Stephen King: A Biografia, Coração Assombrado (Haunted Heart: The Life and Times
of Stephen King), Lisa Rogak, 2013. Editora Darkside, 320 páginas.
Já no início do livro o leitor é surpreendido com uma frase que, como se verá, justificará o subtítulo do livro. “Eu tenho medo de tudo”, diz Stephen King. Na verdade, frase se presta a uma dupla função. Primeiro, chamar a atenção e provocar certa surpresa no leitor. Segundo, ajudar a compreender o que o medo exerce na ficção de um dos autores mais importantes da literatura popular contemporânea.
Não deve causar estranheza o fato
de King afirmar, em várias passagens do livro, de que ele é uma pessoa
assombrada, tanto pelos medos mais óbvios, como para aqueles possíveis de
ocorrer em situações do cotidiano, dos quais prestamos pouca atenção. E nisso,
King é um mestre com um conjunto enorme e variado de histórias de horror que
partem desta premissa.
Um escritor de horror que afirma
ter receio de muitas coisas, como no caso de King, em realidade busca
inspiração no medo, no terror, no que o mal pode causar na vida das pessoas.
Por outro lado, serve também como fonte de compreensão de como King trabalhou
seus medos, tristezas e frustrações, a começar pelo fato mais perturbador de
sua vida: a ausência do pai, que abandonou a família, deixando-os pobres e
desamparados.
Normalmente não tenho interesse
em biografias ou autobiografias. No caso de um escritor, me interessa muito
mais a sua arte, suas histórias, como e porque ele teve uma ou outra ideia.
Contudo, Stephen King é uma exceção. Tanto porque sou seu fã declarado, como
porque através desta biografia é possível conhecer mais detalhes sobre várias
de suas histórias e bastidores sobre sua carreira. Mas também o ser humano é
interessante, especialmente por sua história de vida precocemente sofrida e por
suas posições literárias absolutamente democráticas sobre a relação entre o mainstream e os gêneros populares.
Para o leitor fiel dos livros de
King o fato é que esta biografia não é o primeiro livro sobre o autor publicado
no Brasil. Seu primeiro livro de não-ficção, Dança Macabra (1989) – um clássico ensaio sobre o gênero horror na
cultura popular – ja falava um pouco sobre sua infância e adolescência; a
seguir foi publicado Dissecando Stephen
King: Conversando Sobre Terror com Stephen King (1990), de Tim Underwood e
Chuck Miller, que traz 25 pequenas entrevistas do autor a jornais e revistas,
compiladas pelos autores, mostrando aspectos detalhados da criação de suas
histórias no início de sua carreira. Outros livros de entrevistas publicados no
país foram Mestres do Terror: Stephen
King e Clive Barker (1998), com edição de Anthony Timpone para a revista Fangoria. Finalmente, saiu O Essencial de Stephen King (2003), de
Stephen J. Spignesi, com comentários, listas e curiosidades sobre seus
romances, contos e filmes baseados em sua obra.
Coração Assombrado foi escrito pela experiente biógrafa Lisa Rogak,
e foi indicado ao Prêmio Edgar Allan Poe de melhor biografia em 2008. É também
um dos primeiros lançamentos da editora Darkside. A edição em capa dura é
caprichada e inclui vários anexos, como uma cronologia da vida e obra de King,
uma bibliografia selecionada, indicação de sites especializados no autor e um
índice remissivo. O que o livro traz de novo é a ênfase na vida pessoal do
autor, como nenhum dos livros citados chegou perto, além de trazer muitas
informações e anedotas sobre suas criações. Nesse sentido, embora o livro não
seja uma biografia autorizada e nem ter entrevistado King e sua esposa, está
longe de ser um amontoado de fofocas, mas sim baseado numa extensa pesquisa em
tudo o que já se publicou sobre o autor, além de colher saborosos depoimentos
de pessoas próximas ou que em algum momento compartilharam de sua vida.
