Quando li a sinopse de divulgação de Areia nos dentes, fiquei empolgado. Não é comum que um autor brasileiro se arrisque a escrever faroeste e, ainda mais raro, que o misture com horror, pois a chance de sair algo muito errado é grande. Ainda mais por ser o primeiro romance de Antônio Xerxenesky, escritor portoalegrense que estreara apenas dois anos antes com a coletânea de contos Entre (Editora Movimento, 2006). O que me dava segurança quanto ao seu potencial era que, pouco antes, havia lido a antologia Ficção de polpa volume 1 (Editora Fósforo, 2007), da qual o autor faz parte com o bom conto “O desvio”, no qual um casal viaja num automóvel em alta velocidade assustando-se mutuamente.
Areia nos dentes conta a história de duas famílias rivais – os Ramírez e os Marlowes – que se enfrentam cotidianamente no pequeno vilarejo de Mavrak, (corruptela de Maverick) perdido no deserto norte-americano. Os motivos da rixa perderam-se no tempo, mas os sobreviventes continuam a se odiar com todas as forças. O jovem Martín, por ordem de Miguel Ramírez, seu pai, invade sorrateiramente a residência dos Marlowes na intenção de descobrir o que seus desafetos estão fazendo em segredo no porão, mas um tiro perdido o assusta e ele foge sem descobrir nada. No dia seguinte, Martín é encontrado morto e ninguém sabe quem foi o assassino, embora as suspeitas do velho Miguel recaiam, obviamente, nos odiados Marlowes. Ele então incumbe Juan, seu filho mais novo, a vingar o irmão assassinado mas, antes que isso aconteça, um delegado chega a Mavrak para apurar os fatos, aplicar a lei e impedir um banho de sangue naquele lugar esquecido.
Juan Ramirez estudou na cidade grande e não é exatamente um pistoleiro, e a pressão de seu pai parece não ser suficiente para convencê-lo a agir. O que vai motivá-lo é a desconfiança em relação a preferência que sua namorada secreta, a linda Vienna Marlowe, parece demonstrar por Samuel, um de seus próprios primos. Sem coragem para enfrentar Samuel de arma em punho, ele busca pela ajuda de um velho xamã que usa um poderoso feitiço herdado dos antigos astecas para levantar os mortos dos túmulos. No clímax da história, finalmente veremos o duelo entre os jovens Ramírez e Marlowe e o destino sanguinolento de Mavrak.
Xerxenesky, entretanto, não conta apenas essa história; intercala a narrativa épica – que, em alguns momentos, parece ter sido inspirada nos mais escandalosos westerns spaguetti já filmados – com o esforço do solitário Juan Ramírez que, na cidade do México dos dias de hoje, tenta registrar um memorial de sua família, especialmente do antepassado de quem herdou o nome. A princípio datilografando numa velha máquina, depois num computador que não quer funcionar direito, o Juan Ramírez moderno constrói uma história que é muito mais invenção do que realidade.
Articulando o trabalho de memorialista improvisado com a sua narrativa fantástica, o romance ganha aspectos metalinguísticos interessantes, com o que colaboram alguns experimentos concretistas que ilustram a diagramação do volume. A narrativa é ágil e divertida, ainda que nada confiável: o faroeste de Xerxenesky/Ramírez soa tão falso quanto as fachadas cenográficas dos filmes que o inspiram.
Como ficção, o trabalho de Xerxenesky não tem muita profundidade. A história é pueril, de um clima falso e afetado. Apesar da recheada de ação, não emociona e não transmite nem o maravilhamento que se espera de um épico nem o estranhamento que se espera de uma história de horror. Mas, ainda assim, Areia nos dentes é uma jogada de mestre, pois não há como acusar Xerxenesky de pecar nesse aspecto. Afinal, é Juan Ramírez o verdadeiro autor do romance e ele não é um escritor, além de estar sempre bêbado e empenhado em tornar a história de sua família em algo espetacular, mesmo que para isso tenha que mentir um pouquinho.
O maior mérito de Areia nos dentes está no experimentalismo gráfico. Por exemplo, numa certa altura o autor usa uma diagramação de roteiro de teatro, com fontes diferenciadas do corpo do texto, como se fosse um diálogo ensaiado. Noutra, contrapõe duas colunas simultâneas, sendo que na primeira a ação é praticada por Juan Ramírez e na segunda, por Samuel Marlowe. E quando o computador dá defeito, o texto transforma-se em sinais ilegíveis. Apesar de não contribuírem em nada para a construção do clima de ficção – ao contrário, prejudicam-no enormemente – estes experimentos gráficos são muito divertidos.
Dessa forma, Areia nos dentes, ainda que seja um faroeste de horror rasgado com tudo o que tem direito, acaba não sendo nem faroeste nem ficção de horror, mas uma peça de experimentalismo que pouco tem a ver com a literatura fantástica. Mesmo assim, não decepciona e vale a pena ser lido.
— Cesar Silva
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