sábado, 6 de junho de 2015

A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig

A estrela de Iemanjá, Simone Saueressig. Capa e ilustrações de Maurício Veneza. 168 páginas. Cortez Editora, São Paulo, 2009.

A ficção fantástica produzida no Brasil, com honrosas exceções, não privilegia as características nacionais. Não que isso tenha sido sempre assim. Muitos fantasistas brasileiros não sentiram dificuldade em inserir o imaginário nos cenários brasileiros. Mas, no que se refere a fc&f contemporânea feita nos últimos 30 anos dentro dos muros do fandom, havia a princípio uma grande dificuldade em enxergar a fantasia e a tecnologia no ambiente cotidiano local. Os autores costumeiramente apelavam para ambientes europeus e norte-americanos, aproveitando também para batizar os personagens com nomes associados a cultura anglo-europeia, pois o contrario lhes soava de tal modo anacrônico que impedia que fosse levado a sério, o que o escritor Braulio Tavares veio a batizar como "Síndrome do Capitão Barbosa". Em 1986, o escritor-fã Ivan Carlos Regina (O fruto maduro da civilização, GRD, 1993), propôs nas páginas do fanzine Somnium um manifesto de valorização da brasilidade na ficção científica nacional, que ficou conhecido como Movimento Antropofágico da FCB, em referência ao Manifesto Antropofágico da Semana de 1922. Em torno do texto de Regina reagiram inúmeros autores, a favor e contra, e com os passar dos anos as imagens, nomes e culturas brasileiros emergiram em boa parte dos textos realizados pelos fãs, o que felizmente continua acontecendo hoje.
Contudo, muito disso deve-se a um esforço militante de um determinado setor que busca uma identidade para a ficção fantástica brasileira. A maior parte desses autores avançou sobre temas e conceitos que para si próprios não eram naturais. Não vou dizer aqui que isso não não funcionou, porque funcionou sim. Mas o "brasileirismo" vai muito além de ambientes.
Uma das maiores dificuldades dos autores é com os personagens. É muito difícil definir idiossincrasias pessoais sem cair na caricatura e no estereótipo. Na digna tentativa de evitar essa armadilha, os personagens acabam homogenizados, achatados num espaço de pouca manobrabilidade, que é ainda mais engessada nas mãos de autores menos experientes.
Então, para demarcar bem seus personagens, os autores costumam lançar mão dos arquétipos. Funciona, do ponto de vista dramático, mas os personagens ficam distantes do leitor, tão irreais como os personagens mitológicos.
Ainda há muita dificuldade em modular personagens e, entre os mais evitados, estão os personagens negros. Isso porque a ampla maioria dos autores brasileiros que se exercita na fc&f são brancos. Não passaram e nunca passarão pelas dificuldades de ser negro num país que aboliu a escravidão há pouco mais de um século. Talvez haja um certo mal estar entre esta legião de escritores brancos em se colocar no lugar de um negro brasileiro, então melhor nem tentar.
Entretanto, houveram tentativas bem sucedidas. Mas, de forma geral, os personagens negros só o são porque o autor decidiu descrevê-los assim. No mais, eles se comportam exatamente como qualquer outro, não há muita etnia em sua vida. Uma das desculpas recorrentes entre os autores é querer reafirmar a igualdade entre negros e brancos, que a cor da pele não faz diferença. Mas faz: interfere de maneira importante na psique do indivíduo e na forma como ele é tratado na sociedade. Talvez apenas os próprios autores negros tenham suficiente sensibilidade para construir personagens negros palpáveis mas, infelizmente, eles são minoria no fandom. Conheço pessoalmente apenas um, o experiente Julio Emilio Braz (Megalópilos, 2006, Rocco). Por isso, não é de se surpreender que tenham sido tão poucas as tentativas de usar o panteão africano como base de histórias especulativas. Talvez haja aqui alguma preocupação com o fato desse imaginário ser base de religiões ativas no país, como a umbanda e o candomblé.
Mesmo assim, a corajosa escritora gaúcha Simone Saueressig, autora de A noite da grande magia branca (Cortez, 2006) e A fortaleza de cristal (L&PM, 2006), ousou investir nesse tema em seu romance A estrela de Iemanjá, publicado pela editora paulista Cortez em uma edição ilustrada por Maurício Veneza, com acabamento luxuoso pouco visto nas letras nacionais.
A história, indicada pela editora para aulas de língua portuguesa, geografia e história, conta como três jovens pescadores negros, Tomás, Cosme e Daniel, inadvertidamente capturam em sua rede a poderosa estrela do mar de Iemanjá, roubada de sua proprietária por Joelho e Benevides, dois salafrários que para isso usaram um submarino. Durante a fuga, a estrela causa problemas na máquina e, morto de medo, Benevides joga fora a estrela por uma escotilha, justamente quando a rede dos meninos flutuava por ali.  Os poderes da estrela provocam uma tempestade furiosa que arremessa os garotos na praia de Aganjú, uma ilha desconhecida que não devia estar ali. Eles ajudam Ubatá, uma garota que está numa importante missão e para isso teve de roubar o amuleto de uma raça de seres ferozes. Para voltar para casa, os meninos terão de acompanhar Ubatá para o interior da ilha, em busca de ajuda. Mas eles não imaginam que Joelho e Benevides estão logo atrás deles, pois querem recuperar a estrela, que eles carregam sem saber do que se trata. A ilha de Aganjú esconde um universo maravilhoso, repleto de magia, perigos e mistérios que os meninos terão de superar caso queiram escapar dessa armadilha mortal, que envolve o próprio fim dos tempos para todo o planeta.
Não é a primeira vez que Simone conta uma história com orixás. Em O palácio de Ifê (L&PM, 1989), a autora enveredou pelo tema, numa aventura que também tem contornos juvenis, mas é algo mais dramática.
Simone não evita temas regionalistas e folclóricos, ao contrário, ela os persegue com rara criatividade e poesia. Talvez tenha sido por isso que a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil selecionou A estrela de Iemanjá para representar o Brasil na Feira do Livro Infantil de Bolonha 2010, junto a outros 210 títulos que foram apresentados a editores, escritores, ilustradores e estudiosos do mercado internacional. Foi a primeira vez que a autora de Novo Hamburgo teve um de seus livros selecionados para a mostra.
A simples presença do trabalho de Simone entre os leitores jovens cria uma boa expectativa para as futuras gerações de escritores, que terão nela uma excelente referência criativa.
Ainda que muita gente ainda sofra, por convicção, da Síndrome do Capitão Barbosa, está bastante claro que não há nenhuma dificuldade ou facilidade agregada ao texto apenas pelo fato dele fazer uso de imagens e etnias brasileiras. Não é preciso disfarçar a origem cultural para ser "melhor recebido" pelo mainstream, seja no mercado nacional seja no internacional. Faça-se o que quiser, tanto faz. O que conta a qualidade do trabalho realizado e, sem dúvida, isso não falta a Simone.
Cesar Silva

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