quarta-feira, 4 de março de 2015

Stephen King: Coração Assombrado

Stephen King: A Biografia, Coração Assombrado (Haunted Heart: The Life and Times of Stephen King), Lisa Rogak, 2013. Editora Darkside, 320 páginas.


Já no início do livro o leitor é surpreendido com uma frase que, como se verá, justificará o subtítulo do livro. “Eu tenho medo de tudo”, diz Stephen King. Na verdade, frase se presta a uma dupla função. Primeiro, chamar a atenção e provocar certa surpresa no leitor. Segundo, ajudar a compreender o que o medo exerce na ficção de um dos autores mais importantes da literatura popular contemporânea.
Não deve causar estranheza o fato de King afirmar, em várias passagens do livro, de que ele é uma pessoa assombrada, tanto pelos medos mais óbvios, como para aqueles possíveis de ocorrer em situações do cotidiano, dos quais prestamos pouca atenção. E nisso, King é um mestre com um conjunto enorme e variado de histórias de horror que partem desta premissa.
Um escritor de horror que afirma ter receio de muitas coisas, como no caso de King, em realidade busca inspiração no medo, no terror, no que o mal pode causar na vida das pessoas. Por outro lado, serve também como fonte de compreensão de como King trabalhou seus medos, tristezas e frustrações, a começar pelo fato mais perturbador de sua vida: a ausência do pai, que abandonou a família, deixando-os pobres e desamparados.
Normalmente não tenho interesse em biografias ou autobiografias. No caso de um escritor, me interessa muito mais a sua arte, suas histórias, como e porque ele teve uma ou outra ideia. Contudo, Stephen King é uma exceção. Tanto porque sou seu fã declarado, como porque através desta biografia é possível conhecer mais detalhes sobre várias de suas histórias e bastidores sobre sua carreira. Mas também o ser humano é interessante, especialmente por sua história de vida precocemente sofrida e por suas posições literárias absolutamente democráticas sobre a relação entre o mainstream e os gêneros populares.
Para o leitor fiel dos livros de King o fato é que esta biografia não é o primeiro livro sobre o autor publicado no Brasil. Seu primeiro livro de não-ficção, Dança Macabra (1989) – um clássico ensaio sobre o gênero horror na cultura popular – ja falava um pouco sobre sua infância e adolescência; a seguir foi publicado Dissecando Stephen King: Conversando Sobre Terror com Stephen King (1990), de Tim Underwood e Chuck Miller, que traz 25 pequenas entrevistas do autor a jornais e revistas, compiladas pelos autores, mostrando aspectos detalhados da criação de suas histórias no início de sua carreira. Outros livros de entrevistas publicados no país foram Mestres do Terror: Stephen King e Clive Barker (1998), com edição de Anthony Timpone para a revista Fangoria. Finalmente, saiu O Essencial de Stephen King (2003), de Stephen J. Spignesi, com comentários, listas e curiosidades sobre seus romances, contos e filmes baseados em sua obra.
Coração Assombrado foi escrito pela experiente biógrafa Lisa Rogak, e foi indicado ao Prêmio Edgar Allan Poe de melhor biografia em 2008. É também um dos primeiros lançamentos da editora Darkside. A edição em capa dura é caprichada e inclui vários anexos, como uma cronologia da vida e obra de King, uma bibliografia selecionada, indicação de sites especializados no autor e um índice remissivo. O que o livro traz de novo é a ênfase na vida pessoal do autor, como nenhum dos livros citados chegou perto, além de trazer muitas informações e anedotas sobre suas criações. Nesse sentido, embora o livro não seja uma biografia autorizada e nem ter entrevistado King e sua esposa, está longe de ser um amontoado de fofocas, mas sim baseado numa extensa pesquisa em tudo o que já se publicou sobre o autor, além de colher saborosos depoimentos de pessoas próximas ou que em algum momento compartilharam de sua vida.
