sábado, 19 de dezembro de 2020

Babel 17 e Estrela Imperial

Babel 17 (Idem)/Estrela Imperial (Empire Star), Samuel R. Delany. Capa: Frede Tizzot. Tradução: Petê Rissati. 280/120 páginas. São Paulo: Morro Branco Editora, 2019. Lançamentos originais de 1966.


Em meio à bem-vinda onda recente de publicação de FC estrangeira de qualidade no Brasil, Babel 17 é um dos lançamentos mais celebrados. Romance icônico da New Wave dos anos 1960, sempre esteve na lista de desejos dos fãs mais antigos da FCB. Alguns não esperaram e leram em inglês mesmo; outros, como eu, tiveram mais paciência e, finalmente, tem o prazer de ler o livro nesta tradução da Morro Branco Editora.

E é uma edição diferenciada, pois publica também a movimentada novela Estrela Imperial, atendendo um antigo desejo do autor de ver as duas histórias juntas numa só edição. Conforme veremos a seguir, Estrela Imperial se situa dentro do universo ficcional da história mais famosa, embora possa ser lida de maneira independente. Chama a atenção também a qualidade do projeto gráfico das capas e da diagramação, além de uma pequena biografia do autor.

Babel 17 é a obra mais conhecida de Samuel R. Delany, um dos escritores mais talentosos e representativos da FC da segunda metade do século XX. Talvez o fato de não ser oriundo do ambiente mais tradicional dos fãs – à época ainda ligados à Golden Age –, tenha permitido a ele maior liberdade temática e, sobretudo, estética, em se juntar ao grupo de escritores que mudou radicalmente a feição do gênero, com mais experimentação literária e a abordagem mais ousada de temas como diversidade cultural, orientação sexual, drogas e comportamentos sociais alternativos. Tudo isto está presente em Babel 17. Ler esta história, em seu devido contexto, nos ajuda a compreender um pouco mais as mudanças de mentalidade da FC em meio às revoluções culturais da década de 1960.

Em um futuro indefinido a Terra faz parte da Aliança – uma coalizão de povos extraterrenos que colonizou as galáxias mais próximas –, e que está em guerra com Os Invasores, uma misteriosa raça alienígena que nunca mostrou o rosto e o pouco que se sabe, vem de suas naves, armas e tecnologias militares. A Terra sofreu sérios revezes, por meio de embargos e isolamento, provocando crises econômicas, surtos de doenças, fome desesperada, o que levou a práticas de canibalismo. Delany ilustra com acuidade a degradação através da miséria e da precariedade de recursos numa cidade portuária de nosso planeta.

Neste contexto em que, ao que parece, estamos perdendo a guerra, Rydra Wong, a poeta mais popular das cinco galáxias habitadas, recebe de um general a missão de desvendar o que vem a ser um estranho código identificado nas ações dos invasores: Babel 17. Ela é convocada não por ser talentosa e conhecida, mas por ter grande talento no aprendizado rápido de línguas. Fala e compreende dezenas delas. Mas Wong esconde um segredo ao qual nem ela quer admitir. Tem um leve poder telepático, mas que quando se manifesta a faz se sentir mal, com gagueira e náuseas, efeitos também de uma tragédia pessoal na adolescência.

Os militares desconfiam que Babel 17 esteja por trás de uma série de atendados militares que estão atingindo as instalações da Aliança, e o receio maior é que possa ter consequências imprevisíveis. Desvendar este código passa a ser, então, uma tarefa estratégica no conflito. Mas Rydra mostrará que Babel 17 é bem mais do que isso.

Num capítulo particularmente inspirado ela adentra o submundo boêmio da cidade portuária para recrutar uma tripulação para a sua nave, que deve partir para onde os militares acreditam que acontecerá o próximo incidente. Acompanhada de um burocrata da alfândega, ela vê uma luta livre, e conhece tipos muito estranhos, até para os padrões desta época: pessoas com todo tipo de implantes e próteses, alienígenas humanoides, e seres desincorporados. Sim, mortos que são recuperados para a vida, ou por meio de uma conexão mental ou fisicamente mesmo. Ou seja, dentro de determinadas situações, é possível trazer o corpo e/ou a consciência de alguém à vida novamente.

