terça-feira, 24 de março de 2015

Anjo de Dor, Roberto de Sousa Causo

Anjo de Dor, Roberto de Sousa Causo. 207 páginas. Capa de Vagner Vargas. Introdução de Rubens Teixeira Scavone e texto da orelha de Braulio Tavares. São Paulo: Devir Livraria, 2009.

O romance Anjo de dor é, provavelmente, o trabalho mais elaborado, persistente e estimado da carreira de Roberto de Sousa Causo. Como ele afirma nos agradecimentos começou a escrevê-lo em 1990 e só dezenove anos depois foi finalmente publicado. É certo que em quase duas décadas muito da concepção da história foi modificada, mas acredito que a demora só a fez melhorar, tornando-se mais aperfeiçoada e madura, tanto do ponto de vista literário, como do desenvolvimento do enredo e caracterização dos personagens.
Não me recordo em que momento desta longa trajetória eu tive contato com a obra, mas lembro-me de ler uma de suas várias versões e ter feito uma ou outra observação. Mesmo depois de anos do primeiro contato, porém, a leitura do formato final mais me recordou alguns aspectos gerais da trama, do que me surpreendeu com algum desdobramento novo. E isso só reforça, do meu ponto de vista, o quanto Anjo de dor deixou marcas na primeira vez que o li.
É um romance forte, de impacto. Costuma-se dizer, não sem certa razão, que um autor escreve melhor sobre aquilo que conhece. Para um autor de ficção especulativa, esta afirmação soa, aparentemente, como uma crítica mas encaixa-se bem para o tipo de história que Causo criou para o seu romance de suspense e horror.
E a razão é que para quem o conhece e leu boa parte de sua obra, transparece alguns aspectos autobiográficos além de peculiaridades do protagonista que se aproximam do escritor – ex-servidor militar, vegetariano, adepto do espiritismo. Mas longe de sugerir alguma verdade nas entrelinhas, está claro que é uma criação ficcional, baseada, isto sim, em verossimilhança. Assim, não surpreende que o panorama do enredo seja realista e o fantástico se insinue pelas margens até assumir relevância nos momentos decisivos da história. Por sinal, esta característica é das mais recorrentes na ficção do autor, e se por um lado reforça uma identidade temática, de outro soa como um pouco repetitiva a esta altura de sua carreira. Neste particular a demora na publicação de uma obra burilada há tanto tempo talvez tenha diluído a novidade deste tipo de abordagem.
O romance conta a chegada da misteriosa cantora Sheila Fernandes à pequena cidade de Sumaré, interior de São Paulo. Contratada para apresentações numa casa noturna da cidade, ela é recepcionada pelo barman, Ricardo Conte. Apesar da antipatia mútua do contato inicial, parece haver certa atração não apenas sexual entre os dois, além de mais familiaridades do que se supõe.
Sheila foge de um passado perigoso e incriminatório e Ricardo também procura esquecer alguns incidentes de sua passagem pela Força Aérea. Apesar de jovens, ambos estão à procura de um caminho sempre recomeçando, ou em um novo trabalho, ou em um novo lugar. Aos poucos se tornam obcecados um pelo outro, embora seja difícil a ambos admitir e demonstrar isso, com atitudes que procuram mais esconder do que revelar. Tomado por esse impulso, Ricardo volta a pintar e desenha um retrato de Sheila. Não como ela era, mas como ele queria que ela fosse. Insônia e estranhas visões supostamente emanadas pela figura do retrato começam a perturbar a vida de Ricardo. O que seria a manifestação da Sheila do quadro? Pesadelo, alucinação ou um fantasma sobrenatural?
Sheila se torna um sucesso na região, mas quer manter-se avessa a qualquer publicidade. Tem motivos para isso, mas depois que um anúncio é publicado em São Paulo, o algoz do seu passado aparece para acertar as contas. É seu ex-patrão, na verdade um cafetão que quer vingança pelo fato dela tê-lo prejudicado no passado. Junto com alguns capangas o tal Ferreirinha desorganiza a vida da pacata Sumaré e, principalmente, de Sheila, Ricardo e da família do dono da boate.
O romance fica especialmente interessante da segunda parte em diante, com o aumento da tensão e do suspense, além da presença das manifestações sobrenaturais percebidas por Ricardo, decisivas na conclusão da história.
Causo consegue com Anjo de Dor reunir várias qualidades de um bom contador de histórias. Primeiro, equilibra a moldura realista e autobiográfica com os elementos fantásticos, sobrenaturais, tornando-os mais do que meros acessórios: eles são parte da construção e transformação de Ricardo e do próprio entendimento de quem seria Sheila Fernandes. Em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, é que a boa caracterização dos personagens se harmoniza com o ritmo crescente dos acontecimentos, tornando a leitura uma experiência estimulante, difícil de ser deixada de lado – e mesmo na ausência da leitura, que os fatos fiquem remoendo na mente do leitor, como se o drama dos personagens tivesse uma dimensão real, palpável.
Embora tenha sido escrito antes, este é o segundo romance publicado de Causo, depois da boa fantasia contemporânea A Corrida do Rinoceronte (2006), mas é o trabalho mais ambicioso do autor, em que se percebe o maior investimento em termos de aprimoração da técnica literária e amadurecimento da trama e dos personagens. Causo afirma que tinha poucas esperanças de um dia publicar Anjo de Dor e talvez esse pessimismo, ou melhor seria dizer, desprendimento, tenha contribuído para tornar melhorar o romance, já que transparece o sentimento, de algo que precisava ser exposto para o mundo exterior, como uma parte dele mesmo.
Anjo de Dor é, bom deixar claro, uma história que incomoda, pois não apresenta soluções fáceis e reconfortantes, ainda mais depois de páginas repletas de suspense e violência. Pois, para uma obra que pretende deixar de ser apenas mais uma entre tantas, é uma aposta bem cumprida por Causo. Especialmente pelo fascínio da dúvida suscitada do anjo de dor de Ricardo Conte também ilustrar o quanto uma obra que é aparentemente entretenimento de qualidade – o que já não seria pouco – pode iluminar (ou tornar ainda mais complexo) aspectos da personalidade humana, para além das interpretações mais superficiais a que o gênero horror está acostumado a ser relacionado. E estes motivos tornam Anjo de Dor uma obra importante, tanto para o autor, como para os caminhos que abrem para uma literatura de gênero de qualidade e, em especial, de horror escrita por brasileiros.

– Marcello Simão Branco
  

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