Titã (Titan), John Varley. Volumes 1 e 2. Tradução: Maria Nóvoa. Capa do volume 1: Ron Walotsky. Capa do volume 2: Tim White. 164 e 159 páginas, respectivamente. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica nos. 92 e 95, 1985. Lançamento original em 1979.
John Varley surgiu como
um dos talentos mais promissores da FC norte-americana em meados dos anos 1970.
Estreou em 1974 com o conto “Picnic on Nearside”, em The Magazine of Fantasy and Science Fiction e obteve grande
prestigio com seu romance de estreia, Ofiúco,
o Aviso (The Ophiucchi Hotline;
1977) – publicado pela coleção FC Europa-América, número 15. Com eles
sobressaiu qualidades, como a habilidade na renovação de conceitos tradicionais
do gênero (como as viagens interestelares e a colonização humana do espaço),
sem parecer repetitivo e bem informado sobre o estado da arte do conhecimento
científico em áreas diversas, como a clonagem e a inteligência artificial, além
de apresentar personagens com valores e comportamentos não convencionais. Tudo
isso transparece em Titã, romance de
ficção científica hard, mas que usa o
modelo para extrapolá-lo num sentido ousado e transformador.
Quando a DSV Ringmaster, uma nave tripulada chega nos
arredores de Saturno para uma missão científica de exploração de algumas de
suas luas, descobre um satélite novo, mas que, na verdade, não é natural. Os
tripulantes, comandados por Cirocco “Rocky” Jones constatam que é semelhante a
uma roda, com cabos em direção a um centro. Assim, não se trata da lua Titã,
mas de um corpo novo que é nomeado provisoriamente de Themis, justamente um dos
titãs da mitologia grega, que também nomeia várias outras luas de Saturno.
Ao se aproximar da estrutura,
a nave terrestre é subitamente atraída e destruída, e os astronautas são como
que tragados para o subsolo do satélite. Isso porque Themis, posteriormente
renomeado de Gaia – a edição lusitana traduziu como “Geia”, mas adoto aqui o
nome mais conhecido do conceito –, apesar de ter uma estrutura toroidal é
inteiramente preenchido por densas florestas, montanhas, rios e vales. A
denominação faz sentido, pois o satélite é uma estrutura alienígena concebida
para comportar vida, criada a partir de um ser muito poderoso, quase um Deus,
embora como ele mesmo reconhecerá, gerado a partir do que chamou de “os
construtores”. Uma espécie alienígena ainda mais antiga e poderosa que, segundo
ele, desapareceu da galáxia.
A comandante Jones e os
demais tripulantes, como a astrônoma Gaby Plauget, as físicas clones April e
Agosto, o piloto Eugene Springfield, o médico Calvin Greene e o engenheiro
Bill, reaparecem em pontos distantes de Gaia com a sensação de terem sido
devorados e regurgitados para a superfície, cada um deles com sentimentos
próprios e apavorantes do que passaram. Jones, em particular, é uma das que
menos sofreu transformações dessa experiência traumática. Isso porque, os
demais saem com suas personalidades muito alteradas, alguns de maneira
irrecuperável.
Jones reencontra Gaby e a
seguir Calvin, que reaparece a bordo de um ser gigantesco semelhante a um
dirigível, chamado de Assobio, porque se comunica através de sons sibilantes
com outros seres de Gaia, que ele conduz em troca de alimentos trazidos pelos
outros habitantes. Pois Calvin é capaz de se comunicar com Assobio, torna-se
parte do modo de vida do ser, e decide abandonar a missão, para contrariedade
de Jones.
Em sua jornada por
respostas, Jones, Gaby e Bill – que perdeu parte de sua memória –, encontram
uma espécie parecida com centauros, chamada de titânides, no qual todos têm a
forma feminina, embora alguns com órgão sexual masculino. Eles conseguem
entender os humanos, mas se comunicam por meio de cantos. Jones e os demais,
têm de se esforçar para cantar para se comunicar com eles. Mas após certa
estranheza e dificuldade inicial, se adaptam. Assim, ficam sabendo que os seres
vivem em guerra com outros alados chamados de anjos. Que surgem do alto e os
atacam de forma inesperada, razão pela qual estão sempre alertas.
Muito impactada após um
ataque devastador dos anjos à vila dos titânides, Jones promete ao seu líder arbitrar
um possível acordo de paz. Mas na verdade, o que a comandante busca é a fonte
de poder deste mundo, já que os titânides lhe revelaram que existe a entidade
central citada acima, que lhes deu a vida e conduz este mundo, chamado por
eles, justamente, de Gaia. Assim, Jones, Gaby e Gene abandonam a vila e partem
em busca de respostas e possível ajuda para voltar à Terra. Contudo, nessa jornada de cerca de 600
quilômetros de altura, escalando árvores e montanhas, em meios a súbitas
mudanças de temperatura – do calor ao frio extremo – novos desafios e
transformações estarão adiante das duas – Gene se perde no meio do caminho,
após atacar sexualmente a ambas, numa fúria em parte provocada pelas
transformações pelo qual passou quando tragado sob a superfície –, até o
eventual contato com a entidade que criou as formas de vida nesta estrutura
orbital.
Como se vê, Varley
constrói um mundo extremamente imaginativo e cheio de energia. A cada capítulo,
o leitor tem diante de si, uma aventura intensa e repleta de surpresas. Tanto
no nível macro, do enredo, como do comportamento dos próprios personagens, em
parte também sob o impacto deste mundo incrível. Neste sentido, chama a atenção
a liberalidade sexual dos personagens, com Cirocco Jones e Gaby se tornando
amantes, além da comandante também se envolver com Bill, e as irmãs Agosto e
Abril viverem uma relação incestuosa, aqui já antes da chegada às cercanias de
Saturno. Num certo momento da narrativa, também há o consumo de cocaína, tudo
isso muito provocativo no cenário conservador da FC norte-americana, mesmo com Varley
surgindo no contexto pós-new wave e dos contestadores anos 1960. Outro aspecto
interessante que foge do padrão é o protagonismo feminino, com a história sendo
conduzida de fato por mulheres, além do próprio mundo ter, de uma certa forma,
uma dimensão feminina, como na exposição de duas de suas espécies, os titânides
e os anjos, além da própria entidade que governa o mundo toroidal.
E os leitores e os
críticos norte-americanos gostaram, pois Titã
venceu o Prêmio Locus de 1980 e foi finalista dos dois principais prêmios da FC
norte-americana, o Nebula em 1979 e o Hugo em 1980. É de fato seu livro mais
popular e, conforme o final já sugeria com o destino surpreendente da
comandante Cirocco Jones, deu ensejo a mais duas sequências: Feiticeira (Wizard; 1980) – coleção FC Europa-América, números 87 e 89 – e Demônio (Demon; 1984) – coleção FC Europa-América 118 e 119 – constituindo a
chamada Trilogia de Gaia.
Para quem gosta de uma FC
com uma estrutura hard competente, personagens vivos e atuantes, e um sentido
de aventura apurado, Titã é uma das
melhores pedidas, e ainda permeado por momentos de sense of wonder na melhor tradição do gênero. Grande livro.
—Marcello Simão Branco
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