Por volta de 1806, a Inglaterra passava por dificuldades dramáticas. Napoleão Bonaparte conquistara toda a Europa e estava às portas das ilhas britânicas. Havia dificuldades para o povo, que passava por tempos bicudos. Em York havia uma muito respeitada associação de magos, a Sociedade Culta dos Magos de York, que reunia-se periodicamente para discutir magia. Certo dia, um jovem membro da confraria, chamado Secundus, ousou fazer a pergunta fatídica: “por que não se praticava mais magia na Inglaterra?”
É claro que tal pergunta causou embaraço aos magos. Afinal, todo mundo sabia que apenas o estudo da história da magia era algo respeitável. Não era de bom tom praticar magia, coisa de trapaceiros, espertalhões e vagabundos que faziam truques baratos nas ruas para ganhar trocados dos transeuntes crédulos. Isso posto, voltaram aos seus estudos e discussões, deixando o pobre Secundus abandonado em seu canto. Mas um daqueles homens veneráveis acabou por compartilhar da dúvida dele. Mr. Honeyfoot aproximou-se de Secundus e ambos planejaram procurar a opinião de um mago recluso, um tal Mr. Norrel, que morava numa herdade afastada em Hurtfew Abbey. Depois de trocarem algumas cartas combinando o encontro, foram visitá-lo. Mr. Norrell residia numa casa severa, mas confortável, e possuía a maior biblioteca de livros de magia que qualquer mago jamais vira. Era, de fato, um fanático por livros e passava todas as horas de seus dias enfiado nessa biblioteca. Livros raríssimos ali estavam, muitos centenários, exemplares únicos escritos a mão por seus próprios autores. Livros sobre magia que encantaram Mr. Honneyfoot, mas também muitos livros DE magia, escritos por magos antigos e esquecidos pelo mundo. Ao ser questionado sobre o motivo de não haver mais magia na Inglaterra, Mr. Norrel preferiu aceitar o desafio de ele mesmo realizar um ato de magia. Para isso, marcou data, hora e local, a igreja de York. No dia e hora marcados, todos os desconfiados membros da Sociedade Culta dos Magos de York compareceram à igreja para testemunhar, na hora exata, a pretensa manifestação de magia de Mr. Norrell. O mesmo, porém, não se apresentava ali. Enviara apenas um criado, Mr. Childermass, pois para realizar magia não era preciso que o mago estivesse presente. Nem mesmo Childermass era necessário ali. Ele compareceu apenas para trazer um tipo de contrato que todos os magos da Sociedade deveriam assinar. Ele condicionava que, em caso de uma demonstração satisfatória, a Sociedade Culta dos Magos de York deveria ser dissolvida e todos os seus membros deveriam abandonar imediatamente os estudos de magia.
Aceita a condição, todos reuniram-se na nave da igreja e testemunharam, boquiabertos, cada uma das estátuas de pedra santos, gárgulas, e até os rococós barrocos e os motivos florais ganharem uma súbita e voluptuosa loquacidade, discursando, cantando, dançando e toda a gama possível de coisas que uma estátua viva poderia fazer, inclusive contando segredos que deixaram os magos de cabelos em pé. Era o fim da Sociedade Culta dos Magos de York.
Assim principia a saga de Jonathan Strange & Mr. Norrell no surpreendente universo alternativo que a escritora britânica Susanna Clarke criou e desenvolveu até os seus mínimos detalhes, e lhe valeu o merecido Prêmio Hugo de melhor romance de 2005. O volume massivo, com mais de 800 páginas, assusta, mas não são páginas difíceis de devorar e, como em toda boa novela, voam uma pós a outra até que o leitor se vê desejando que elas não acabem nunca.
O livro foi dividido em três tomos principais, mais ou menos autônomos. No primeiro, chamado " Mr. Norrell", acompanhamos o ressurgimento da magia inglesa através das ações de Norrell em sua busca por estabelecer uma esfera de influência na corte, e cada um dos pequenos detalhes necessários à construção da maior parte dos personagens importantes à trama, bem como ao entendimento desse universo em tudo semelhante ao nosso, exceto pelo fato da magia ser uma força funcional, esquecida, mas passível de ser recuperada. A autora recria a história pregressa da Inglaterra, contando sobre um reino autônomo no norte da ilha no qual, por algumas centenas de anos, imperou um mago poderoso, o Rei Corvo, chamado entre os homens de John Uskglass, que desapareceu repentinamente em certa altura.
Nos tempos do Rei Corvo, as estradas entre o mundo dos homens e o mundo encantado estavam francamente abertas, homens e seres mágicos circulavam livremente entre os mundos. Na ausência do Rei Corvo, essas ligações foram desaparecendo e caindo no esquecimento. Durante esse período, ainda existiram magos práticos, que fizeram maravilhas e deixaram livros com suas instruções. Foram os magos áureos, que usavam as estradas do Rei Corvo e mantinham servos mágicos, o que lhes garantia um acréscimo significativo de poder. Depois deles vieram os magos argênteos, bem menos poderosos, geralmente dedicados a estudos acadêmicos da magia e, seguido-se a eles, mais de 200 anos de esquecimento. Porém, muitos dos homens das terras do norte esperam a volta do Rei Corvo e mesmo aqueles que dele não se recordam, comungam dessa mesma esperança em seu íntimo mais profundo. Além do que, as terras do norte estão ainda encharcadas do poder da magia adormecida do rei Corvo e, eventualmente, coisas inexplicáveis acontecem.
