Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros. Edição e apresentação
de Braulio Tavares, 167 páginas. Ilustrações de Romero Cavalcanti. Rio de
Janeiro: Editora Casa da Palavra, 2003.
Esta foi a
primeira das seis antologias que Braulio Tavares organizou para a editora
carioca Casa da Palavra até 2015. E é, ao lado de Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica (2011),
a mais significativa para a FC&F brasileira, pois se trata de obra de
referência e formação de opinião, tanto para especialistas, como para fãs e
leitores.
Ao pegar o
volume já se percebe que o livro é especial. Não só pelos escritores
selecionados, mas também pelo projeto gráfico bonito e arejado, enriquecido por
ótimas ilustrações internas para cada história por Romero Cavalcanti.
O livro começa
com um ensaio crítico chamado “Nas periferias do real ou o fantástico e
seus arredores”, didático e ao mesmo tempo pessoal, apresentando alguns dos
elementos centrais da chamada literatura fantástica, enriquecidas com uma
interpretação própria do aqui crítico Braulio Tavares. Busca uma definição
básica do fantástico, narra um pouco da trajetória e de algumas características
do fantástico brasileiro, relacionando em seguida com o Horror e seus próprios
pilares, como os fantasmas e o gótico. Para concluir com uma breve, mas
instigante reflexão sobre a ausência de florescimento de uma literatura
fantástica no Brasil, embora ela seja bem mais praticada em comparação com a
ficção científica, por exemplo.
Ele argumenta
que talvez seja porque a literatura brasileira ainda seja jovem – como o
próprio país, aliás –, e que ela ainda está mais afeita por explicações
calcadas no realismo, do que no fantástico, dada a urgência de problemas a
serem resolvidos em nossa sociedade. É uma explicação pertinente mas que talvez
seja insuficiente, especialmente se considerarmos como o Brasil vem mudando
nestes últimos 25 anos, com uma profunda mudança em sua estrutura industrial e
socioeconômica sem, contudo, alterar seu quadro de desigualdade social. E isto
trouxe, será por coincidência?, em seu rastro, uma Segunda Onda da ficção
científica, que tem sido a mais militante, produtiva e de melhor qualidade em
comparação com qualquer outro momento histórico em nossa literatura, ainda que
de alcance restrito no conjunto das letras nacionais.
De qualquer
forma, uma antologia como esta ajuda a contextualizar o cenário histórico e
recuperar algumas joias esquecidas (ou pior) não conhecidas pelos fãs mais
jovens de ficção científica e literatura fantástica.
Assim, este
livro traz 16 histórias que vão de 1884 a 1995, cobrindo praticamente um século
de produção. Obviamente, toda escolha é arbitrária mas o organizador Braulio
Tavares procurou, até onde foi possível, equilibrar o gosto pessoal com a representatividade
de uma história ou de seu autor. E estas duas características ficam explícitas
na pequena introdução a cada história, onde o organizador já apresenta o autor
e sua relação com o fantástico, bem como em que a sua literatura em geral dá
mostra, ainda que implicitamente, de insights e especulações nada
realistas.
O poeta
mineiro Carlos Drummond de Andrade abre a antologia com a despretensiosa “Flor,
Telefone, Moça”, de 1951. Tem uma narrativa bela, melancólica e
surpreendentemente sobrenatural, no relato de uma moça que retira uma flor de
um jazigo e passa a receber estranhos telefonemas. O produtor e antologista da
TV americana Rod Serling (1925-1975) certamente ficaria interessado em filmar o
conto para uma de suas séries – Além
da Imaginação ou Galeria do
Terror – caso viesse a ler a história.
O conto a
seguir é “A Podridão Viva”, de autoria de Amândio Sobral, um dos escritores
esquecidos que são recuperados neste livro. A história, publicada originalmente
em 1934, tem um clima bem construído, situando a ação no interior profundo de
uma inexplorada e distante floresta africana. Uma das regiões mais exóticas do
planeta – naquela época – e ainda hoje. O impacto dos detalhes da expedição e
da aparição são muito reforçados pela adjetivação e pelo choque
emocional sofrido pelo protagonista.
