundos ou montanhas íngremes: o leitor passeia tranquilo e sem sobressaltos. Mas a reunião dos três romances tornou a leitura um fardo difícil de carregar. Primeiro, por causa do peso de suas quase 700 páginas que, se não estiver bem apoiado, em poucos minutos faz doer os braços mais musculosos. Depois, porque os romances foram escritos para serem lidos separadamente. Justapostos, tornam-se cansativos e redundantes. A falta de uma linha narrativa principal confunde o leitor que, quando chega ao meio do livro, já não se lembra mais do que aconteceu no início.
Irrita também a insistência do autor em convencer seus leitores da não existência de Deus, como obviamente ele mesmo acredita, pois o romance em si já seria suficientemente eloquente. Volta e meia, os alter-egos femininos do autor lascam um discurso antignóstico que beira o panfletário. A revisão bem poderia ter removido essas partes que, além de não fazerem falta nenhuma no enredo, empanam o brilho do que poderia ter sido uma perfeita peça de proselitismo ateu. Não que eu concorde necessariamente com a crença do autor mas, pelo menos o livro, como peça literária, teria subido alguns pontos na minha avaliação.
A falta de conflitos importantes e a fragilidade das personagens principais, todas muito parecidas, também enfadam o leitor que, na maior parte do tempo, depende unicamente das elaboradas descrições de imagens cósmicas para sustentar o interesse.
Quando Calife encontra um bom conflito para explorar, como é o caso do acidente de Angela nas nuvens de Júpiter (em Padrões de contato) e o conflito entre o mundo artificial Éden 6 e a totalitária Brasil (em Horizonte de eventos), o texto ganha fôlego e a leitura progride com vigor. Mas os problemas são rapidamente superados e o curso narrativo logo volta ao ritmo de cruzeiro, pacífico e preguiçoso.
Mas que não fiquem dúvidas: Jorge Luiz Calife e Padrões de contato merecem todas as homenagens que lhe cabem. Trata-se de uma obra pioneira em vários aspectos, com belíssimas e inspiradoras descrições de maravilhas do espaço profundo, coisa em que Calife é sem dúvida, imbatível.
— Cesar Silva
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ResponderExcluirUal... Simplesmente formidável, o que me deixa triste é a persistente dificuldade para encontrar o livro à venda, não consigo encontrar... isso deixa explícito o descaso com nossa literatura (ou melhor, parte dela), quando o Brasil ousa na literatura, ou seja... Foge do romantismo clássico do século XIX, a obra não parece receber o valor que deveria, sem dúvidas uma versão digital dos contos de Calife seria pulquérrimo, é lastimável saber que existem versões digitais de livros brasileiros do século XIX e não de um lançado em 1985 (por exemplo), enfim...
ResponderExcluirA Devir meio que se retirou do mercado literário e hoje investe mais em jogos de tabuleiro e quadrinhos. Só se sair por outra editora.
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