Uma
Força Medonha (That Hideous Strength), C.S. Lewis. Tradução de
Waldéa Barcellos, 556 páginas. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2012. Lançado originalmente em 1945.
Este
é o livro de encerramento da Trilogia Cósmica, ou de Ransom, o mais
longo dos três livros e, talvez, o mais controverso. Iniciada com
Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet,
1938) – resenha aqui –, e continuada com Perelandra
(Perelandra, 1943) – resenha aqui.
Uma
Força Medonha recebeu o subtítulo “Um conto de fadas para
adultos”, pois a possível intenção do autor era apresentar ao
leitor adulto o romance mais sobrenatural (ou
fantástico) da trilogia, embora fenômenos deste tipo também tenham
sido vistos nos dois livros anteriores, além de abordar de uma forma
mais explícita o conflito entre o bem e o mal.
Aqui,
o linguista Ransom não atua como protagonista. Ganha a cena agora um
jovem casal, Mark e Jane Sutddock, recém-casados e à procura de
afirmação, profissional e sentimental. Mark é professor de
Sociologia numa pequena universidade no interior da Inglaterra, e
Jane anseia retomar seu doutorado, insatisfeita com a condição de
dona de casa.
O
enredo se desenvolve por meio das trajetórias paralelas dos dois,
afastados um do outro pelo curso dos acontecimentos estranhos que
ocorrem na cidade de Edgestown, mas, sobretudo, pela distância que
existe entre os dois. Tanto que passarão quase o livro inteiro
separados, e pouco incomodados com isso.
Mark,
inseguro e carente por reconhecimento, adentra numa nova organização
que se instala na cidade, o obscuro Instituto Nacional de
Experimentos e Coordenações (Inec), uma sigla que, a rigor, não
quer dizer nada. Mas a ideia é esta: não revelar suas reais
intenções até poder se apossar de uma “força medonha”, daí o
título do livro.
O
Inec compra um terreno não usado pela universidade, e a partir disso
vai assumindo o controle da própria cidade: derrubando árvores e
alterando o curso do rio, desapropriando os moradores de
suas casas, tudo de forma abrupta e violenta. Mark
inicialmente não se importa com nada disso – e nem se sua esposa
possa ser ameaçada –, pois quer apenas saber que funções terá
nesta organização. Aliás, este personagem é
irritante com sua atitude subserviente e omissa com as
barbaridades, interessado apenas em si mesmo.
Jane,
por sua vez, de repente passa a ter sonhos perturbadores, que alteram
sua rotina. Como o de um homem preso e depois morto pela guilhotina,
que surge vivo
apenas com sua cabeça. Ao abrir o jornal no dia seguinte ela lê a
notícia de um preso morto, com a cabeça separada do corpo. Sem
saber o que fazer – consultar seu ocupado marido nem pensar – ela
acaba encontrando casualmente uma amiga, também esposa de um
professor da mesma universidade. Este a aconselha a procurar uma
certa mulher que poderia ajudá-la. Mesmo contrariada Jane a procura,
e esta lhe diz que não há nada de errado com sua saúde, mas que
ela é uma vidente, e deve usar esse dom a favor da causa pela qual
ela está por trás, num mosteiro situado nas cercanias de Edgestown.
A
história alterna os capítulos, com as realizações e planos dos
membros do Inec, e a resistência informal que se forma, com ambas as
situações sendo mostradas do ponto de vista de Mark, de um lado, e
Jane, de outro. Esse aspecto é interessante pois acompanhamos junto
com os dois do que se trata afinal tudo isso, sem sabermos de antemão
os objetivos de ambos os lados.
Mas
Lewis concentra mais a narrativa no desenvolvimento do Inec, a
instituição que altera o status quo e provoca a reação dos
membros do mosteiro. Formado por velhos cientistas, nas áreas da
Física, Química e Biologia, é um lugar
sombrio e que oculta suas reais intenções até de vários de seus
membros, embora todos compartilhem uma visão de mundo sectária e
totalitária. Não é revelado como, mas o Inec tem conexões
poderosas com políticos, banqueiros, jornalistas e militares e, com
isso, com
abertura para agir em nome de suas próprias leis,
como se fosse um novo Estado no interior do Estado britânico. Se
apodera dos principais jornais, opera uma força paramilitar –
chamada eufemisticamente de polícia institucional –, que reprime,
prende e tortura os cidadãos de Edgestown que oferecem alguma
resistência a esta nova ordem.
Dentro
deste contexto cabe a Mark escrever artigos mentirosos aos jornais de
Londres, enaltecendo o Inec e depreciando os cidadãos que se opõem,
rotulando-os de
vândalos e bandidos. No interior do Inec são realizadas
experiências “científicas” com animais e condenados pela
Justiça, lá encaminhados às escondidas. Querem descobrir vacinas e
criar vitaminas para tornar o ser humano mais saudável e
inteligente. Neste projeto pobres, doentes e idosos deverão ser
exterminados, um estorvo na direção de uma espécie mais
“evoluída”. Aqui Lewis, de forma contundente, critica as
ideologias racistas e eugenistas de um certo darwinismo social
vigente em parte da intelectualidade ocidental entre o fim do século
19 até o tempo em que ele escreveu o livro. Ora, em graus variados
viraram políticas públicas em vários Estados nacionais –
inclusive no Brasil durante o século XIX –, mas se tornaram o
terror desenfreado mostrado no livro especialmente
em regimes totalitários, como o nazismo alemão.
