Os fãs gostam de estar na crista da onda, antenados com as ondas estrangeiras, especialmente dos EUA e Reino Unido. Assim também são autores-fãs, que acreditam que explorar novos ambientes e novos instrumentos narrativos é o atalho para a criação de algo novo, tendo esse novo valor suficiente por si mesmo. Antes mesmo da habilidade técnica, o autor-fã acredita na originalidade, e sobre ela costuma ser muito ciumento. Dessa forma, as ondas do cyberpunk, o new weird e, agora, o steampunk, chegaram aos fanzines muito mais rapidamente que a qualidade narrativa dos autores, reverenciadas como aspectos de uma originalidade mais que desejada. Essa falta de maturidade técnica acaba impedindo que a maior parte dos autores compreenda profundadamente o que esses movimentos significam em toda a sua amplitude, e acabam por adotar apenas seus aspectos mais óbvios, não raro criando um modelo que, ao fim e ao cabo, é mais cerceador que libertador.
Dessa forma, o cyberpunk foi emulado pelos fãs brasileiros apenas pela presença intensiva da virtualidade e uma linguagem forrada de jargões tecnológicos; o new weird transformou-se tão somente na mistura de gêneros estilo "tudo ao mesmo tempo agora". O steampunk, enfim, foi estigmatizado pelos cenários vitorianos com tecnologias imaginárias ou extrapoladas. E assim sendo, o steampunk sequer é novidade. Afinal, essas características já estavam presentes nos primórdios da ficção científica. Os cenários são os mesmos que vemos nos primeiros textos de ficção científica de Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H. G. Wells e seus contemporâneos. Então, por que isso agora?
Desde os anos 1990, especialmente no Brasil, os leitores progressivamente desinteressaram-se pelas promessas do futuro e voltaram-se para o passado: romances históricos, fantasia medieval e horror gótico passaram a ser o tipo de leitura comercialmente melhor sucedida. A ficção científica acompanhou a tendência justamente com o steampunk, encampando o romance histórico a partir da história alternativa – que pode aproveitar personagens reais – e da ficção alternativa, na qual são emprestados os personagens de ficção em domínio público, como Sherlock Holmes, Allan Quartermain e Drácula.
A editora Tarja, gerenciada por jovens escritores de ficção fantástica, decidiu assumir o subgênro e reuniu nove trabalhos inéditos na que propôs ser a primeira antologia steampunk da ficção brasileira, organizada por Gianpaolo Celli sob o título de Steampunk: Histórias de um passado extraordinário. Ainda que seguindo o mesmo princípio derivativo que historicamente caracteriza a ficção científica brasileira, o livro logrou ser um dos melhores momentos do gênero em 2009. Autores experientes deram ao volume o estofo necessário para agradar aos leitores exigentes, e os autores estreantes revelaram uma qualidade acima da média das antologias publicadas.
O conto que abre a antologia é "O assalto ao trem pagador", assinado pelo organizador. Na virada do século XIX, três pesquisadores de aerostatos, cada um deles representante de uma sociedade secreta que manipula os destinos do mundo, criam um dirigível especial para roubar o carregamento de ouro de um trem superarmado. Apesar da boa narrativa, a moral da história é discutível e os personagens esquemáticos não evocam a simpatia do leitor.
Em seguida encontramos "Uma breve história da maquinidade", do experiente tradutor Fabio Fernandes que, em 2009, também publicou Os dias da peste, seu primeiro romance pela mesma Tarja Editorial. O autor mergulha na ficção alternativa, emprestando de Mary Shelley o Doutor Victor Frankenstein que, depois do fracasso com a criatura de carne, decide construir homens de metal. Associado a outros notáveis, cria uma fábrica de robôs e muda os caminhos da civilização do início do século XIX, colocando um serviçal robótico na casa de cada família. Com o passar dos anos, as máquinas ganham consciência e passam a reivindicar seus direitos civis, algo similar à clássica peça R.U.R., do escritor tcheco Karel Capec, não obtém contudo a mesma eficiência dramática.
"A flor de estrume" é a estreia do jornalista Antonio Luiz M. C. Costa como escritor. A história se passa em São Paulo, no início do século 20, em uma realidade em que os povos nativoamericanos não foram extintos e desenvolveram alta tecnologia. Um espião europeu tenta roubar do Instituto Butantã um produto recém-desenvolvido: a penicilina. O conto abusa de termos tupi-guaranis e investe no detalhamento dos cenários, construindo imagens pungentes que inserem o leitor nesse ambiente exótico com grande eficiência, mas abandona a história em si. O ambiente minucioso contrastado com um conflito ligeiro deixa impressão de uma história que terminou antes da hora, que pede para ser estendida.