“Teleco, o
Coelhinho” é o conto seguinte, assinado por um dos grandes fantasistas
brasileiros, Murilo Rubião. Nesta história de 1965, uma fantasia em estilo
clássico, muito bem narrada, com vívida imaginação e sentido alegórico. A
situação absurda que se insere no cotidiano e passa a com ele conviver tem aqui
um relato dramático e triste, mostrando personagens solitários em busca de
compreensão e amizade.
Já o conto
seguinte é de Berilo Neves, um escritor best-seller da literatura brasileira dos anos 1930, hoje
também relegado ao pó das estantes e à leitura eventual de um pesquisador mais
dedicado. Um deles, o escritor Roberto de Sousa Causo contribuiu para dirimir
um pouco este ocaso, publicando uma edição temática sobre ele no seu
fanzine Papêra Uirandê, há
alguns anos. Em todo caso, “A Última Eva” é mais um esforço de recuperação de
um autor realmente curioso. Sua ficção científica não é mais do que sátiras
relativamente superficiais sobre casais apaixonados em suas andanças pelos
planetas do Sistema Solar.
Porém a esta
aparente ingenuidade se insere uma temática extremamente machista e misógina,
tal como mostrado neste conto, onde uma misteriosa epidemia varre as mulheres
do mundo, num tema relativamente frequente na ficção científica como, por
exemplo, no instigante e irregular romance O Planeta Esparta, do americano A. Bertram Chandler, publicado no
Brasil nos anos 1970, pela editora Nosso Tempo. No fim das contas, a presença
de Berilo Neves se justifica mais por sua representatividade histórica do que
por sua qualidade temática ou literária, exemplificado neste conto com um
enredo forçado tanto no humor, quanto no desdobramento das situações.
Lília
Aparecida Pereira da Silva é outra autora relativamente esquecida que dá as caras
no livro com o curtíssimo “A Máquina de Ler Pensamentos”. Não muito mais do que
uma espécie de variação feminina para o monstro de Frankenstein, com
semelhantes descrições do que Braulio Tavares chama de ‘ciência gótica’ para
textos deste tipo. Bizarro e com boa ambientação, não vai além da intenção de
ser uma história efetiva, sendo verdadeiramente nada mais do que uma vinheta.
O que não é o
caso, absolutamente, da história a seguir. Simplesmente “A Escuridão”, o maior
clássico da ficção científica brasileira. André Carneiro consegue, com este
texto de 1963, se ombrear com o que de melhor já se fez neste gênero em um
nível internacional – tanto que é o seu texto mais publicado mundo afora.
Repentinamente
as luzes desaparecem e a civilização mergulha nas trevas. Wladas procura
primeiro entender o absurdo, para aos poucos lutar desesperadamente para
superá-lo. Como aponta Braulio Tavares, o estilo distanciado e atemporal só
acentua a estranheza da narrativa, bem como sua intensidade humana e dramática.
A história tem uma fluidez demorada, outra peculiaridade que transmite uma
sensação de angústia não só aos personagens, mas também ao próprio leitor. Um
texto realmente bem escrito, em seus detalhes, primoroso no tratamento dos
personagens e com um final inesquecível. Disparada a melhor história deste
volume.
O maranhense
Coelho Neto foi colocado depois da obra-prima de Carneiro, o que dificulta uma
boa avaliação de sua história – aliás, como seria com qualquer outra das
histórias desta antologia. Em todo caso, Coelho Neto é um dos mais notórios
esquecidos da literatura brasileira, extremamente influente entre seus pares, e
prolixo em seu tempo, da segunda metade do século XIX até as três primeiras
décadas do século passado.
Seu
romance A Esfinge (em 1908 foi
lançada a primeira edição. A edição que eu tenho é da editora Lello &
Irmão, Porto, 1925), deveria ser procurado e lido, pois é uma história forte e
interessante, sobre um homem que recebe o transplante da cabeça de uma mulher,
numa variação curiosa da chamada ‘ciência gótica’ à lá Frankenstein. Para esta
antologia, Braulio selecionou o conto “A Casa ‘Sem Sono”, uma narrativa bem
escrita e de tema misterioso, numa especulação diferente ao tema da casa
assombrada. Poderia render mais, se tivesse explorado mais as situações
apresentadas.
"A
Gargalhada", de Orígenes Lessa, mostra como uma situação banal se
transforma de forma inexplicável e surpreendente em fantástica. Uma risada
generalizada, ininterrupta e coletiva acaba por se transformar num inusitado
horror. Vale conhecer, ainda que como referência para a ficção científica, sua
novela A Desintegração da Morte (1948,
publicado, entre outras edições, pela Futurâmica, número 568), seja o seu texto
principal e conhecido.
