sábado, 25 de abril de 2020

Tijucamérica


Tijucamérica, José Trajano. Capa de Alceu Chiesorin Nunes. São Paulo: Paralela, 2015. 230 páginas.

Todo torcedor de futebol é um apaixonado imerso em suas ilusões, alegrias e, sobretudo, sofrimentos. Mesmo o dos grandes times já teve seus momentos de decepção. Mas em contraponto a elas todos os torcedores, seja de que time for, vive como momento único, glorioso, a vitória sobre o rival, uma goleada inesperada ou o título de seu time querido.
Não é segredo para quem acompanha futebol que José Trajano torce para o América, do Rio de Janeiro. Jornalista experiente e dos mais competentes, ele não engana o torcedor – como outros fazem – ao dizer que gosta de um time de menor expressão para não revelar sua verdadeira paixão por um time grande. Então, imagine o que deve ser a angústia de ser americano. Acho que é ainda pior do que torcer por um time pequeno, que nunca ganhou nada importante, pois se o América nunca foi grande como o Flamengo ou o Vasco, teve bons times e venceu alguns campeonatos em meados do século passado. Eu mesmo vi uma raspa de tacho desta fase, entre o final dos anos 1970 e anos 1980, quando o América engrossava para seus rivais e chegou a ser terceiro colocado no Campeonato Brasileiro de 1986.
Talvez pensando nisso e no desespero de concluir que seu time não voltará mais aos bons tempos – já há alguns anos disputa a segunda divisão do Campeonato Carioca e quase não tem mais torcedores –, é que Trajano resolveu escrever o romance Tijucamérica. Nele é revivida a emoção superlativa e insuperável de ver seu time campeão de novo. Mas não se trata de uma ficção que imagine o reerguimento do América. Trajano foi mais sensato e optou pelo caminho da nostalgia: reviver os gloriosos times e jogadores da melhor época do time. Mas não se trata de um livro de memórias. Não, Trajano resolveu trazer para os dias de hoje os ídolos do passado. Para isso, reuniu uma seleção dos mais poderosos pais-de-santo, espíritas e paranormais que se tem notícia no Brasil. Como nos sonhos mais loucos, pediu para que eles juntassem suas forças e ressuscitassem 25 dos melhores jogadores da história do América.
Depois de muita confabulação surgiram os zumbis do time americano para disputar um Campeonato Carioca extraordinário, fora do calendário oficial. Pois aos mortos-vivos do América seria preciso reviver também os dos outros times! Mesmo após algumas resistências, em especial da cartolagem de times rivais, o Carioca metropolitano, dos velhos tempos voltou em pleno século XXI. Além dos jogadores retornaram também os técnicos e dirigentes mais importantes. Trajano foi eleito presidente e resolveu que o América deveria voltar às suas origens, o bairro da Tijuca, onde viveu seus momentos de conquista.
O leitor familiarizado ou não com futebol já percebeu que estamos diante de uma história fantástica. E que explora como poucas na literatura brasileira de FC&F as possibilidades mágicas do panteão africano. Como ressalta o subtítulo “uma chanchada fantasmagórica”, o livro não resvala para um campo sobrenatural mais tradicional ou sombrio. Ao contrário, é solar, colorido e muito divertido. Pois além do futebol em si traça um retrato revivido inspirado da cena cultural carioca de meados do século passado, com as presenças de vários artistas, como Francisco Alves, Heitor Villa-Lobos, Lamartine Babo, Luz del Fuego, Noel Rosa, Orlando Silva, Tom Jobim, Vicente Celestino, Virgina Lane e muitos outros.
Desta forma Trajano vai narrando a formação do novo América e seu desempenho no campeonato jogo a jogo e é uma delícia ver as escalações dos times, e relembrar muitos craques do passado, inclusive dos outros times. E ao lado disso ele entremeia o texto com comentários e divagações sobre a cena cultural carioca, com muitos causos, boemia, canções e gastronomia de dar água na boca.
Outro aspecto interessante da obra é a da ligação primária dos times com os bairros, que permitiu a formação de muitos deles no Rio e em outras cidades do país, como São Paulo. Assim, a ligação do América com o bairro da Tijuca conferiu identidade a um e a outro, como se fossem uma continuidade. Não é coincidência que a saída do América da Tijuca, no início dos anos 1960, para o bairro do Andaraí, enfraqueceu a ambos, especialmente o clube que nunca mais foi o mesmo: times cada vez mais fracos e perda de torcedores. Unindo Tijuca com América o autor quis ressaltar esta relação umbilical que existe ainda hoje entre times e bairros. Em São Paulo, por exemplo, seria impensável ver o Palmeiras fora da Pompeia, o Corinthians fora do Parque São Jorge, ou a desvinculação do Juventus com a Moóca.
Tenho certeza que Trajano pôde ser feliz de novo com o seu querido América. E o melhor é que ele transmite esta alegria a quem lê e compartilha de sua “chanchada fantasmagórica”. Prova disso é que em seguida ele escreveu um outro romance Os Beneditinos (2018), em que revisita novamente o Rio antigo e se reúne a velhos amigos para voltar a praticar um esporte semelhante ao futebol, o walking futebol, também criado pelos ingleses, em que se joga sem tirar os pés do chão.
Ao ler Tijucamérica fiquei pensando em quem eu gostaria de ver num Palmeiras imaginário. Time grande que é, o Verdão viveu inúmeras glórias, mas eu mesmo passei por uma fase parecida como a do América do Trajano, quando fiquei 17 anos sem ver meu time ser campeão, entre 1976 e 1993. Então, vamos lá, se pudesse gostaria de ver uma formação como esta: 1 – Oberdan, 2 – Djalma Santos; 3 – Luís Pereira, 4 – Waldemar Fiume e 6 – Roberto Carlos; 5 – Dudu; 8 – Jair da Rosa Pinto e 10 – Ademir da Guia; 7 – Julinho Botelho, 9 – Liminha e 11 – Rodrigues. Teria muitos e muitos outros que não vi, mas esta formação seria fantástica, incluíndo Luís Pereira e Roberto Carlos, que eu vi, mas gostaria de saber como seria interagindo com os outros.
Tijucamérica é uma declaração de amor ao futebol e vem a se somar aos pouquíssimos livros que abordam o esporte bretão da perspectiva da ficção científica e do fantástico no Brasil. Eu mesmo organizei a antologia pioneira Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998), seguida pelo romance Fáfia: A Copa do Mundo de 2022, de Clinton Davisson (Nexus, 2004), e mais recentemente pelo ótimo romance sobrenatural O Drible, de Sérgio Rodrigues (Cia. Das Letras, 2013) – Peralvo, o craque do romance aparece em Tijucamérica! – e a antologia Futebol: Histórias Fantásticas de Glória, Paixão e Vitórias, organizada por Marco Rigobelli (Draco, 2014). Neste contexto a ficção de José Trajano, em especial, mostra como o potencial do fantástico pode ser bem aproveitado num tema pouco explorado pelo gênero. Um golaço!

Marcello Simão Branco

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