Quem viveu os primeiros anos do segundo fandom brasileiro de ficção fantástica, entre nos anos 1980 e 1990, sabe que, naqueles tempos, o que mais havia para ler era ficção científica. O acesso ao gênero era garantido por diversas coleções de grandes editoras, como a José Olimpio, Nova Fronteira, Brasiliense, Hemus e Record, sem falar naquelas que vinham importadas de Portugal, com a nata da Golden Age e da New Wave estrangeiras.
A efervescente atividade dos fanzines e a chegada da edição brasileira do periódico Isaac Asimov Magazine, em 1990, parecia acenar com o estabelecimento definitivo do gênero. Nessa época, os leitores tiveram acesso ao que de melhor se fazia no Brasil e no mundo em matéria de fc. Também havia uma boa e constante oferta de horror, principalmente dos medalhões do gênero, mas a fantasia... ah, a fantasia. A não ser pelos clássicos e uma poucas edições de Marion Zimmer Bradley – bestseller à época –, nada mais havia para ler. Tolkien conhecia apenas uma edição mal distribuída de O senhor dos anéis – pirata, dizem as más línguas. O próprio C. S. Lewis, autor de referência na alta fantasia, era mais conhecido dos leitores brasileiros por seus romances de ficção científica, gênero que também caracterizava o único livro que o escritor americano Glen Cook tinha publicado por aqui: Os herdeiros da Babilônia (The heirs of Babylon, Global), uma surpreendente história de guerra naval pós-holocausto, com o realismo cruel de quem tem experiência no serviço militar – Cook serviu a Marinha.
A Companhia Negra, de longe seu trabalho mais importante, foi originalmente publicado nos EUA em 1984 mas, por ser fantasia, foi preciso que os editores brasileiros esgotassem todas as demais possibilidades para alguém arriscar dar uma chance a esse grande contador de histórias praticamente desconhecido no Brasil. É o primeiro romance de uma série que já conta com pelo menos dez volumes publicados. Trata-se de um relato, em forma de crônicas, escrito por Chagas, codinome do médico da Companhia Negra, um tradicional e respeitado grupo de mercenários que aluga seus serviços especializados a governos de um mundo tão fantástico quanto violento, continuamente mergulhado em guerras entre seus governantes que, geralmente, são muito mais do que homens.
Uma das coisas que mais impressiona ao se iniciar a leitura de A Companha Negra é que a história não tem um início tradicional. Nada de gnomos risonhos a tomar chá enquanto explicam como seu mundo funciona. Por exemplo, veja a seguir os primeiros parágrafos do volume:
"Houve prodígios e maravilhas suficientes, é o que o Caolho diz. Temos de culpar a nós mesmos por interpretá-los mal. A definição do Caolho não prejudica nem um pouco sua admirável capacidade de olhar para trás.
Relâmpagos num céu limpo atingiram a Colina Necropolitana. Um dos raios acertou a placa de bronze que selava a tumba dos forvalakas, obliterando metade do feitiço de confinamento. Choveu pedras. Estátuas sangraram. Sacerdotes de vários templos relataram vítimas de sacrifício sem corações ou fígados. Uma dessas vítimas escapou depois de ter as tripas abertas, e não foi recapturada. Na Caserna da Forquilha, onde as Coortes Urbanas estavam aquarteladas, a imagem de Teux se virou completamente para trás. Por nove noites seguidas, dez abutres negros circularam o Bastião. Então um deles expulsou a águia que vivia no topo da Torre de Papel."
A narrativa segue nesse mesmo tom, contando uma batalha feroz na qual a Companhia Negra tenta defender, sem muito sucesso, os muros do castelo de seu atual contratante do ataque de uma fera monstruosa, sendo que boa parte da Companhia não sobrevive ao primeiro capítulo.
Entre o sangue e a morte que cercam o cronista, ficamos sabendo que seu mundo está passando por um tipo de revolução, um levante popular conhecido como Rosa Branca, que luta contra o domínio da Dama, soberana que está muito interessada em contratar os serviços da Companhia e, para isso, move seus peões num jogo quase sempre desonroso.
A Dama é uma bruxa com milhares de anos de idade, que tem aos seu serviço um grupo de generais lendários conhecidos como Tomados, magos impiedosos, cada um deles mestre em algum tipo de incomum habilidade sobrenatural. Não que a magia seja exclusiva desses monstros, longe disso. Ela está enraizada nas relações cotidianas desse mundo. Todo o exército que se preze mantém diversos bruxos em suas fileiras, e a Companhia Negra não é diferente. Boa parte das batalhas são travadas – e decididas – pelas força das artes arcanas. Mas um bruxo também pode ser morto, daí o uso ainda bastante útil dos guerreiros e suas espadas. Além das batalhas, o mundo da Companhia Negra está coalhado de monstros poderosos e assustadores, que matam e devoram. Ninguém é completamente confiável e até os protagonistas são arrogantes e traiçoeiros.
De tudo isso, só vamos ter uma noção mais ou menos clara para além de dois terços do romance, porque nada é explicado previamente. O leitor, da mesma forma que o narrador e seus companheiros de armas, na maior parte do tempo não fazem a menor ideia do que está acontecendo e só tentam manter-se vivos e de pé. O cronista não pode contar nada além do que aquilo que vê, o que deixa o leitor perdido no meio de intrigas incompreensíveis e batalhas que não parecem fazer nenhum sentido.
A narrativa é ágil e feroz, montada a partir de episódios frouxamente amarrados entre si. O texto é ríspido, sincopado e desconfortável, o que contribui para uma intensa sensação desamparo, sem espaço para a poesia que geralmente predomina o gênero.
Contrariando os protocolos, Cook lança mão de um grande contingente de personagens populares, gente comum que se vê envolvida pela violência e tem que dar um jeito de sobreviver. Os problemas dos reis, rainhas, príncipes e princesas não são o foco da atenção do autor, que os deixa de lado, recolhidos atrás das paredes de pedra de suas torres.
Como já foi dito, a série conta com nove sequências, sendo que as duas primeiras já foram traduzidas pela Record em 2013 e 2014, respectivamente: Sombras eternas (Shadows linger, 1984), A Rosa Branca (The White Rose, 1985), The silver spike (1989), Shadow games (1989), Dreams of steel (1990), Bleak seasons (1996), She is the darkness (1997), Water sleeps (1999) e Soldiers live (2000), sendo que já foram anunciadas mais duas: A pitiless rain e Port of shadows.
Além de A Companhia Negra, Glen Cook escreveu muitos outros livros igualmente inéditos no Brasil, como os das séries Garrett p.i., Dread Empire, Instrumentalities of the night, Starfishers e Darkwar, além de diversos romances independentes, dos quais conhecemos apenas o já citado Os herdeiros da Babilônia que, de qualquer forma, merece republicação.
Glen Cook é um grande escritor e merece mais atenção tanto dos editores quanto dos leitores. E sendo A Companhia Negra seu livro mais significativo, é obrigatório para todos aqueles que querem conhecer, como diz o personagem de Laurence Fishburne em Matrix, "até onde vai a toca do coelho".
— Cesar Silva
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