O
Último Livro
(Poslednja Knjiga), Zoran Zivkovic. Tradução de João Cruz. 235 páginas. São
Paulo: Editora Octavo, 2012.
Com a grande
quantidade de títulos lançados no Brasil não chega a ser uma total surpresa o
lançamento de Zoran Zivkovic entre nós. Autor de grande prestígio dentro e fora
das fronteiras do fantástico – comparado até a Jorge Luis Borges – teve o seu
romance O Último Livro publicado pela
pequena editora Octavo em 2012.
Natural de
Belgrado, capital da Sérvia (antiga Iugoslávia), Zivkovic, de 67 anos, é autor
de cerca de 30 livros, 20 deles de ficção, e tem uma sólida formação literária
que, talvez, dê algum respaldo ao refinamento literário de sua obra. Doutor em
Teoria Literária pela Universidade de Belgrado leciona escrita criativa nesta
universidade. Foi um dos poucos autores de língua não inglesa a ser premiado
com o prestigioso World Fantasy Award, em 2003, com a coletânea Biblioteca.[1]
Biblioteca foi publicada em Portugal
em 2005 pela pequena editora Cavalo de Ferro. Composta por seis contos leva o
fantástico a dimensões desconcertantes e surpreendentes. O livro expande a
premissa de Borges, em seu conto “Biblioteca de Babel”. Zvikovic aprofunda o
tema da biblioteca, com histórias sobre uma biblioteca virtual, uma particular,
uma mínima, uma noturna, uma infernal e uma requintada. Um sujeito racional e,
claro, amante de livros, é surpreendido por eventos inexplicáveis entre o
absurdismo e o fantástico mais aberto e enigmático. O livro foi traduzido
diretamente do sérvio e o texto é fluente e direto, sem firulas, indo direto ao
âmago do tema e o explorando a fundo, como a ampliar a sensação de desconcerto
e perplexidade que compartilhamos com os personagens.
Estas
características narrativas também são vistas em O Último Livro, romance no qual o autor novamente faz uma reflexão
em torno do livro e da literatura. Mas o alvo agora é a relação nem um pouco
casual (ou racional) que podemos estabelecer entre o autor, seus personagens e
o leitor. No ato de escrever uma obra o autor cria um universo que a partir da
leitura de alguém passa a não ser só mais dele, mas também do leitor, através
da sua interpretação subjetiva, poderíamos dizer de sua fruição particular da
obra e seus personagens. E geralmente diferente a do autor quando escreveu uma
história e criou seus personagens.
De forma hábil e
agradável Zivkovic trabalha estes temas no contexto aparente de um romance
policial. Ocorre um terrível e inusitado acontecimento na livraria Papyrus.
Seus clientes começam a morrer quando abrem um determinado livro. Mas ninguém
sabe que livro é este. Um inspetor amante da literatura assume o caso e ao lado
da dona da livraria enredam-se numa trama cada vez mais insólita que inclui
também a polícia secreta do país onde os eventos ocorrem. Embora Zivkovic em
momento nenhum fale da Sérvia, é óbvio que inclui no livro este componente
crítico de um país que vive num Estado quase policial, herança do regime
autoritário que o grassou, quando ainda se chamava Iugoslávia durante a segunda
metade do século XX.
Se fosse apenas
um bom thriller policial eu leria o
livro, mas não o resenharia para o Anuário. Mas o investigador Dejan
Lukic sente um dèja vu a partir do
momento que entra na Papyrus e começa a investigar o caso. A cada passo e nova
situação, parece que já a vivenciou antes, de tal forma que quase chega a
intuir de forma antecipada o que ocorrerá a seguir.
Lukic e Vera
Gravilovic, a dona da livraria, se envolvem emocionalmente, mas isso é bem
dosado e não interfere no plano principal do enredo. Chega a fortalecer os
meios à disposição para tentar compreender os efeitos do tal último livro e
impedir novas mortes. Pois ambos descobrem que o último livro é cultuado por
uma seita secreta que realiza cerimônias fechadas em torno do conteúdo da obra.
Mas todas as pessoas que morreram ao tomar contato com o livro tiveram uma
experiência em comum, única, banal, mas fatal para suas vidas. Pode parecer, à primeira vista uma releitura
pós-moderna do romance O Nome da Rosa
(1980), de Umberto Eco, e este livro é inclusive citado na trama. Mas a ênfase
de O Último Livro é bem diferente.[2]
Zivkovic imprime
um ritmo ágil e tenso à história, e com a fluência de sua prosa a torna um
autêntico page turner difícil de
largar. Em termos literários percebe-se a elegância de um texto limpo, a
serviço do desenvolvimento do enredo, sem gorduras e sequências desnecessárias,
tão comum em autores mais próximos dos best-sellers.
Isso torna O Último Livro uma
experiência instigante, ainda que tenha apreciado mais Biblioteca, por causa da
exploração diversa de uma premissa, além de seu competente poder de síntese na
forma curta.
A conclusão do
romance é surpreendente e não é o caso de revelar aqui. Digo apenas que vai de
encontro à reflexão inicial proposta pelo autor, do diálogo entre autor,
personagens e leitor. E encaminha o livro para o terreno do absurdo, melhor
dizendo, para a seara do fantástico, não no sentido mais óbvio, mas provocando
no leitor uma sensação de desconcerto semelhante ao sentido pelo casal de
investigadores quando descobrem afinal o que é o último livro e seus mistérios.
Espero que O Último Livro seja apenas o primeiro
deste importante autor sérvio a ser publicado no Brasil. Seu talento narrativo
e suas visões incomuns de aspectos da realidade tornam a leitura uma
experiência rica e inovadora para o leitor, além de contribuir para a ampliação
das fronteiras do gênero fantástico. Um autor contemporâneo essencial.
– Marcello Simão Branco
[1] Já em 2009 ele foi o “autor
convidado de honra” da Convenção Mundial de Fantasia (World Fantasy
Convention).
[2] Lembrei também do livro
imaginário de H.P. Lovecraft, O
Necronomicon, no sentido de ser um livro maldito e cultuado. Mas, de novo,
os desdobramentos de O Último Livro o
levam para um caminho próprio e singular.
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