O livro está estruturado em
capítulos nomeados com títulos de suas histórias que ilustram passagens de sua
vida. Assim temos: “O Aprendiz”, “O Pistoleiro”, “Angústia”, “Quatro Estações”
etc. Mas mesmo que obedecendo a uma lógica de sequência linear que vai de sua
infância até o ano de 2013, seria possível trabalhar também a partir de uma
perspectiva mais temática como, por exemplo, sua infância e adolescência; o
início de sua carreira; seus romances principais; suas histórias adaptadas para
o cinema e por aí vai.
Rogak enfatiza que o abandono do
pai e a luta pela sobrevivência em meio à pobreza são dois aspectos centrais na
vida e obra de King. Na vida seria óbvio afirmar, mas na maneira como refletiu
em sua literatura nem tanto. Em todo caso, muitas das histórias dele falam de
dor, do sentimento de perda, crises familiares, crianças em situação de perigo,
a busca pelo perdão e redenção. Tudo isso não soa gratuito ao constatarmos como
King, seu irmão e sua mãe sofreram após a ausência do pai e como foi difícil
para que ele conseguisse publicar seu primeiro livro, já casado e com uma filha
pequena e tendo de viver de bicos e residir num trailler porque não tinha dinheiro para alugar um quarto.
Neste contexto difícil Stephen
King vislumbrou uma saída a partir do que ele gostava de fazer: escrever e
curtir histórias de horror. Claro que ele não se utilizou conscientemente deste
talento para se tornar anos depois o escritor multimilionário e mundialmente
conhecido, mas um dos aspectos mais interessantes do livro é mostrar como King
perseverou para conseguir publicar e, por meio disso, vislumbrar uma vida um
pouco melhor do que ser professor de inglês para o ensino médio, como ele temia
que fosse seu destino. Mas ele não podia imaginar o sucesso que faria. A partir
da publicação de Carrie, a Estranha,
em 1974, ele não parou mais de publicar e cada vez mais, alimentando tanto o
apetite dos leitores e editoras, como dele mesmo, um escritor compulsivo, que
afirma: “Escrever é um vício para mim. Mesmo quando o texto não vai bem, se eu
não o fizer, fico irritado.” (página 13).
Além disso, o livro mostra, em
pinceladas, nada muito extenso, peculiaridades do seu processo de criação. King
é uma usina de ideias, elas vêm quase todos os dias de situações cotidianas e
aparentemente desconexas, isto é, da junção de dois temas aparentemente
distantes para criar uma história. Não é um escritor metódico que pensa a
história toda antes de escrever, deixa-se levar pelo enredo e personagens, além
de não gostar de pesquisar, deixando esta tarefa, quando é o caso, para depois
de escrever uma primeira versão de uma história.
Tão dramático quanto a pobreza de
sua vida infantil e início da adulta é o processo de dependência por álcool e
drogas que ele viveu durantes os anos 1980, o que quase acabou com o seu
casamento com a também escritora Tabitha King. Grandes doses todos os dias,
acrescentados por fileiras de cocaína madrugadas à dentro, como combustível
para que ele criasse novas histórias e escrevesse cada vez mais. Mas a partir
do momento em que venceu a batalha contra os vícios, ao que parece, sua ficção
derivou para outras searas, não mais exclusivas do horror, e ele tem escrito um
pouco menos e melhor, do ponto de vista literário, ainda que tenha voltado a
considerar seriamente a possibilidade de parar de publicar após um terceiro
evento terrível em sua vida, quando foi atropelado por uma van em junho de
1999.
Seria interessante que Rogak
explorasse um pouco mais como se deu esta transição e de como fez com que ele
perdesse muitos leitores, aqueles mais fãs de suas poderosas histórias de
horror. A autora fala sobre isso no livro, King afirma que aceita este fato com
certa resignação, mas não se avança muito mais, a não ser com fatos e obras que
ilustram esta mudança de perfil embora, no fundo, possamos dizer que King nunca
deixou de ser um escritor de horror, apenas acrescentou ao seu repertório
temático outros temas populares e refinou, amadureceu um pouco sua prosa, sem
se tornar com isso um estilista. O mais importante é que Stephen King nunca
deixou de ser um pageturner, um genuíno
contador de histórias. Isto está presente tanto em Christine, o Carro Assassino (1983), quanto em Love: A História de Lisey
(2008).