Formada a tripulação Rydra parte com a Rymbaud para o centro da galáxia, usando o salto de Specelli como uma espécie de salto hiperespacial. Delany apenas se utiliza de convenções do gênero, sem se preocupar com detalhes. Pois, se estamos diante de uma space opera militar, na verdade o tema é apenas uma moldura externa para as verdadeiras implicações do desenvolvimento do enredo. Isso porque o grande interesse é no que é Babel 17 e que consequências trará, antes de mais nada, para a própria protagonista.

Após chegar a seu destino onde, espera-se que ocorra o próximo atentado, Rydra descobre que Babel 17 é muito mais que um código militar, é uma linguagem extremamente sofisticada, talvez pertencente à civilização inimiga. Pois o contato com a língua permite uma percepção diferente do pensamento e uma expansão da própria noção de tempo. Tais possibilidades em Rydra Wong permitem que desenvolva sua própria habilidade telepática, num nível jamais imaginado.

A língua Babel 17 problematiza a condição de individualidade, anulando o “eu” e incorporando uma noção mais coletiva, grupal de existência. Pois Rydra compreende isso melhor quando conhece o Carniceiro, um humanoide estranho, de origem desconhecida e que se expressa, justamente, sem uma identificação individualizada. Será mesmo com ele, que a poeta descobrirá todo o potencial de Babel 17, e que consequências poderá trazer para sua própria ideia de individualidade e lealdade à causa terrestre. Neste cenário, a guerra em si é deixada num segundo plano. O que importa é a consequência daqueles que tem contato e aprendem a interagir com a estranha linguagem.

Babel 17 venceu o Prêmio Nebula 1966 – num empate inédito com o também clássico Flores para Algernon (Flowers for Algernon), de Daniel Keys – e foi finalista do Prêmio Hugo 1967. Se insere de maneira inspirada no conjunto restrito de romances de FC que tem na linguagem a grande força do enredo. Como, por exemplo, As Linguagens de Pao (The Languages of Pao, 1958), de Jack Vance; Tempo de Mudança (A Time of Changes, 1971), de Robert Silverberg, e The Embedding (1973), de Ian Watson.

Penso, logo existo”, diz o célebre cogito de René Descartes (1596-1650). Mas para pensar precisamos de uma linguagem. Ela se insere na própria estrutura prática e simbólica do pensamento, como e por que pensamos e compreendemos a vida e o mundo. Em chave de FC, Delany explora a premissa e suas possíveis consequências, ainda que tenha ficado uma sensação de incompletude pois, afinal, a guerra não se resolve e nem o destino de Rydra Wong. Em todo caso, é um romance movimentado, com personagens interessantes e que não perde de vista o entretenimento.


***

A segunda história do livro é Estrela Imperial. Delany gostaria que tivesse sido publicada junto com Babel 17, mas isso só foi acontecer numa edição de 2001. Antes, ela foi publicada de forma independente ou ao lado de outro romance A Balada de Beta 2 (The Ballad of Beta 2) (1965), publicado no Brasil nos anos 1970 pela coleção Fantastic n. 587, da editora Tecnoprint.

Estrela Imperial é uma aventura agitada de space opera infanto-juvenil. Mas, assim como Babel 17, é mais do que parece. O vínculo com o romance se dá pelo fato da história ter sido escrita por um dos namorados de Rydra Wong. Uma história popular comentada pelos personagens de Babel 17.