Essa superestrutura pseudo-histórica é construída ao longo de todo o livro, tanto nas ações e diálogos do texto principal, quanto em numerosas e deliciosas notas de pé-de-página, algumas bastante extensas, que formam um livro a parte dentro do romance e emprestam a ele uma sensação de realismo eficiente. Muitas dessas pequenas histórias são tão interessantes que, bem desenvolvidas, cada uma delas resultaria em um romance muito bom.
Na sequência dos fatos desta primeira parte, Mr. Norrel, confiante na notoriedade adquirida com o sucesso de sua demonstração de magia em York, transferiu-se para Londres para estabelecer-se, junto a sociedade londrina como o único mago em atividade na Inglaterra. Pretendia oferecer seus serviços à Coroa e servir ao país na guerra, usando suas habilidade e conhecimentos mágicos para enfrentar Napoleão. Mas os militares não estavam dispostos a aceitar esse tipo de ajuda, na qual não confiavam. Foi quando Norrel, já um tanto deprimido, teve a chance de demonstrar mais uma vez seus poderes quando a jovem noiva de um figurão faleceu. Chamado com urgência, Norrell foi encarregado de ressuscitá-la e, muito a contragosto, o fez, selando para isso uma pacto com um ser mágico que viria a se tornar um grande problema não apenas para o próprio Norrell, mas para toda a comunidade britânica.
Na segunda parte do livro, chamada "Jonathan Strange" , somos enfim apresentados ao protagonista do romance. Herdeiro de uma grande fortuna e absolutamente incompetente em quase tudo o que um homem pode fazer, Jonathan decidiu finalmente que seria um mago. Passou a pesquisar por conta própria e, apesar da pouca oferta de literatura adequada – afinal, TODOS os livros de magia estavam seguramente guardados na biblioteca de Norrell – conseguiu executar alguns encantamentos notáveis que logo o elevaram a categoria de segundo maior mago da Inglaterra.
Isso bastou para que Norrel quisesse conhecê-lo e, apesar de todos esperarem que os dois magos não se simpatizariam, acabaram se entendendo muito bem um com outro, de modo que desde então Strange passou a ser aprendiz de Norrell. É claro que havia segundas intenções de parte a parte. Enquanto Strange via em Norrell a única oportunidade de lhe ser franqueado o acesso a mais completa e relevante literatura sobre magia disponível na Inglaterra, Norrell queria orientar seu pupilo na sua própria filosofia mágica e evitar que ele restabelecesse, como era evidente que faria, o tipo de prática mágica do desaparecido John Uskglass, que Norrell abominava.
Quando Strange é convocado para servir a Inglaterra junto ao Lorde Wellington contra as tropas de francesas em Portugal, é que a história deste livro finalmente começa. Strange tem que improvisar no campo de batalha e, aos poucos, com erros e acertos, conquista o respeito e a confiança de Wellington, retornando para a Inglaterra como herói nacional. Quando Napoleão realiza uma grande investida final, Strange é novamente convocado para a batalha. Desta vez os combates são ainda mais ferozes e Strange novamente prova ser uma peça de importância na sangrenta batalha de Waterloo.
Com a Europa pacificada, Strange retorna a Inglaterra para passar algum tempo em férias com sua esposa Arabella e escrever seu primeiro livro. Durante uma temporada em sua residência natal, Arabella é raptada pelo ser mágico que auxiliara Norrel em sua magia necromante, e usa de astúcia para fazer Strange acreditar que ela morreu. A partir desse episódio, a vida de Strange, bem como seu equilíbrio emocional, vão se complicando, decorrente das ações tomadas por ele mesmo e por outros antes dele, inclusive o acomodado Norrell.
A terceira parte, chamada "John Uskglass", é a mais sombria de todo o volume e caracteriza uma história dark fantasy típica. Nela, é lançada a primeira edição do livro de Strange, no qual ele se investe da vocação mágica do Rei Corvo. Isso desgosta profundamente Mr. Norrell e a relação entre os dois magos fica estremecida. Strange rompe com Norrell e viaja para a Itália.
Em Veneza, Strange descobre os mais profundos segredos da magia do Rei Corvo, o destino verdadeiro de sua esposa e a única forma de realmente adquirir poder suficiente para resgatá-la do domínio de perigoso ser mágico que está disposto a matar todos os magos da Inglaterra. Para isso terá de encontrar O LIVRO, o mais poderoso compêndio de magia jamais escrito, de autoria nada menos do próprio Rei Corvo e escrito numa língua exclusiva, por ele inventada. Mas este não é um livro como outro qualquer, pois ele vaga pela Inglaterra, na forma de um homem. Esse torvelinho ainda apresenta outros perigos vindo do mundo encantado, o surgimento de um novo rei para a Inglaterra e a uma tremenda maldição que vai acompanhar Strange até o final de seus dias, quem sabe.
Susanna Clarke prova ser uma excelente construtora de personagens cativantes e profundos. Mesmo aqueles que aparecem apenas durante algumas páginas deixam sua marca na narrativa. Cada detalhe deixado solto em algum lugar é retomado e enovelado cuidadosamente antes de se virar a 817ª página. A autora também demonstra muita habilidade com a pesquisa e a ambientação histórica, e seu romance fica na fronteira entre a fantasia e a história alternativa, gozando plenamente das qualidades de ambos os gêneros.
— Cesar Silva
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