No ano de 2017 já era possível antecer as sombras que se infiltravam no cenário brasileiro. Golpe de estado em 2016, crise econômica, perda de direitos trabalhistas, fake news em profusão nas redes sociais e o crescimento de um discurso de intolerância que sabemos bem para onde nos levou. Associado a tudo isso, desenvolvia-se uma profunda crise editorial que iria abater o mercado de publicações em sua base. Grandes editoras e redes de livrarias internacionais estavam abandonando o país enquanto as locais rolavam dívidas cada vez maiores, afigurando o calote que viria.
Mas ainda havia fôlego para investir, pois o golpe prometera novos tempos para a economia nacional, combalida por anos de uma campanha de desmoralização política e econômica. Talvez seja o que animou a publicação do ousado romance de fantasia Ordem Vermelha: Filhos da Degradação, numa parceria da editora carioca Intrínseca com o evento midiático ComiCon Experience-CCXP, realizado em São Paulo no final de 2017. Foi promovida uma gigantesca campanha de divulgação do lançamento do volume, com cartazes enormes espalhados pela cidade, e a CCXP daquele ano foi uma grande vitrine para ele. A ousada estratégia, nunca antes vista para um autor nacional de ficção fantástica – arrisco dizer que nem para qualquer outro autor de qualquer gênero – funcionou muito bem, até porque a CCXP é toda projetada para vender, haja vista o entusiasmo consumista de seu público.
Ordem Vermelha: Filhos da Degradação é assinado pelo escritor paulistano Felipe Castilho (autor da série de fantasia juvenil O legado folclórico). Apesar de não estarem creditados na capa, a autoria é dividida com Rodrigo Bastos Didier e Victor Hugo Sousa, ambos artistas do ambiente de games eletrônicos e RPG. Didier, ilustrador, e Sousa, animador, contribuíram de forma importante para a construção do ambiente e dos personagens do romance, bem como na construção do enredo. De fato, Castilho foi contratado para dar forma textual à história que, ao que tudo indica, é propriedade da própria CCXP. O plano original prevê mais volumes pois a página de rosto estampa a expressão "Volume 1".*
O formato do romance tem cacoetes de um jogo de RPG e talvez seja mesmo resultado de algo do gênero. O ambiente emula o modelo cosmológico de O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, e de As crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, no qual a magia é a "tecnologia" corrente e diversas raças míticas convivem em equilíbrio instável de intolerância e violência. No romance de Castilho há humanos e anões, e também sinfos e kaorshs, que são correlatos de duendes e elfos, além de uma miríade de animais fantásticos, como os betouros (amálgama de besouros com touros) e outras feras.
A história se passa em Untherak, cidadela medieval muralhada que se acredita ser o último refúgio da civilização assolada pela Degradação, decadência ambiental que tornou o mundo um lugar desértico e pouco hospitaleiro. Untherak é governada por uma monarquia teocrática de castas, controlada pelo culto à deusa imortal Una, e por uma poderosa polícia estatal cujo comandante supremo é o General Proghon, um tipo que em tudo lembra o personagem Darth Vader, da fanquia Star wars. A liderança científica é exercida pelo cruel Centípede, feiticeiro cuja consciência se espalha em uma legião de indivíduos. O poder da deusa Una é mantido pelo medo e pela violência, com o povo escravizado por uma elite administrativa chamada de "Autoridades", que vive segregada em bairros nobres enquanto o povo sofre em condições de miséria.
Nessa situação praticamente sem esperanças acontece o Festival da Morte, competição de artes marciais na qual é prometida a liberdade ao derradeiro sobrevivente. A kaorsh Raazy decide participar dele, para ter a chance de, vitoriosa, aproximar-se de Una na cerimônia de premiação. Seu objetivo é matá-la, provar que Una não é imortal e levar Untherak a uma insurreição. O plano funciona parcialmente, mas Raazy acaba morta por Proghon e a revolta é abafada.
Inspirado por um mítico rebelde conhecido como Aparição, um grupo de paladinos formado pela korsh Yanisha, viúva de Raazy, o sinfo Ziggy e o falcoeiro Aelian, um escavo humano que também viu seu pai ser morto na arena do Festival da Morte, tenta o que parece impossível: derrubar a tirania da deusa Una. No processo, eles terão o apoio pouco confiável do anão negro Harun, que é um Autoridade, mas cujo objetivo de vida é localizar e recuperar a armadura sagrada de seu povo, que esté escondida em algum lugar de Untherak. Juntos, eles lutarão pela libertação do povo oprimido pelo governo de Una e seus generais. Contarão ainda com a ajuda da própria Aparição, cuja identidade é o segredo mais bem guardado de Untherak.
O livro é dividido em três partes principais: "O Miolo", que introduz o ambiente de Untherak e os principais atores da trama, "O coração de todo o medo", em que a revolta é planejada, e "O fio da espada", que conta a ação dos rebeldes e a batalha do povo contra as hostes de Proghon. Cada um dos capítulos é antecedido por trechos de um epílogo, impresso em negativo, que narra a volta da Aparição à Untherak após anos de exílio. Ainda que criativo, a estrutura descontextualiza os trechos e confunde o entendimento da história, tornando a leitura truncada e quase incompreensível. Recomendo que o leitor deixe para ler as páginas negras após a leitura do romance inteiro, que funciona muito melhor.
Há uma grande quantidade de personagens e, apesar de estarem bem integrados à história, alguns deles são bastante esquemáticos. O romance tem bons momentos e a leitura entretém. Temas como o protagonismo feminino e a diversidade de gênero são evidenciados e contribuem para a formação de um conceito mais contemporâneo para ficção fantástica brasileira, quase sempre preconceituosa e misógena. Há um comprometedor "deus ex machina" no confronto entre os rebeldes e o Centípede mas, excluindo-se esse problema, o texto de Castilho é limpo e agradável, com boas cenas de ação e descrições vívidas da topografia e da arquitetura de Untherak. Um mapa impresso em papel diferenciado, encartado no meio do volume, ajuda a visualização geral da cidadela.
A apresentação do livro é sofisticada, com impressão em papel pólen levemente amarelado; a capa tem laminação fosca com reserva de verniz no título e uma bela ilustração de Rodrigo Bastos Didier. O livro é dedicado ao escritor Max Mallmann (1968-2016) e Lucas S. Souza (este sem maiores referências).
Talvez Ordem Vermelha: Filhos da Degradação tenha sido um romance um tanto superestimado, notadamente pela desproporcional campanha publicitária que se fez, mas não é um trabalho nada desprezível e revela que, desde que exista disposição e capital, é possível levar a literatura fantástica a um patamar mais profissonal e popular. À fc&f brasileira nunca faltou bons autores e boas ideias, temos dúzias deles. O que nos falta mesmo é, e sempre foi, o mercado, que se faz com editoras e pontos de venda. Algo que está a cada dia mais em falta, infelizmente.
Talvez Ordem Vermelha: Filhos da Degradação tenha sido um romance um tanto superestimado, notadamente pela desproporcional campanha publicitária que se fez, mas não é um trabalho nada desprezível e revela que, desde que exista disposição e capital, é possível levar a literatura fantástica a um patamar mais profissonal e popular. À fc&f brasileira nunca faltou bons autores e boas ideias, temos dúzias deles. O que nos falta mesmo é, e sempre foi, o mercado, que se faz com editoras e pontos de venda. Algo que está a cada dia mais em falta, infelizmente.
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