Sombras de Reis
Barbudos, José J. Veiga. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 136 páginas. Texto da orelha de Mário da Silva Brito. Lançado
originalmente em 1972.
Numa
pequena cidade do interior do Brasil, como milhares delas, aliás, as pessoas
vivem suas vidas dentro de uma estável e confortadora rotina. Até que o parente
de uma das famílias chega com pompa e cerimônia com suas belas roupas e um
carrão anunciando as modernidades da cidade grande. Cercado de mimos e
interesses traz a novidade: a chegada da Companhia. Mas o que é a Companhia?
Está
montado o cenário deste romance perturbador que à maneira peculiar do autor,
através do talento recorrente pela fluência narrativa e à sensível construção
de tipos humanos, nos insere no terror da opressão e do incompreensível.
Sim,
Sombra de Reis Barbudos foi escrito no auge da ditadura militar
brasileira e não é possível que nos furtemos a interpretá-lo como uma
extrapolação crítica deste período histórico sombrio. Assim como em outras de
suas obras, mais notavelmente em A Hora dos Ruminantes (1966), o
realismo extremo da opressão política-econômica escapa, por assim dizer, para o
terreno do bizarro e do absurdo.
A
Companhia muda de forma radical a vida das pessoas da cidadezinha. Quase todos
trabalham para ela, direta ou indiretamente. Elas têm de seguir suas regras e
regulamentos que, pela presença onipresente de fiscais, passa a ter força de
lei. Começam as proibições pelo consumo, depois pelas opiniões, e por fim nos
costumes e no comportamento individual. Ou seja: estabelece-se um contexto de
controle quase absoluto na vida de cada pessoa.
Para
dificultar a comunicação e a mobilidade, a Companhia cerca as ruas e casas de
muros, para tempos depois cercar toda a cidade. A cada construção opressiva há
uma insólita “resposta” dos céus. Aos muros surgem urubus aos milhares; às
cercas surgem pessoas voando. Em princípio sem saber de onde, e depois com
gente da própria cidade ganhando os céus. Sem dúvida temos no primeiro caso,
uma anunciação de tempos tenebrosos, e no segundo caso um desejo desesperado
por liberdade.
A
narrativa se concentra na família de tio Baltazar, o figurão que anuncia a
chegada da Companhia. Seu Horário, cunhado do recém-chegado adere à Companhia,
lá prospera, mas depois se demite e é “sumido” em desgraça. Mesmo Baltazar
depois de ser um dos líderes da Companhia, é levado embora da cidade e adoece
gravemente. Ao que parece o cerco à família de Lucas, o menino que conta a
história, é um micro-cosmo do que acontece com a cidade inteira sob o julgo das
regras e normas da Companhia.
Numa
tentativa de respondermos o que é esta instituição que controla de forma
opressiva a vida das pessoas podemos nos indagar: onde está o Estado nesta
cidade que permite que uma empresa (ou melhor, uma organização), assuma o
controle de tudo, até de funções públicas?
Neste caso como ficariam as leis e as ligações externas da cidade com o
restante do país? Embora possa parecer algo
incoerente, até mesmo neste plano é possível compreendermos a Companhia como
uma destas mega-empresas que assumem as atividades econômicas de tal forma que
toda a sociedade gira em torno dela, capturando, inclusive, o poder público.
Historicamente existiram muitos destes enclaves estrangeiros no Brasil e,
principalmente, na América Latina.
Por
outro lado é possível também uma leitura mais política, do ponto de vista
metafórico: a Companhia nada mais é que a instauração de uma nova ordem: a
ditadura, seja ela militar ou civil. Neste plano a crítica de Veiga seria ao
regime autoritário, então em vigência no Brasil.
Com
sua habitual sensibilidade Veiga trabalha a opressão nos pequenos espaços, nas
individualidades e não no plano macro. Por isso a interpretação das causas e
efeitos da nova ordem é esmiuçada no interior da família de Lucas. Para
criticar uma nova ordem sócio-política de caráter autocrático, Veiga mostra o
terror causado no plano individual e subjetivo básico das pessoas: a
incompreensão, o medo, a desconfiança e a solidão. Por outro lado resvala ao
fantástico ao mostrar que o terror do realismo e do controle extremo meio que
vaza para o terreno do inexplicável. Talvez porque uma situação de opressão
total seja em si mesma uma aberração difícil de suportar.
Seriam
os tais reis barbudos vislumbrados durante e no fim do livro os donos da
Companhia? Nada se explica porque não há
explicações possíveis quando as pessoas são arbitrariamente oprimidas e
caladas. Como afirma o cientista político Guillermo O´Donnell, ao comentar
sobre o clima de terror que viveu durante a ditadura militar argentina nos anos
1970, talvez tão apavorante quanto a violência física é a capacidade das
ditaduras de estabelecer o medo absoluto que nos leva ao silêncio. De boca
fechada correríamos menos riscos, pois não exteriorizaríamos verbalmente às
pessoas ou ao mundo o que pensamos. Mas de outra parte esta interiorização
forçada de sentimentos nos humilharia porque não expressaríamos muito do que
nos torna humanos. Esta dimensão está presente em Sombra de Reis Barbudos,
embora a válvula de escape, se assim posso colocar, se insere na dimensão do
fantástico: dos urubus, da chuva incessante, do mágico que todos viram mas
ninguém lembra e, acima de tudo, pelas pessoas que voam. Uma eloquente imagem
do desejo visceral de liberdade.
Este
romance dialoga e critica os tempos sinistros que vigoraram na história
brasileira, mas não está datado porque se presta a múltiplas leituras
interpretativas. Na mais óbvia para nos alertar sobre os horrores sempre
possíveis da volta de uma opressão política; em outra, digamos mais
contemporânea, sobre as eventuais armadilhas de uma sociedade que, embora
pluralmente aberta, está excessivamente voltada a uma esfera individual de
interesses podendo, com isso, gerar
posturas intolerantes e desejos de ordem, voltando-se contra ela mesma. Por
tudo isso, além do encanto inegável de sua prosa e suas imagens surpreendentes,
é que Veiga, o grande fantasista brasileiro, possui um alcance universal.
—
Marcello Simão Branco
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