O livro está estruturado em capítulos nomeados com títulos de suas histórias que ilustram passagens de sua vida. Assim temos: “O Aprendiz”, “O Pistoleiro”, “Angústia”, “Quatro Estações” etc. Mas mesmo que obedecendo a uma lógica de sequência linear que vai de sua infância até o ano de 2013, seria possível trabalhar também a partir de uma perspectiva mais temática como, por exemplo, sua infância e adolescência; o início de sua carreira; seus romances principais; suas histórias adaptadas para o cinema e por aí vai.
Rogak enfatiza que o abandono do pai e a luta pela sobrevivência em meio à pobreza são dois aspectos centrais na vida e obra de King. Na vida seria óbvio afirmar, mas na maneira como refletiu em sua literatura nem tanto. Em todo caso, muitas das histórias dele falam de dor, do sentimento de perda, crises familiares, crianças em situação de perigo, a busca pelo perdão e redenção. Tudo isso não soa gratuito ao constatarmos como King, seu irmão e sua mãe sofreram após a ausência do pai e como foi difícil para que ele conseguisse publicar seu primeiro livro, já casado e com uma filha pequena e tendo de viver de bicos e residir num trailler porque não tinha dinheiro para alugar um quarto.
Neste contexto difícil Stephen King vislumbrou uma saída a partir do que ele gostava de fazer: escrever e curtir histórias de horror. Claro que ele não se utilizou conscientemente deste talento para se tornar anos depois o escritor multimilionário e mundialmente conhecido, mas um dos aspectos mais interessantes do livro é mostrar como King perseverou para conseguir publicar e, por meio disso, vislumbrar uma vida um pouco melhor do que ser professor de inglês para o ensino médio, como ele temia que fosse seu destino. Mas ele não podia imaginar o sucesso que faria. A partir da publicação de Carrie, a Estranha, em 1974, ele não parou mais de publicar e cada vez mais, alimentando tanto o apetite dos leitores e editoras, como dele mesmo, um escritor compulsivo, que afirma: “Escrever é um vício para mim. Mesmo quando o texto não vai bem, se eu não o fizer, fico irritado.” (página 13).
Além disso, o livro mostra, em pinceladas, nada muito extenso, peculiaridades do seu processo de criação. King é uma usina de ideias, elas vêm quase todos os dias de situações cotidianas e aparentemente desconexas, isto é, da junção de dois temas aparentemente distantes para criar uma história. Não é um escritor metódico que pensa a história toda antes de escrever, deixa-se levar pelo enredo e personagens, além de não gostar de pesquisar, deixando esta tarefa, quando é o caso, para depois de escrever uma primeira versão de uma história.
Tão dramático quanto a pobreza de sua vida infantil e início da adulta é o processo de dependência por álcool e drogas que ele viveu durantes os anos 1980, o que quase acabou com o seu casamento com a também escritora Tabitha King. Grandes doses todos os dias, acrescentados por fileiras de cocaína madrugadas à dentro, como combustível para que ele criasse novas histórias e escrevesse cada vez mais. Mas a partir do momento em que venceu a batalha contra os vícios, ao que parece, sua ficção derivou para outras searas, não mais exclusivas do horror, e ele tem escrito um pouco menos e melhor, do ponto de vista literário, ainda que tenha voltado a considerar seriamente a possibilidade de parar de publicar após um terceiro evento terrível em sua vida, quando foi atropelado por uma van em junho de 1999.
Seria interessante que Rogak explorasse um pouco mais como se deu esta transição e de como fez com que ele perdesse muitos leitores, aqueles mais fãs de suas poderosas histórias de horror. A autora fala sobre isso no livro, King afirma que aceita este fato com certa resignação, mas não se avança muito mais, a não ser com fatos e obras que ilustram esta mudança de perfil embora, no fundo, possamos dizer que King nunca deixou de ser um escritor de horror, apenas acrescentou ao seu repertório temático outros temas populares e refinou, amadureceu um pouco sua prosa, sem se tornar com isso um estilista. O mais importante é que Stephen King nunca deixou de ser um pageturner, um genuíno contador de histórias. Isto está presente tanto em Christine, o Carro Assassino (1983), quanto em Love: A História de Lisey (2008).