Nesse sentido é possível apreciar
qualquer uma de suas histórias, seja a de um horror mais tradicional, como para
um mais relativizado que, ao contrário do que esta divisão faz parecer, não é
tão rigorosa assim. No primeiro grupo, temos clássicos como O Iluminado (1977), A Dança da Morte (1978), O
Cemitério (1983), A Coisa (1986);
no segundo, livros poderosos como, por exemplo, Zona Morta (1979), Angústia
(1987), Insônia (1994) e Desespero (1996).
O fato de não ser reconhecido
como um grande escritor pelos críticos literários mais tradicionais não o
aborrece tanto quanto o preconceito associado ao tipo de ficção popular que ele
escreve, além da fama e dinheiro que ele conseguiu. Pode ser um fato, para
qualquer forma de arte, de que quanto mais simplificada suas mensagens e
estrutura, mais impacto tende a provocar numa maior parcela de pessoas de pouca
cultura. Mas é um fato até certo ponto, pois mesmo numa literatura, no caso,
mais popular é possível produzir obras de relevo artístico e crítica social,
para não falar na construção de personagens críveis e psicologicamente
complexos. E se King ganha muito dinheiro com isso, qual o problema? O
importante é que sua obra de entretenimento tem conteúdo. Como já afirmaram uma
e outra vez, King é um dos mais agudos intérpretes dos problemas, virtudes e
valores da sociedade norte-americana do final do século XX e início de XXI. Sem
favor algum.
Coração Assombrado é também um livro engraçado, pois em várias
páginas são ilustradas passagens curiosa de sua vida, como quando saiu
fantasiado de monstro com seu filho de uma filmagem e foi parar na delegacia,
ou o comportamento muitas vezes bizarros de fãs, que circulam próximos à sua
casa ou levam livros embalados em papel celofane com a recomendação de que King
deve ter cuidado ao manuseá-lo porque nunca foi aberto. Curioso para mim foi
saber que King é um cara muito alto, com seus 1,90m e de que sempre teve certa
dificuldade em lidar com sua altura.
Stephen King é uma figura pública
atuante e generosa. Envolveu-se com o movimento estudantil desde a adolescência
e promoveu jantares e eventos de apoios a políticos como, por exemplo, Gary
Hart e Barack Obama. Contudo, chama a atenção a sua sensibilidade e de sua
esposa com relação ao uso do dinheiro para beneficiar causas ou pessoas. King
escrevia contos para revistas obscuras para completar o magro orçamento, de
meados dos anos 1960 até meados dos anos 1970, mas nunca deixou de colaborar
com elas. Por gratidão sim, mas também por acreditar que é importante que
existam revistas que mantenham a chama da publicação de contos, base da cultura
popular letrada norte-americana forjada no século XX. Estudantes sem recursos
para cursar uma universidade ou artistas em dificuldades financeiras são
financiados pelo casal através de fundações especialmente criadas para isso. Em
certo sentido, Stephen King se insere na tradição dos ricos socialmente
conscientes da importância social que sua posição econômica privilegiada pode
resultar numa sociedade capitalista extremamente individualista e competitiva,
como a norte-americana.
Em seu conjunto, Coração Assombrado um livro rico para
quem já é fã e leitor de Stephen King, ou para quem sabe pouco de sua obra,
principalmente das adaptações de suas histórias para o cinema. Contudo, a
contribuição mais interessante é aquela que ressalta as particularidades do ser
humano – como requer uma boa biografia, enfim – ao mostrá-lo como um ser frágil
e muito resistente em enfrentar o abandono do pai, a pobreza , as drogas e o
atropelamento. Mas, sobretudo, pela sua posição de liderança em prol de uma
literatura popular de qualidade, e na importância social de um artista, não só
através de declarações ou apoios, mas também por meio de atitudes concretas de
melhoria de pessoas e causas nas quais acredita.
–– Marcello Simão Branco
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