Em criança, com minha família, assisti pela primeira vez, no cinema, ao filme Vinte mil léguas submarinas (20.000 leagues under the sea), de Walt Disney, produzido em 1954. Depois pude reassisti-lo diversas vezes e de diversas maneiras. Ele marcou a minha vida, despertou em mim o amor pela ficção cientifica e pela fantasia.
Até hoje eu vejo esta extraordinária película como uma cabal demonstração do gênio de Walt Disney, talvez o maior cineasta de todos os tempos e aquele que realizou o maior número de filmes de arte, vale dizer, de obras-primas.
Trata-se aqui da adaptação de um romance de outro gênio, Julio Verne (Vingt mille lieus sons le mers no original francês), lançado em 1870. Verne é considerado o pai da ficção cientifica, que ele “emendou” com o romance de aventuras e viagens. É bem verdade que, antes de Verne (1828-1905) já existia ficção cientifica — por exemplo, na obra de Edgar Allan Poe (1809-1849), mas não tão copiosa. O romance de Verne, volumoso e cansativo, porém notável, antecipa a invenção do submarino marítimo de longo alcance, pois há notícia de modelos toscos utilizados em rios, na Guerra de Secessão dos norte-americanos.
Walt Disney produziu 20.000 léguas submarinas com grande requinte. O roteiro de Earl Felton enxugou o romance, propiciando um espetáculo grandioso e sublime, desde a parte técnica (fotografia, cenário, efeitos especiais) à parte moral, passando pela emocional (é eletrizante) e pelas interpretações exemplares do reduzido elenco.
De fato, importantes na trama são quatro personagens: o Professor Aronnax, oceanógrafo (Paul Lukas), seu assistente Conseil (Peter Lorre), ambos franceses, o arpoador canadense Ned Land (Kirk Douglas) e finalmente o majestoso, sinistro e misterioso comandante do Nautilus, o Capitão Nemo (James Mason). Este foi, provavelmente, o maior papel da carreira de Mason, que está soberbo na interpretação do herói trágico e meio louco, de origem desconhecida — não revelada no filme e no livro, mas sabemos tratar-se de um hindu.
Nemo é um grande cientista e navegador, com um trágico passado que o torna obcecado por vingança. Preso e torturado pelos colonizadores ingleses, recusou revelar os seus segredos: a energia atômica, que depois moveria o Nautilus. Ao fugir com um grupo de seguidores fiéis, Nemo deixou para trás a família morta (esposa e filho) e tratou de construir o submarino atômico, que usaria para atacar os navios britânicos de guerra ou transportadores de armas, tornando-se assim um terrível “anjo da vingança”.
Sobre isso a película mostra uma cena antológica quando Nemo, com um olhar ensandecido, comanda a carga do Nautilus contra um navio, até a colisão.
Aronnax, embora fascinado pelo imenso mundo submarino posto à disposição da sua curiosidade cientifica, não pode concordar com tais procedimentos, e fará o possível para convencer o capitão a disponibilizar os seus conhecimentos para a humanidade, e cessar a sua “jihad”.
Outra cena antológica — dessas que a gente grava para o resto da vida — é a luta da tripulação do submarino com a lula gigante, o terror dos oceanos. Por ela se vê que na década de 50 já haviam boas trucagens no cinema. Aliás, Walt Disney e sua equipe sempre foram bons em trucagens.
Ned Land (Kirk Douglas) faz o contraponto humorístico do austero e sombrio Capitão Nemo. Ned faz amizade com a foca de bordo e acidentalmente engole um peixinho em conserva. É também o rebelde da história, que não se conforma com o cativeiro e luta pela liberdade, bem mais que Aronnax e Conseil.
Vinte mil léguas submarinas é um épico grandioso que se sustenta na fatídica figura do Capitão Nemo. E em seu final trágico, quando Nemo agoniza ao ser mortalmente baleado, resta uma profecia de esperança: de que aqueles segredos científicos, que se perdem com Nemo, serão um dia descobertos pela humanidade, “quando a Deus aprouver”.
— Miguel Carqueija
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