Nesse sentido é possível apreciar qualquer uma de suas histórias, seja a de um horror mais tradicional, como para um mais relativizado que, ao contrário do que esta divisão faz parecer, não é tão rigorosa assim. No primeiro grupo, temos clássicos como O Iluminado (1977), A Dança da Morte (1978), O Cemitério (1983), A Coisa (1986); no segundo, livros poderosos como, por exemplo, Zona Morta (1979), Angústia (1987), Insônia (1994) e Desespero (1996).
O fato de não ser reconhecido como um grande escritor pelos críticos literários mais tradicionais não o aborrece tanto quanto o preconceito associado ao tipo de ficção popular que ele escreve, além da fama e dinheiro que ele conseguiu. Pode ser um fato, para qualquer forma de arte, de que quanto mais simplificada suas mensagens e estrutura, mais impacto tende a provocar numa maior parcela de pessoas de pouca cultura. Mas é um fato até certo ponto, pois mesmo numa literatura, no caso, mais popular é possível produzir obras de relevo artístico e crítica social, para não falar na construção de personagens críveis e psicologicamente complexos. E se King ganha muito dinheiro com isso, qual o problema? O importante é que sua obra de entretenimento tem conteúdo. Como já afirmaram uma e outra vez, King é um dos mais agudos intérpretes dos problemas, virtudes e valores da sociedade norte-americana do final do século XX e início de XXI. Sem favor algum.
Coração Assombrado é também um livro engraçado, pois em várias páginas são ilustradas passagens curiosa de sua vida, como quando saiu fantasiado de monstro com seu filho de uma filmagem e foi parar na delegacia, ou o comportamento muitas vezes bizarros de fãs, que circulam próximos à sua casa ou levam livros embalados em papel celofane com a recomendação de que King deve ter cuidado ao manuseá-lo porque nunca foi aberto. Curioso para mim foi saber que King é um cara muito alto, com seus 1,90m e de que sempre teve certa dificuldade em lidar com sua altura.
Stephen King é uma figura pública atuante e generosa. Envolveu-se com o movimento estudantil desde a adolescência e promoveu jantares e eventos de apoios a políticos como, por exemplo, Gary Hart e Barack Obama. Contudo, chama a atenção a sua sensibilidade e de sua esposa com relação ao uso do dinheiro para beneficiar causas ou pessoas. King escrevia contos para revistas obscuras para completar o magro orçamento, de meados dos anos 1960 até meados dos anos 1970, mas nunca deixou de colaborar com elas. Por gratidão sim, mas também por acreditar que é importante que existam revistas que mantenham a chama da publicação de contos, base da cultura popular letrada norte-americana forjada no século XX. Estudantes sem recursos para cursar uma universidade ou artistas em dificuldades financeiras são financiados pelo casal através de fundações especialmente criadas para isso. Em certo sentido, Stephen King se insere na tradição dos ricos socialmente conscientes da importância social que sua posição econômica privilegiada pode resultar numa sociedade capitalista extremamente individualista e competitiva, como a norte-americana.
Em seu conjunto, Coração Assombrado um livro rico para quem já é fã e leitor de Stephen King, ou para quem sabe pouco de sua obra, principalmente das adaptações de suas histórias para o cinema. Contudo, a contribuição mais interessante é aquela que ressalta as particularidades do ser humano – como requer uma boa biografia, enfim – ao mostrá-lo como um ser frágil e muito resistente em enfrentar o abandono do pai, a pobreza , as drogas e o atropelamento. Mas, sobretudo, pela sua posição de liderança em prol de uma literatura popular de qualidade, e na importância social de um artista, não só através de declarações ou apoios, mas também por meio de atitudes concretas de melhoria de pessoas e causas nas quais acredita.
–– Marcello Simão Branco

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