Em junho de 2009, recebi de Érica Bombardi, que então era apenas uma colega de uma lista de discussão literária, um pedido incomum: se eu poderia ler o romance de fantasia que ela havia escrito e fazer observações a respeito para que ela o aperfeiçoasse. Como já havia feito isso para outros autores amigos, aceitei. Logo recebi pelo correio um calhamaço com o manuscrito de um romance chamado Fatum, título que eu confesso não ter gostado muito – e o disse logo para a autora. Tomei o original e, com um lápis à mão, fui lendo, assinalando e escrevendo meus comentários nas laterais das páginas e em emails que trocávamos periodicamente. Algumas semanas depois, devolvi o manuscrito a autora com um longo comentário final. Na época, Érica trabalhava numa editora e eu imaginei que o livro dela seria publicado pela mesma, por isso foi uma surpresa quando vi o nome dela na relação dos selecionado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – Proac 2011, com um texto que tinha justamente o nome do primeiro capítulo de Fatum. "Deve ser o próprio", pensei. E era mesmo. Foi uma sensação agradável ver um texto que eu criticara recebendo o financiamento de um concorrido programa cultural. Mais uma vez, pensei comigo mesmo: "agora ela vai achar fácil uma boa editora para publicar o livro". Mas Érica tinha outros planos.
Além do Deserto foi publicado pela própria autora, que fundou uma empresa especialmente para fazê-lo. Com a experiência que havia adquirido em anos de trabalho na editora, Érica queria colocar em prática sua própria política editorial. Em poucos meses, o volume estava pronto, sendo que foi o primeiro livro de 2012 que me chegou às mãos.
Além do Deserto é o início de Fatum, série de alta fantasia sobre um mundo compartilhado por homens e seres mágicos. Neste primeiro romance, o mundo de Fatum está agonizante, arrazado pela guerra entre os homens e as fadas. Tornado num extenso deserto, os sobreviventes desse mundo outrora belo e vigoroso agora habitam os últimos oásis, em torno dos quais ergueram pequenas cidades muradas que também estão em um lento processo de esgotamento. A guerra acabou, mas o sangue dos mortos ainda recobre vastas regiões e demônios poderosos empreendem ataques às cidades, causando muitas baixas.
Mas algo não parece certo nessa tragédia planetária. A guerra foi brutal e efetiva demais. As Sombras, um grande mal desconhecido, é o verdadeiro responsável por toda a destruição e ainda se esconde, a espera do momento certo para o golpe final. Contra ele, só uma pessoa pode ter chance, Thera, uma jovem revoltada que não se interessa pelo destino de Fatum e só se pensa em achar o irmãozinho perdido. Mas ela será levada a agir por um improvável grupo de humanos e fadas, que acreditam ser ainda possível salvar o seu mundo. Na busca por revelação e esperança, eles são peões nos jogo do maléfico inimigo oculto, que vai manipular os heróis para garantir sua vitória final, que a cada momento parece mais e mais inevitável.
A guerra entre homens e seres mágicos é recorrente nos textos de autores-fãs que, cegos pelo brilho de suas obras de culto, não se abrem para melhores possibilidades criativas. Mas o tema já rendeu histórias surpreendentes nas mãos de profissionais como Bruce Sterling, Glen Cook e João Manuel Barreiros. Érica também encontrou aqui um viés diferenciado e conseguiu construir uma narrativa inusitada que, na maior parte do tempo, escapa das convenções do gênero, embora eventualmente deslise para o usual, o que é natural num trabalho de estreia. Mas o romance revela uma rica palheta de ideias interessantes a serem exploradas, uma fauna variada de animais exóticos e entidades mágicas, uma história milenar a ser resgatada, além de vilões deliciosamente detestáveis, como devem ser em toda boa história de fadas.
O financiamento do Proac não veio por acidente, foi mérito da autora e depõe ao seu favor. A seriedade e o carinho com que Érica tratou a criação e publicação do livro, impresso em papel reciclado e uma linda ilustração nas capas internas, também merece o respeito dos leitores, que podem esperar por mais nos futuros trabalhos da autora, que certamente virão.
— Cesar Silva
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