Embora
Mark faça vista grossa à forma violenta como o Inec funciona,
começa a ficar contrariado, primeiro por se prestar ao papel indigno
de escrever mentiras, depois ao saber o grau de barbaridades que
estão sendo cometidas. Principalmente quando lhe é permitido
conversar com o Cabeça. Sim, a cabeça guilhotinada do sonho de Jane
está viva, através de conexões com um computador. E é neste
aspecto que o romance pode ser mais diretamente relacionado com a
ficção científica, além do contato com os chamados macróbios,
seres não claramente identificados como alienígenas ou
sobrenaturais que, supostamente, orientariam os membros do Inec, para
que a humanidade chegasse à condição de uma “realidade
superior”. Mas não fica claro se realmente estes seres existem, ou
não passa da imaginação delirante de cientistas loucos.
Já
em torno do mosteiro se reúnem pessoas com diferentes habilidades,
sendo que a de Jane é central pois ela pode vir a antecipar futuros
movimentos do Inec. O que as une é a fé cristã, a resistência a
uma ‘força medonha’ que quer se apossar definitivamente da Terra
(Thulcandra), já corrompida pelo mal e pecado. Nesta missão, quem
os aproxima é Ransom, nesta história uma figura quase não humana,
um espírito evoluído, mas ainda encarnado, que terá sua última
tarefa para tentar salvar a humanidade.
Ora,
neste terceiro livro torna-se mais
claro o confronto ensaiado nas aventuras vividas em
Marte (Malacandra) e Vênus (Perelandra). Mas o que incomoda é esta
vinculação da ciência com uma visão niilista e desumana,
configurados num regime de terror. Se Lewis critica corretamente a
doutrina racista e eugenista de parte da mentalidade da época,
exagera ao mostrar uma organização poderosa formada por cientistas
com carta branca para realizar todas estas atrocidades, como se o
próprio desenvolvimento científico estivesse relacionado com uma
visão de mundo deste tipo. Não há o devido contraponto de
cientistas e intelectuais que se oponham
ao Inec. Onde estão os acadêmicos das universidades de Oxford e
Cambridge, as duas maiores do Reino Unido e das mais prestigiadas do
mundo?
Dá
a impressão que estamos diante de uma polarização entre uma
ciência utilitarista e anti-civilizatória, contra os religiosos –
e só cristãos –, e estes que tem por missão salvar o mundo, e os
valores do amor, solidariedade e moralidade.
Ora, mas o que o mundo mostra, primeiro no Renascimento e sobretudo
com o Iluminismo é que os valores da individualidade e da razão se
opuseram aos valores
da submissão e do sobrenatural, configurados pela associação do
cristianismo com o poder político. Lewis veria como corrompido o
mundo pós-iluminista por separar a esfera de ação humana do julgo
religioso? Veria a economia de mercado e o conhecimento científico
como males da modernidade? Não fica claro se ele radicaliza a este
ponto, e creio que não, mas da maneira como apresenta fica uma
sensação incômoda de anti-modernidade, de defesa de um certo
romantismo a um mundo regressivo
que não existe mais.
No
plano narrativo ocorrerá o óbvio confronto, mas surpreende que a
figura responsável pelo desfecho será o mitológico mago Merlin.
Sim, ele mesmo, revivido não se explica como depois de séculos
enterrado no terreno da faculdade, por isso comprado pelo Inec. Os
dois lados lutam para reviver Merlin primeiro, para trazê-lo para o
seu lado e ter mais chances de vitória. Outra surpresa
é a quase ausência dos
seres espirituais dos romances anteriores, os eldila, que atuam de
forma muito tênue, através da liderança de Ransom.
Uma
Força Medonha é o mais denso e ideológico dos três livros, e
aquele que mais depende dos outros para ser melhor compreendido. Já
havia sido publicado em Portugal em 1991 pela coleção FC
Europa-América, nos. 185 e 186, como Aquela Força Medonha, e
só apareceu uma tradução no Brasil com esta edição da Martins
Fontes, cerca de vinte anos depois – mais recentemente foi
publicada uma nova edição pela Editora Thomas Nelson Brasil, como
Aquela Fortaleza Medonha, em 2019.
Apesar
de tomar partido de uma visão anti-moderna, embora não
necessariamente medievalista, o romance é forte e se mantém,
principalmente, por sua estrutura narrativa bem organizada, a
presença de personagens densos e complexos, que acabam por
justificar a leitura e a conclusão da trilogia.
– Marcello
Simão Branco
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