Aprendi a admirar a literatura de José J. Veiga (1915-1999) quando era ainda adolescente. Incentivado por uma mãe bibliotecária, li muita ficção fantástica desde a infância e logo escrevi meus próprios contos. Alguns desses primeiros textos foram parar nas mãos do Dr. Miller, então Secretário de Cultura de Santo André, e foi este senhor que, ao me receber em sua casa, recomendou a leitura do autor. Os primeiros livros de Veiga que li foram o romance A hora dos ruminantes (1966) e a coletânea Os cavalinhos do Platiplanto (1959), que a Editora Companha das Letras está oportunamente republicando em uma coleção caprichada em comemoração ao centenário de nascimento deste autor goiano (veja post aqui).
A nova edição de Os cavalinhos do Platiplanto – prefaciada por um excelente ensaio crítico de Silviano Santiago – reúne os primeiros contos escritos por Veiga, que estreou tardiamente na literatura, aos 44 anos de idade. São doze contos ao todo, que relatam situações ligadas a vida em pequenas comunidades do interior brasileiro, nas quais a fantasia e o inusitado de imiscui de forma natural e harmônica.
O primeiro conto, "A ilha dos gatos pingados", relata um momento na infância de três garotos que, para fugir da violência doméstica, constroem um refúgio secreto num banco de areia no meio do rio. Apesar do romantismo, o relato da violência pelo qual passa um dos personagens é de cortar o coração.
O segundo texto, "A usina atrás do morro", é uma história icônica na obra de Veiga, em muito similar a seu texto mais conhecido, o já citado A hora dos ruminantes. Conta a reação que a chegada de uma grande e misteriosa indústria causa numa pequena comunidade rural, relatada por um dos moradores, um jovem que tenta entender por quê a promessa de desenvolvimento teve de vir acompanhada de uma violência que beira à insanidade. Contudo, diferente da conclusão redentora do romance, o conto é muito mais duro e distópico.
O texto que empresta o nome ao livro também tem uma criança como narradora, que conta como a promessa frustrada de ganhar um cavalo do avô o leva a sonhar com uma fazenda mágica na qual os cavalos mais lindos do mundo são todos seus. O estilo de Veiga já se manifesta aqui, sem definir as fronteiras entre sonho e realidade, na forma como as crianças enxergam o mundo.
"Era só brincadeira" é o que poderíamos chamar de um texto absurdista. Durante uma pescaria, um homem resgata do rio um velho cano de espingarda que vai se transformar num bizarro caso de polícia com um final trágico. Ainda bem que era tudo brincadeira. Ou não?
"Os do outro lado" é uma história de fantasmas na tradição das casas mal assombradas. Mas, sendo Veiga, nada é exatamente o que parece.
"Fronteira" é o menor texto do livro, mas não menos potente. Conta como um menino, que tem a missão de conduzir os viajantes por caminhos nos quais só os meninos sabem andar, deixa de ser menino.
"Tia Zi rezando" fala de um menino que vive um mistério doméstico. Criado pelos tios, ele passa por diversas situações inexplicáveis, sempre ligadas a um segredo que ninguém tem coragem de contar.
"Professor Pulquério" conta a transformação de intelectual obcecado pela lenda de um tesouro enterrado em algum lugar nos arredores da pequena cidade onde mora. O final desconcertante é um dos raríssimos casos de final surpresa que não estraga o conto em si, antes pelo contrário, emprestando a ele uma leitura absolutamente diversa.
Em "A Invernada do Sossego" dois meninos irmãos esperam ansiosamente pela volta do cavalo de estimação que fugiu da fazenda. Mas o cavalo não volta nunca e eles terão de ir encontrá-lo na tal Invernada do Sossego, um lugar que talvez só exista na imaginação das crianças.
"Roupa no coradouro" é, de longe, a história mais melancólica da seleta e conta como a culpa pode se instalar para sempre no coração de uma criança inocente.
"Entre irmãos" relata o incômodo encontro de dois irmãos que não se conhecem, enquanto a mãe deles agoniza no quarto ao lado.
Em "A espingarda do rei da Síria", outra história de laivos absurdistas, um caçador que perdeu a espingarda encontra a redenção de sua tragédia pessoal numa realidade mágica.
Apesar de um predomínio de personagens juvenis e da narrativa singela, as histórias de Veiga não se limitam a esse público de forma alguma: todas tratam de temas complexos e espinhosos. Paralelos entre a fantasia e a violência, o sonho e a frustração, estão presentes em diversos textos do volume, sendo de fato uma assinatura estilística do autor.
Além de Os cavalinhos do Platiplanto e A hora dos ruminantes, A Companhia das Letras promete republicar toda a obra de Veiga, que inclui peças de horror, fantasia, ficção científica e até de história alternativa: A máquina extraviada (coletâna, 1967), Sombras de reis barbudos (romance, 1972), Os pecados da tribo (romance, 1976), O Professor Burim e as quatro calamidades (romance, 1978), De jogos e festas (coletânea, 1980), Aquele mundo de Vasabarros (romance, 1982), Torvelinho dia e noite (romance, 1985), A casca da serpente (romance, 1989), O risonho cavalo do príncipe (romance, 1993), O relógio Belizário (romance, 1995), Tajá e sua gente (romance, 1997) e Objetos turbulentos (coletânea, 1997). O que é uma bênção para os fãs de Veiga, pois as edições são luxuosas, impressas em papel pólem de alta gramatura, encadernadas em capas duras com ilustrações de Deco Farkas, além de trazerem valiosos ensaios discutindo a obra em questão e uma grande lista de leituras complementares. Sem dúvida, uma publicação importante que trata o autor e a obra com respeito e consideração que merecem.
— Cesar Silva
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