Uma nave sofre um acidente e cai em Rhys, um satélite de um planeta joviano em órbita de Tau Ceti. Um jovem nativo chamado Cometa Jo encontra os destroços, e dois sobreviventes. Um deles, antes de morrer, pede que ele leve uma mensagem para a Estrela Imperial. O outro sobrevivente é Jóia, um tritoviano que assume uma forma cristalizada. Ao assumir esta forma se torna possível que visualize vários pontos de vista ao mesmo tempo. E a partir desta habilidade Jóia é quem conta a história como narrador onisciente.

Entediado e sem perspectivas num lugar em que a economia se baseia na extração e exportação de um minério que serve como fonte de energia para as naves interestelares, Jo parte em sua jornada, inseguro, sem saber o teor da mensagem a ser entregue, nem a quem, e com que propósito.

A bordo de uma nave como auxiliar de serviços gerais, ele passa a ter como tutora uma mulher, Sam Severina, rica e sábia, que lhe ensinará línguas e cultura geral para torná-lo menos ´simplexo´e mais ´complexo´, até chegar a ser uma pessoa ´multiplexa´. Não fica claro o que significa cada conceito, mas sugere algo próximo de deixar de ser uma pessoa de hábitos mais convencionais para outros mais abertos à diversidade e maturidade. Ao que parece, essencial para que possa cumprir sua missão e viver plenamente pela galáxia. Não deixa de ser uma alusão ao processo de amadurecimento da vida adolescente até a adulta, e uma postura mais plural e tolerante com relação ao outro.

A galáxia vive a tirania da Estrela Imperial. Destrói civilizações que se opõe ao seu poder e escraviza outras. Entre elas estão as LLL, criaturas construtoras, hábeis em elaborar cidades e ecossistemas inteiros. Servem de força de trabalho ao império. E como Jo irá descobrir a mensagem a ser entregue está ligada à libertação das LLL e à sucessão do trono, entre o Príncipe Nactor e sua jovem irmã, escondida numa nave militar do império.

A certa altura, contudo, a perspectiva linear é abandonada, e Jóia revela acontecimentos do antes e do depois do cumprimento da missão de Cometa Jo. O desfecho se conecta ao início, numa estrutura de tempo circular e síncrona. Em certo sentido me pareceu um pouco confuso e mentalmente trabalhoso, pois é solicitado ao leitor que repense várias situações da história, numa perspectiva totalmente nova. É Jóia mesmo que afirma que cabe ao leitor o desafio de desvendar as relações de causa e efeito. Mesmo assim, este é o diferencial da narrativa em relação a soluções mais convencionais. Não se poderia esperar menos de um autor como Samuel R. Delany, e ele estava certo: Babel 17 e Estrela Imperial não se ligam apenas do ponto de vista metalinguístico e ficcional, mas também em seu estilo e nas situações multivariadas de cada trama.

A publicação mais recente de Samuel R. Delany no Brasil antes deste volume foi o conto "Para Sempre, e Gomorra"!, na antologia Contos Fantásticos de Amor e Sexo, organizada por Braulio Tavares (Imã Editora, 2011). Mas já havia sido publicado nas décadas de 1960 e 1970, com cinco livros, todos de bolso. Primeiro com Prisioneiros das Chamas (La Selva, coleção Espacial, n. 2) (1964), A Cidade dos Mil Sóis (Rio Gráfica, coleção Galáxia, n. 19) (1967), Metagaláxia (Editorial Bruguera, coleção FC, n. 29) (1971), As Torres de Toron (Editorial Bruguera, coleção FC, n. 44) (1972), a novela “Linhas de Força” (Antologia de Ficção Científica n. 3, Editora Globo/RS) (1973) e o já citado A Balada de Beta-2. Em língua portuguesa, Babel 17 já havia sido publicado, em Portugal, pelo Círculo de Leitores n. 20, em 1989. Mas estas duas histórias do volume da Morro Branco estavam inéditas no Brasil. Nesse sentido, podem permitir ao leitor brasileiro dos anos 2000 descobrir Delany, um dos autores mais talentosos da FC norte-americana dos anos 1960 até os dias de hoje.

–– Marcello Simão Branco

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