"A música das esferas" também é estreia do autor Alexandre Lancaster. Um jovem prodígio em tecnologia envolve-se no que parece ser um caso de assassinato. Junto a um policial de técnicas pouco ortodoxas, enfrentam os riscos de uma descoberta científica muito perigosa. A primeira metade do conto é perfeita, com personagens bem montados e um mistério instigante a ser resolvido mas, na busca por uma narrativa intensa, a conclusão se vulgariza num show hollywoodiano de fogos de artifício. Ficou a sensação de ser o primeiro de uma série.
"O plano de Robida: Un voyage extraordinaire" é o texto mais longo do livro. Assinado pelo experiente Roberto de Sousa Causo que, em 2009, também publicou o romance Um anjo de dor, pela editora Devir Livraria, conta uma bem urdida aventura que mescla ficção e história alternativas. A bordo de um dirigível, um comando militar, acompanhado de um alternativo Alberto Santos Dumont, ataca forças terroristas internacionais acampadas na selva brasileira. Capturados, confrontam Robert Robida, o líder dos terroristas, que pretende tornar-se o senhor do mundo dominando tecnologias modernas e conhecimentos tão antigos quanto a civilização humana. O conto dialoga claramente com o romance Robur, o conquistador, de Júlio Verne, mas Causo mudou o nome do vilão provavelmente em homenagem ao importante ilustrador dos livros de Verne, Albert Robida (1848-1926). Também homenageia os romances de mundo perdido dos primórdios da ficção científica brasileira, como Amazônia misteriosa (1925) de Gastão Crulz e A cidade perdida (1948) de Jerônymo Monteiro. Uma verdadeira new weird, com dinamismo e conflitos em doses certas. A conclusão em aberto sugere uma sequência.
"O dobrão de prata", de Claudio Villa, escapa um tiquinho do formato geral dos demais contos da antologia, pois investe no terror sobrenatural ao invés da ficção científica. Um pesquisador acadêmico embarca numa aventura marítima em busca de um tesouro naufragado. Conto simples, que busca o estilo de H. P. Lovecraft.
A convencionalidade do conto de Villa valoriza ainda mais a sofisticação do texto seguinte, "Uma vida possível atrás das barricadas", de Jacques Barcia, o melhor texto do livro, candidato às listas de melhores contos da ficção científica brasileira. Um estranho casal – um robô e uma golem – foge para onde sabe que conseguirá ajuda para gerar um filho. Mas o local enfrenta uma revolução trabalhista e a guerra é um perigo contínuo. Uma história forte, com personagens interessantes e narrativa vigorosa e criativa. Contudo – e isso não é demérito algum – está mais para cyberpunk do que para steampunk, sem fazer uso das convencionalidades de nenhum dos dois subgêneros.
Em "Cidade phantástica", de Romeu Martins, o personagem principal é um super-edifício onde um delegado investiga os desdobramentos de um sequestro. As muitas citações podem agradar aos que gostam de caçar detalhes.
Flávio Medeiros fecha a seleta com "Por um fio", deliciosa homenagem à obra de Júlio Verne – sempre ele – contando o confronto de seus dois sociopatas favoritos, Nemo e Robur, cada qual em seu veículo de guerra característico num combate até a morte. Ecoa também A raposa do mar (The enemy bellow, 1957), longa metragem que narra uma dramática batalha entre um couraçado americano e um submarino alemão.
Numa avaliação geral, a qualidade da antologia está acima da média, equilibrada e bem editada. Peca apenas pela falta de originalidade, já que a proposta é, sem nenhum pudor, emular um subgênero que parece estar na moda. Já se vê por aí grupos de fãs fantasiados de Bat Masterson, de colete, polainas, bengala e chapéu coco, tentando implementar, tal como os fãs de Star Trek, um estilo de vida steampunk.
Não há nisso, portanto, muito mérito, pois não se percebeu empenho dos autores, exceção feita a Jacques Barcia, em fugir dos paradigmas do steampunk. A recorrência aos aerostatos e a Júlio Verne mostra que ou os autores tiveram dificuldade em visualizar alternativas para o ambiente ou simplesmente não se empenharam em desdobrar o modelo em algo mais original.
Mas talvez a editora Tarja pretenda dar sequência ao projeto com um segundo volume. Então, quem sabe, os novos valentes que se lançarem a tarefa dediquem-se um pouco mais e consigam escapar do beco sem saída de homenagens, citações e derivações com que a antologia apresentou o gênero.
— Cesar Silva
* A editora Tarja encerrou suas atividades em 2013 sem efetivar a publicação de um prometido segundo volume da antologia, que chegou a ser anunciado em diversas fanpages ligadas ao tema. Contudo, lançou outros títulos que com ela dialogam, como a antologia Retrofuturismo, publicada em 2013 com contos de proposta algo mais ampla. A mais importante herança da antologia Steampunk, contudo, é a enorme quantidade de antologias similares que a ela se seguiram por várias outras editoras, que ainda repercutem no fandom brasileiro.
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