A
Torre de Vidro
(Tower of Glass), de Robert Silverberg. Tradução de Lucilia Filipe, 174
páginas. Lisboa: Publicações Europa-América, Coleção Ficção Científica, n. 13,
1981.
Em meados dos anos 1960 Robert
Silverberg se reinventou como escritor de ficção científica. Surgido no início
da década anterior como um autor extremamente produtivo, mas com uma prosa
rápida e relativamente pobre, se transformou com textos altamente estilizados
em termos literários, explorando temas difíceis e liderados por personagens psicologicamente
densos.
É difícil dizer se Silverberg obteve nesta
época seu ponto mais alto na ficção curta ou nos romances, pois em ambos os
formatos atingiu níveis de excelência poucas vezes vista dentro do gênero.
Contos como, por exemplo, “Passageiros” (“Passengers”, 1967), “A Dança do Sol”
(“Sundance”, 1968) e a novela “Asas na Noite” (“Nightwings”, 1968), e romances
como, por exemplo, Espinhos (Thorns, 1967), Mundos Fechados (The World
Inside, 1971), e este A Torre de
Vidro (Tower of Glass), lançado
em 1970 e finalista dos dois principais prêmios norte-americanos do gênero, o
Hugo e o Nebula.
Estamos no início do século 23 e a
humanidade possui a tecnologia para as viagens interestelares. Na Terra ocorrem
duas autênticas revoluções. Em primeiro lugar podemos dispor da maior parte do
tempo sem ter de pensar em trabalho, pois a maioria das atividades produtivas é
exercida por androides bastante fortes e inteligentes. Em segundo lugar as
distâncias tornaram-se obsoletas, assim como os meios de transportes
convencionais, pois as pessoas usam o transmate,
um teletransporte que permite percorrer diferentes pontos do planeta em um
único dia. Embora pouco explorada dentro da história, as fronteiras nacionais e
a própria noção de soberania se enfraquecem bastante, e sugere-se que haja um
governo mundial.
Simeon Krug é o magnata que concentra
diferentes atividades econômicas e responsável pela criação e produção dos
androides. Após a Terra receber um possível sinal de uma civilização extraterrestre,
Krug torna-se obcecado com a ideia de fazer um contato, e promove a construção
faraônica de uma torre que, quando pronta, terá 1200 metros e, por meio da
utilização dos raios táquion – mais rápidos que a velocidade da luz –,
permitirá o envio de mensagens a esta suposta civilização alienígena. A
mão-de-obra utilizada para construir a torre são os androides, que se
subdividem nos alfas, betas e gamas, em ordem decrescente de inteligência. Este
é o contexto em que se passa um romance curto e muito movimentado.
Um dos aspectos fortes da história é que
ela é desenvolvida, gradativamente, a partir de diferentes personagens, com
pontos de vista e objetivos diferentes. Assim, temos em Krug um sujeito
poderoso e egocêntrico que tem tudo ao seu dispor, e pensa que nada pode detê-lo.
Já os androides são a maioria dos seres vivos no planeta, força de trabalho
indispensável para Krug, mas com divisões internas entre eles, com os mais
obedientes e os mais contestadores. Há ainda a perspectiva do filho Manuel
Krug, que não tem o mesmo entusiasmo pelo império do pai e seus objetivos, e
divide-se entre o relacionamento com sua mulher e uma androide, a quem
verdadeiramente ama, embora tenha sentimentos contraditórios, por causa de sua
origem.
Krug torna-se cada vez mais obsessivo
com a construção da mais nova maravilha do mundo e enquanto ela é construída
organiza passeios onde leva políticos, artistas e cientistas para conhecê-la.
Enquanto isso dezenas de androides morrem durante a construção da torre. Por
não se importar com isso, abre-se espaço para crescentes dúvidas entre os
androides sobre a estima que Krug possa nutrir por eles. Os androides criam uma
religião secreta em que pedem proteção e louvor a seu Deus, no caso, Simeon
Krug, procurando desvencilhar, em parte, a figura humana de uma divina. A
maioria acredita que não irão permanecer para sempre como simples serviçais,
pois o seu criador os libertará, reconhecendo que eles devem ter direitos civis
e políticos iguais ao dos seres humanos. Outra corrente é mais cética e
organiza o Partido da Integração Androide (PIA), que reivindica abertamente a
libertação de sua condição escravocrata e igualdade política. Krug tem
desconhecimento da religião e procura não levar a sério o movimento político.
Até que uma das líderes do partido é morta por um secretário de Krug, e a
pressão por emancipação começa a se tornar uma realidade.
Como se vê este livro retoma um tema tradicional
da FC, quase que um subgênero, o do relacionamento quase sempre conflitivo
entre criador e criatura, entre o homem e a máquina. Nem sempre os resultados
são bons, mas inclui clássicos como Frankenstein
(idem, 1818), de Mary Shelley, A Fábrica
de Robôs (R.U.R, 1920), de Karel
Capek, Blade Runner: O Caçador de
Androides (Do Androids Dream of Electric Sheep?, 1966), de Philip K. Dick.
Perto destes livros Silverberg não fica a dever, pois insere questões próprias
e as desenvolve com segurança.
É interessante observar que a humanidade
procura por uma inteligência no universo para poder sair de certa solidão
existencial e compartilhar com a experiência de outra civilização, e suas
possíveis crenças, filosofia e ciência. Mas não percebe que ela mesma forjou
uma nova civilização, a dos androides. Talvez por ter sido criada por ela, não
a reconhece como igual, mas sim como um subproduto, gerando exploração e
preconceito. Nem mesmo quando Krug descobre que é visto como um Deus ele se
compadece de sua criação, ao contrário, reafirmando que eles são “coisas” que
devem se colocar no seu devido lugar.
A
Torre Vidro
é um romance complexo, que discute a questão do preconceito e do racismo – tão
caro à sociedade norte-americana nos conturbados anos 1960 –, tanto do ponto de
vista político, como do religioso que, torna-se mais dramático quando os
androides descobrem que o seu Deus os despreza. De certa forma não deixa de ser
um pouco estranho que os androides reajam de forma tão passional e violenta,
tendo sido eles concebidos como seres extremamente racionais, a serviço do
trabalho e do aperfeiçoamento de uma sociedade cada vez mais baseada na
tecnologia do qual, inclusive, eles são o supra
sumo. Mas o fato é que eles estão se tornando cada vez mais humanos.
É um livro que se lê de forma
relativamente rápida pois, apesar do contexto complexo, tem uma narrativa ágil
e cheia de reviravoltas. Em certo sentido, não dá tempo de desenvolver de forma
mais densa algumas situações e tornar os personagens mais interessantes, embora
não cheguem a ser superficiais. Por
isso, é uma pena que o livro seja tão curto, pois se tivesse ao menos mais umas
cem páginas alguns desdobramentos poderiam ter sido mais bem elaborados, e
talvez até a conclusão da história pudesse ser outra. Em todo caso, é um bom
exemplo do que uma ficção científica escrita por um autor talentoso e sensível
às questões de seu tempo pode proporcionar.
– Marcello Simão Branco
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