Adelpho
Monjardim, outro autor pouco lembrado nos dias que correm, é ‘redescoberto’
neste livro com “O Satanás de Iglawaburg”, um conto que lembra bem o estilo
das weird fictions publicadas
nas pulp magazines norte-americanas
dos anos 1930 e 1940. O conto tem um estrutura gótica assumida, com resquícios
reconhecíveis de Edgar Allan Poe e seu clássico “A Queda da Casa de Usher”.
Obviamente, a qualidade literária do autor capixaba fica a anos-luz do
norte-americano de Boston, mas o mais importante neste caso, é que a narrativa
tem um bom nível de entretenimento, envolvendo o leitor e mostrando um horror
que se assume muito mais no plano psicológico do que no sobrenatural.
Uma situação
semelhante ocorre no conto seguinte, “As Academias de Sião”, de Machado de
Assis. Só que aqui o fantástico explícito se traveste de situações alegóricas,
um recurso muito usado pelo autor em suas intermitentes incursões ao
fantástico. A intenção inicial, no caso, é satirizar as acadêmicas literárias e
científicas, tão em voga em fins do século XIX, mas o conto acaba tendo mais
efetividade na situação prática vivida pelos dois personagens principais. Pois
eles resolvem ‘trocar’ se sexo: um rei passa a ser mulher e uma rainha assume o
papel masculino dentro da trama. Contudo, ainda que seja interessante pelo fato
de ser de Machado de Assis, a história não consegue ser nada além de chata e
mal concatenada em seus objetivos temáticos.
O que não é o
caso do texto de Rubens Figueiredo, a noveleta “O Caminho do Poço Verde”.
Partindo de uma premissa simples, temos o choque civilizatório do ‘interior
profundo’, na experiência de uma mochileira. A história é rica em seus
detalhes, como a descrição da natureza, das pessoas do meio rural e seus
costumes rudes, sua linguagem peculiar – que por vezes, beira a dialetos nesse ‘brazilsão'
interminável e desconhecido –, sua interação quase mágica com crenças oriundas
do imaginário da natureza. É interessante também o fato de que todos os
personagens ativos são mulheres: da viajante Diana às ‘bruxas’ do
mato. E o tal do Aruê, é um mal que não se anuncia, mas se pressente, em meio a
uma atmosfera sobrenatural que se acentua paulatinamente. E para fechar, temos
o tal do ‘poço verde, como um lugar mítico, onde o mal pode ser derrotado.
Publicado
originalmente em 1994 na coletânea O
Livro dos Lobos – conforme é informado na introdução da história –,
poderia ter disputado fortemente o então Prêmio Nova. Dado o desconhecimento
do fandom, a história só agora
nos chega e se coloca como uma das melhores histórias curtas do gênero
fantástico publicadas no Brasil em 2003.
Depois de uma
travessia intensa e surpreendente com a noveleta de Figueiredo, a próxima
história – como já havia ocorrido com o conto que sucedeu a obra-prima de André
Carneiro –, de saída sai prejudicada. Mas desconfio que neste caso nada poderia
ajudar a melhorar a condição de “Íblis”, de Heloísa Seixas. Contando
basicamente a história de uma pesquisadora vítima de uma maldição, o texto peca
por ser muito empolado. Seixas sabe escrever, mas transmite um pedantismo e uma
futilidade à flor da pele, de tal forma que passei a torcer pelo destino
funesto da personagem. A história mais fraca de todo o livro.
Justamente
(quase) o oposto do conto de Lygia Fagundes Telles, “As Formigas”. Um conto
muito bem construído em sua trama e desenvolvimento, bem como na ambiguidade
entre o real e o irreal que transmite, gerando uma situação de indeterminação,
tanto no leitor, como nos próprios personagens. O mistério propriamente dito
está por se insinuar – e recuar –, para depois se insinuar de novo, de forma
mais sutil e efetiva, especialmente no trecho final da história. Competente.
