Anjo de Dor, Roberto de
Sousa Causo. 207 páginas. Capa de Vagner Vargas. Introdução de Rubens Teixeira
Scavone e texto da orelha de Braulio Tavares. São Paulo: Devir Livraria, 2009.
O romance Anjo
de dor é, provavelmente, o trabalho mais elaborado, persistente e estimado
da carreira de Roberto de Sousa Causo. Como ele afirma nos agradecimentos
começou a escrevê-lo em 1990 e só dezenove anos depois foi finalmente
publicado. É certo que em quase duas décadas muito da concepção da história foi
modificada, mas acredito que a demora só a fez melhorar, tornando-se mais
aperfeiçoada e madura, tanto do ponto de vista literário, como do
desenvolvimento do enredo e caracterização dos personagens.
Não me recordo
em que momento desta longa trajetória eu tive contato com a obra, mas lembro-me
de ler uma de suas várias versões e ter feito uma ou outra observação. Mesmo
depois de anos do primeiro contato, porém, a leitura do formato final mais me
recordou alguns aspectos gerais da trama, do que me surpreendeu com algum
desdobramento novo. E isso só reforça, do meu ponto de vista, o quanto Anjo
de dor deixou marcas na primeira vez que o li.
É um romance
forte, de impacto. Costuma-se dizer, não sem certa razão, que um autor escreve
melhor sobre aquilo que conhece. Para um autor de ficção especulativa, esta
afirmação soa, aparentemente, como uma crítica mas encaixa-se bem para o tipo
de história que Causo criou para o seu romance de suspense e horror.
E a razão é
que para quem o conhece e leu boa parte de sua obra, transparece alguns
aspectos autobiográficos além de peculiaridades do protagonista que se
aproximam do escritor – ex-servidor militar, vegetariano, adepto do
espiritismo. Mas longe de sugerir alguma verdade nas entrelinhas, está claro
que é uma criação ficcional, baseada, isto sim, em verossimilhança. Assim, não
surpreende que o panorama do enredo seja realista e o fantástico se insinue
pelas margens até assumir relevância nos momentos decisivos da história. Por sinal,
esta característica é das mais recorrentes na ficção do autor, e se por um lado
reforça uma identidade temática, de outro soa como um pouco repetitiva a esta
altura de sua carreira. Neste particular a demora na publicação de uma obra
burilada há tanto tempo talvez tenha diluído a novidade deste tipo de
abordagem.
O romance
conta a chegada da misteriosa cantora Sheila Fernandes à pequena cidade de
Sumaré, interior de São Paulo. Contratada para apresentações numa casa noturna
da cidade, ela é recepcionada pelo barman, Ricardo Conte. Apesar da
antipatia mútua do contato inicial, parece haver certa atração não apenas
sexual entre os dois, além de mais familiaridades do que se supõe.
Sheila foge de
um passado perigoso e incriminatório e Ricardo também procura esquecer alguns
incidentes de sua passagem pela Força Aérea. Apesar de jovens, ambos estão à
procura de um caminho sempre recomeçando, ou em um novo trabalho, ou em um novo
lugar. Aos poucos se tornam obcecados um pelo outro, embora seja difícil a
ambos admitir e demonstrar isso, com atitudes que procuram mais esconder do que
revelar. Tomado por esse impulso, Ricardo volta a pintar e desenha um retrato
de Sheila. Não como ela era, mas como ele queria que ela fosse. Insônia e
estranhas visões supostamente emanadas pela figura do retrato começam a
perturbar a vida de Ricardo. O que seria a manifestação da Sheila do quadro?
Pesadelo, alucinação ou um fantasma sobrenatural?
Sheila se
torna um sucesso na região, mas quer manter-se avessa a qualquer publicidade. Tem
motivos para isso, mas depois que um anúncio é publicado em São Paulo, o algoz
do seu passado aparece para acertar as contas. É seu ex-patrão, na verdade um
cafetão que quer vingança pelo fato dela tê-lo prejudicado no passado. Junto
com alguns capangas o tal Ferreirinha desorganiza a vida da pacata Sumaré e,
principalmente, de Sheila, Ricardo e da família do dono da boate.
O romance fica
especialmente interessante da segunda parte em diante, com o aumento da tensão
e do suspense, além da presença das manifestações sobrenaturais percebidas por
Ricardo, decisivas na conclusão da história.
Causo consegue
com Anjo de Dor reunir várias qualidades de um bom contador de
histórias. Primeiro, equilibra a moldura realista e autobiográfica com os
elementos fantásticos, sobrenaturais, tornando-os mais do que meros acessórios:
eles são parte da construção e transformação de Ricardo e do próprio
entendimento de quem seria Sheila Fernandes. Em segundo lugar, e talvez ainda
mais importante, é que a boa caracterização dos personagens se harmoniza com o
ritmo crescente dos acontecimentos, tornando a leitura uma experiência
estimulante, difícil de ser deixada de lado – e mesmo na ausência da leitura,
que os fatos fiquem remoendo na mente do leitor, como se o drama dos personagens
tivesse uma dimensão real, palpável.
Embora tenha
sido escrito antes, este é o segundo romance publicado de Causo, depois da boa
fantasia contemporânea A Corrida do Rinoceronte (2006), mas é o trabalho
mais ambicioso do autor, em que se percebe o maior investimento em termos de
aprimoração da técnica literária e amadurecimento da trama e dos personagens.
Causo afirma que tinha poucas esperanças de um dia publicar Anjo de Dor
e talvez esse pessimismo, ou melhor seria dizer, desprendimento, tenha
contribuído para tornar melhorar o romance, já que transparece o sentimento, de
algo que precisava ser exposto para o mundo exterior, como uma parte dele
mesmo.
Anjo de Dor
é, bom deixar claro, uma história que incomoda, pois não apresenta soluções
fáceis e reconfortantes, ainda mais depois de páginas repletas de suspense e
violência. Pois, para uma obra que pretende deixar de ser apenas mais uma entre
tantas, é uma aposta bem cumprida por Causo. Especialmente pelo fascínio da
dúvida suscitada do anjo de dor de Ricardo Conte também ilustrar o quanto uma
obra que é aparentemente entretenimento de qualidade – o que já não seria pouco
– pode iluminar (ou tornar ainda mais complexo) aspectos da personalidade
humana, para além das interpretações mais superficiais a que o gênero horror
está acostumado a ser relacionado. E estes motivos tornam Anjo de Dor
uma obra importante, tanto para o autor, como para os caminhos que abrem para
uma literatura de gênero de qualidade e, em especial, de horror escrita por
brasileiros.
– Marcello Simão Branco
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