Já a palavra
para definir de saída o conto seguinte é sofisticação. Num texto muito bem
trabalhado, tanto na forma, como nas imagens que transmite o “Luvibórix”, de
Carlos Emílio Corrêa Lima, tem uma narrativa que provoca estranhamento não
apenas pelo tema em si, mas pela prosa intrincada e caprichada que estrutura a
história. Mesmo assim, do ponto de vista de uma narrativa mais fluente e que
pede certa linearidade causal, o texto não consegue se completar, ficando a
sensação conclusiva de uma prosa sofisticada sim, mas sem um objetivo temático
claro.
Humberto de
Campos é outro autor recuperado pelo organizador da antologia, e que era, em
seu tempo, possivelmente o mais popular e produtivo escritor brasileiro. Em “Os
Olhos que Comiam Carne”, estamos diante de um tema muito bem explorado por um
cineasta igualmente produtivo, o americano Roger Corman que produziu e dirigiu
em 1963, o clássico B, O Homem dos
Olhos de Raio X, numa interpretação classe A de Ray Milland. Se você já viu
este filme, poderá esperar do conto de Campos uma temática e – principalmente
–, um desfecho parecido. Mesmo sendo um motivo a menos para se surpreender, o
texto vale uma lida pela maneira própria e singular que o autor brasileiro
concebe uma interpretação para a história.
E fecha a
antologia um clássico do horror brasileiro, “Demônios”, de Aluísio Azevedo. De
um escritor que é considerado um dos principais expoentes do Naturalismo li,
nos tempos do então Segundo Grau – atualmente Ensino Médio –, dois de seus
principais livros dentro desta vertente, O Mulato (1881) e O
Cortiço (1890). E depois de tantos anos, me recordo do quanto fiquei
impressionado especialmente d’O Cortiço, pela verossimilhança dos
personagens e pelo esforço bem-sucedido de ambientação social realizada pelo
autor.
Já neste
conto, temos a inversão desta lógica naturalista. Os caminhos aqui se esvaem de
explicações cartesianas, vislumbrando um ambiente sombrio, nada aprazível. Numa
narrativa carregada fortemente de dramaticidade, temos a construção de um
complexo e profundo pesadelo, com a inevitável – porém descartável –,
‘pegadinha’ no fim. De novo, aqui – e bem antes do ponto de vista histórico,
diga-se –, temos mais uma variação do ‘mundo da escuridão’, onde se dá total e
inexplicável ausência de luz. E há momentos marcantes, como a sequência das
transformações físicas, impressionando e causando um eficaz sense of horror.
Páginas de Sombra: Contos Fantásticos
Brasileiros é uma antologia da melhor qualidade em seu conjunto,
fazendo frente a uma dos mais difíceis desafios a toda antologia: equilibrar a
qualidade média das histórias. Goste-se mais ou menos de um texto, mais ou
menos de um autor, a concepção da obra atinge seus objetivos de passar uma
idéia geral da história e das principais características do chamado
‘fantástico’ feito no Brasil.
Contudo, dois
tipos de ausência chamam a atenção. Embora a seleção dos autores tenha sido, em
geral, bastante criteriosa, causa espanto que dois autores maiúsculos da
literatura brasileira não apareçam: José J. Veiga e Guimarães Rosa. Quero crer
que Braulio Tavares os selecionou, o problema deve ter sido com os direitos
autorais. Veiga é um prosador e contista do mais alto nível – e diretamente
voltado ao fantástico – e Rosa, além de ser um dos grandes nomes da literatura
brasileira de qualquer época, também se exprimiu em histórias fantásticas a
certa altura de sua carreira. Aliás, o próprio Braulio tem se encarregado de
divulgar esta temática do autor, publicando ensaios em jornais e fanzines sobre o assunto.
A outra
ausência é a de nenhum escritor do chamado fandom literário de ficção científica destes últimos 20 anos.
Braulio Tavares até justificou, dizendo que inicialmente havia pensado em
incluir um ou outro autor. Poderia, até para evitar o equívoco de incluir um
conto ruim como “Íblis”, por exemplo. Duas boas histórias fantásticas que não
fariam feio neste livro: “Aprendizado” (1993), de Carlos Orsi Martinho e “A
Nuvem” (1993), de Ricardo Teixeira. Isso para não recomendar histórias do
próprio Braulio, que ele já publicou ou poderia escrever. Fica para outra
oportunidade uma nova versão desta antologia, que inclua os autores brasileiros
contemporâneos.
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